"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/09/2018

Jurisprudência 2018 (72)


FGA; reembolso;
prescrição; prazo
 
1. O sumário de STJ 18/1/2018 (1195/08.0TVLSB.E1.S1) é o seguinte:

I – É de três anos o prazo de prescrição do exercício do direito de reembolso pelo Fundo de Garantia Automóvel relativamente ao pagamento da indemnização por ele satisfeita (como garante) ao lesado ou a terceiros;

II - Como se estabelece no art. 498º, nº 2, do CC, o dies a quo da contagem daquele prazo prescricional corresponde ao do pagamento, não relevando para este efeito, a data do acidente;

III – Para efeitos da contagem do prazo prescricional, pode justificar-se a sua autonomização, em caso de pagamentos faseados, relativamente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"21. Como já se referiu, na ação apensa, as rés (“Companhia de Seguros DD, SA,” e o Ministério Público, em representação da 2ª ré), invocaram a prescrição do direito do ali autor (o Fundo de Garantia Automóvel), alegando que, aquando da propositura da ação, já havia decorrido o prazo de cinco anos, sobre a data do acidente.

Na 1ª instância, considerou-se que o prazo de prescrição aplicável era o de três anos a contar da data do acidente, por força do disposto no art. 498º, nº 1, do CC. Em face disso, dado que o acidente ocorreu em 16.5.2003 e a ação foi instaurada em 30.10.2010 [...], julgou-se procedente a exceção de prescrição.

O Tribunal da Relação, porém, muito embora tenha considerado ser aplicável o prazo prescricional de três anos, entendeu que o mesmo se contava, nos termos previstos no nº 2 do art. 498º, do CC, isto é, a partir do cumprimento (e não do acidente) e, relevando a data do pagamento pelo Fundo de Garantia Automóvel, julgou improcedente a exceção.

No recurso interposto pela ré seguradora para este Supremo Tribunal, veio a recorrente sustentar que o prazo de prescrição é de cinco anos, a contar da data do acidente e/ou da data em que o Fundo de Garantia Automóvel teve conhecimento de que estava obrigado a indemnizar o lesado.

Insiste, por isso, que o prazo prescricional se esgotou em 16.5.2008, ou seja, em data anterior à da instauração da ação (30.10.2010 [...]).

Vejamos.

22. Nos termos do art. 21º, n.º 2, al. b), do D.L. n.º 522/85, de 31 de Dezembro, o Fundo de Garantia Automóvel responde pelas indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz.

Por sua vez, dispõe-se no nº 1, do art. 25º, do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12 na redação dada pelo Dec. Lei nº 122-A/86, de 30/5 [...], que "satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança".

Configura-se, assim, uma verdadeira sub-rogação legal, que coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito que pertencia ao credor primitivo, independentemente de qualquer declaração de vontade do credor ou do devedor nesse sentido.

Nesta medida, tendo o “FGA” adiantado ao lesado, e/ou a terceiro, o correspondente ao montante dos danos por aquele sofridos, ficou, legalmente, sub-rogado nos direitos do mesmo.

23. Qual é, porém, o prazo (prescricional) de que dispõe o sub-rogado para exercer o direito ao reembolso, sob pena da sua extinção?

O art. 498º, nº 1 do Cód. Civil, no quadro da responsabilidade civil por factos ilícitos, prevê que o direito de indemnização do lesado prescreve no prazo de três anos, [...] a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.

Por sua vez, no nº 2, do referido preceito legal estabelece-se que prescreve, igualmente, no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.

Finalmente, no seu nº 3, estipula-se que, se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.

Sendo este o quadro legal, coloca-se a questão de saber se o sub-rogado pode beneficiar da extensão do prazo prescricional prevista no nº3 do art. 498º, CC, nos casos em que os factos praticados pelo lesante possam configurar um ilícito criminal, para o qual a lei penal preveja um prazo de prescrição que exceda o já referido prazo-regra de 3 anos, previsto no nº 1 do art. 498º do CC.

