"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/09/2018

Jurisprudência 2018 (64)


Penhora; bens móveis;
presunção; ilisão

 
1. O sumário de RL 6/3/2018 (3625/14.3T8OER-A.L1-7) é o seguinte:

I – O agente de execução deve proceder à penhora de bens móveis não sujeitos a registo encontrados em poder do executado, por se presumir que estes lhe pertencem, cabendo, depois, ao executado ou a terceiro ilidir, querendo, essa presunção perante o juiz mediante a apresentação de requerimento acompanhado da prova documental donde resulte manifesto o direito do terceiro sobre os bens penhorados;

II – Estando em causa bens não sujeitos a registo, a prova documental inequívoca a que se refere o nº 3 do art. 764 do C.P.C. tem de fazer-se, as mais das vezes, a partir de indicadores que, não constituindo embora demonstração direta da titularidade dos mesmos por terceiros, assegure, de forma suficiente, que estes não pertencem ao executado;

III – O indicado preceito serve o princípio da economia processual, permitindo a demonstração expedita – pelo executado, por alguém em seu nome ou por terceiro – de que o bem penhorado não deve, afinal, ser afetado pela diligência por não constituir propriedade do executado.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Compulsadas as conclusões acima transcritas, verificamos que em causa está apreciar se a executada fez ou não prova documental inequívoca do direito de terceiro sobre os bens penhorados que indica, nos termos e para os efeitos do art. 764, nº 3, do C.P.C..

Vejamos.

O art. 764 do C.P.C., sob a epígrafe “Penhora de coisas móveis não sujeitas a registo”, dispõe, no seu nº 1, que “A penhora de coisas móveis não sujeitas a registo é realizada com a efetiva apreensão dos bens e a sua imediata remoção para depósito, assumindo o agente de execução que realizou a diligência a qualidade de fiel depositário” e, no seu nº 3, que “Presume-se pertencerem ao executado os bens encontrados em seu poder, mas, feita a penhora, a presunção pode ser ilidida perante o juiz, quer pelo executado ou por alguém em seu nome, quer por terceiro, mediante prova documental inequívoca do direito de terceiro sobre eles, sem prejuízo da faculdade de dedução de embargos de terceiro.”

Os referidos números correspondem, no essencial, aos nºs 1 e 2 do anterior art. 848 do C.P.C. de 1961.

Como já ensinava F. Amâncio Ferreira no anterior quadro normativo: “(…) Face à presunção legal de titularidade do direito por parte do possuidor, consagrada no nº 1 do art. 1268º do CC, entende-se que todos os bens encontrados em poder do executado são, em princípio, sua pertença. Daí poderem ser penhorados. Realizada a penhora, pode a presunção ser ilidida perante o juiz, mediante prova documental inequívoca do direito de terceiro, sem prejuízo dos embargos de terceiro (art. 848º, nº 2). (…)”([“Curso de Processo de Execução”, 5ª edição, 2003, pág. 207]).

Também Lebre de Freitas, na linha do já por si defendido no domínio do anterior C.P.C. revogado, defende agora: “Penhorada uma coisa móvel encontrada em poder do executado, a lei concede a possibilidade de se fazer, perante o juiz do processo, prova documental inequívoca de que ela pertence a terceiro, mediante simples requerimento acompanhado dessa prova, presumindo até lá que a coisa pertence ao executado (art. 764-3). Esta disposição surgiu em consequência da supressão, pelo DL 38/2003, do protesto no ato da penhora, de que anteriormente tratava o art. 832 do CPC de 1961. (…).”([“A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 7ª ed., pág. 314])

Do acima exposto decorre com mediana clareza que o agente de execução deve proceder à penhora dos bens encontrados em poder do executado, por se presumir que estes lhe pertencem, cabendo, depois, ao executado ilidir, querendo, essa presunção perante o juiz mediante a apresentação de requerimento acompanhado da prova documental donde resulte manifesto o direito do terceiro sobre os bens penhorados.

Lebre de Freitas defende, ao mesmo tempo, que se o agente de execução for confrontado com a prova evidente do direito do terceiro no próprio ato da penhora deve obstar à mesma, mas cita Paula Costa e Silva que, defendendo a desejabilidade desta solução, entende, todavia, que a lei não a permite([Ob. cit., pág. 317, anotação 9]).

Pensamos que, de acordo com o princípio da economia processual, e tendo em conta o disposto nos arts. 735 e 751 do C.P.C., se o agente de execução for, por antecipação, no ato da penhora, confrontado com prova documental inequívoca do direito de terceiro sobre os bens em questão, deve, naturalmente, abster-se de praticar o ato. Mas, se não lhe for apresentado documento comprovativo ou se o exibido lhe suscitar dúvidas sobre o direito do terceiro, então deve realizar a penhora, sem prejuízo da ilisão vir a ter lugar perante o juiz, conforme previsto no art. 764, nº 3, do C.P.C..

Revertendo para o caso em análise, verificamos que a executada veio desencadear, desnecessariamente a nosso ver, o incidente de oposição à penhora previsto nos arts. 784 e 785 do C.P.C., quando podia, pretendendo fazer prova documental inequívoca do direito de terceiro sobre os bens penhorados ao abrigo do nº 3 do do art. 764 do C.P.C., apresentar simples requerimento na execução acompanhado da prova correspondente, no prazo de 10 dias a contar da notificação do ato da penhora (art. 149 do C.P.C.).

Ainda assim, tal excesso de formalismo jamais justificaria o indeferimento da pretensão, permitindo, todavia, ao juiz, no âmbito dos poderes de gestão processual que lhe assistem (cfr. art. 6 do C.P.C.), a incorporação do expediente na própria ação executiva e a apreciação do requerido em conformidade, após observado, salvo manifesta desnecessidade, o contraditório([Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 317]).

Isto posto, concluímos que assiste à executada o direito de demonstrar, perante o juiz, através de documento bastante, o direito de terceiro aos bens penhorados, sem prejuízo dos embargos de terceiro. Do documento ou documentos apresentados há-de resultar, inequivocamente, que tais bens pertencem a terceiro ou que esse terceiro sobre eles tem um direito real menor de gozo que implique a sua usufruição([]Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 316]).

No caso, a executada junta dois documentos para prova de que parte dos bens penhorados, as verbas 4 e 5, pertencem à proprietária do imóvel onde foi realizada a penhora e que lhe está arrendado, e que outra parte, as verbas 1, 2, 3 e 7, pertencem ao namorado com quem vive, AVD., também arrendatário da fração.

Tais documentos não se mostram impugnados e o Tribunal também não questiona a genuinidade dos mesmos, entendendo apenas que estes não provam inequivocamente o alegado.

Ora, do contrato de arrendamento respeitante à fração onde foi levada a cabo a penhora aqui em apreço resulta que as máquinas de lavar roupa e loiça penhoradas sob as verbas 4 e 5 (cfr. pontos 5 e 6 supra) correspondem aos bens móveis que equipavam a fração locada (cfr. pontos 9 a 12 supra), o que constitui evidencia de que não pertencem à executada.

Do mesmo modo, resulta do “Certificado de Seguro” junto a fls. 9 que AVD., também arrendatário da mesma fração, transferiu para Victoria-Seguros, S.A., em 19.10.2012, a responsabilidade emergente de sinistros verificados com o transporte em viatura, de Breda, na Holanda, para Lisboa, em Portugal, de um TV plasma SONY e colunas, um amplificador AKAI SS-V-10, um leitor de CD`s PHILIPS FR910, uma mesa em bambu com o tampo em vidro e quatro cadeiras em bambu e 2 pequenas arcas em madeira de cerejeira, que se afiguram corresponder, no essencial, às verbas 1, 2, 3 e 7 penhoradas (ver pontos assentes 2, 3, 4 e 8 supra). Tal constitui, a nosso ver, comprovativo bastante de que os referidos bens também não pertencem à executada, uma vez que terá sido o referido segurado a trazê-los do país de onde será natural para Portugal.

Não devemos ignorar que, estando em causa bens não sujeitos a registo,a prova documental inequívoca a que se refere o nº 3 do art. 764 do C.P.C. tem de fazer-se, as mais das vezes, a partir de indicadores que, não constituindo embora demonstração direta da titularidade dos mesmos por terceiros, assegure, de forma suficiente, que estes não pertencem ao executado.

Tal é, afinal, o sentido útil da norma ínsita no nº 3 do art. 764 do C.P.C. que, servindo o princípio da economia processual e evitando o recurso aos embargos de terceiro, permite a demonstração expedita – pelo executado, por alguém em seu nome ou por terceiro – de que o bem penhorado não deve, afinal, ser afetado pela diligência por não constituir propriedade do executado.

Deste modo, parece-nos possível concluir, com a necessária segurança para os fins previstos no nº 3 do art. 764 do C.P.C., que os bens identificados sob as verbas 4 e 5 pertencem à proprietária do imóvel arrendado à executada onde foi realizada a penhora, e que outra parte, as verbas 1, 2, 3 e 7 do auto de penhora de 5.4.2016 (a fls. 24 a 25 destes autos) também não pertencem à executada Maria João...."

[MTS]