É, essa, a posição defendida pela recorrente nos articulados da ação e também neste recurso, entendimento que não sufragamos.

24. Com efeito:

O nº 3 do art. 498º do CC, tem em vista compatibilizar os prazos de prescrição previstos na lei civil e na lei penal, já que, por força do chamado «princípio de adesão», a dedução da indemnização civil tem lugar, em regra, no processo criminal. Na verdade, não faria sentido que se extinguisse, por prescrição, o direito à indemnização civil - conexa com o crime – se ainda estivesse a decorrer o prazo de prescrição do procedimento criminal.

Ora, sendo aquelas, no essencial, as razões que estão na origem da consagração do alongamento do prazo previsto no nº 3 do art. 498º, do CC, as quais têm plena justificação quando se está (ainda) no âmbito da definição do direito do lesado, o mesmo não se pode dizer quando se trata do direito de reembolso (seja exercido por via do direito de regresso ou da sub-rogação), cujo fundamento se encontra completamente dissociado do ilícito criminal. [em sido esta a orientação da jurisprudência do STJ, como resulta, entre outros, dos acórdãos de 19.5.2016, de 18/10/2012, de 29/11/2011, de 16/11/2010, de 27/10/2009 e de 4/11/2008, e, muito concretamente, em situações de sub-rogação legal no direito do lesado, dos acórdãos de 3/12/2015, de 5/06/2012 e de 7/05/2014 [...]].

Neste contexto, e fazendo apelo às regras de interpretação, plasmadas no art. 9º, do CC., não parece defensável outra solução.

Como argumento final, afigura-se-nos ser ainda de trazer à colação o regime jurídico atualmente consagrado pelo DL nº 291/2007, de 21/8, em cujo art. 54º, nº 6, se estatui expressis verbis que aos direitos do Fundo de Garantia Automóvel (previstos nos números anteriores) é aplicável o nº 2 do art. 498º, do CC, relevando para o efeito, em caso de pagamentos fracionados, a data do último pagamento efetuado.

Tal só pode significar que o legislador, ao excluir expressamente a possibilidade de o “FGA” se prevalecer do alongamento do prazo do nº 3 do art. 498º, do CC, quis dissipar quaisquer dúvidas que a este respeito ainda pudessem subsistir.

É, assim, de concluir que em ação (como a dos autos) instaurada pelo Fundo de Garantia Automóvel visando obter o reconhecimento do seu direito ao reembolso e a condenação do responsável civil no pagamento da indemnização por ele satisfeita (como garante) ao lesado, o prazo de prescrição do exercício do direito do sub-rogado é o de três anos, por aplicação analógica do disposto no transcrito nº 2 do art. 498º, do CC [Cf., a título exemplificativo, os acs. deste Supremo Tribunal de 9.6.2016, de 10.1.2013, de 25.3.2010 e de 22.10.2009 [...]].

Na verdade, o “direito de regresso" e o “direito de sub-rogação” desempenham, do ponto de vista prático ou económico, uma análoga «função recuperatória» no âmbito das «relações internas» entre os vários sujeitos que estavam juridicamente vinculados ao cumprimento de certa obrigação ou, embora não o estando, acabaram por realizar efetivamente – na veste de garantes ou interessados diretos no cumprimento – a prestação devida.

25. Por outro lado, como se estabelece no art. 498º, nº 2, do CC, o dies a quo da contagem deste prazo prescricional corresponde ao do pagamento, não relevando para este efeito, a data do acidente. [Cf., neste sentido, os acs. do STJ de 12.9.2013, de 10.1.2013, de 13.4.2000, de 20.2.2001, de 17.12.2002, 21.1.2003, de 8.11.2005, de 10.9.2009 e de 16.3.2011 [...]].

Efetivamente, antes de satisfazer a indemnização, o FGA não é titular de qualquer direito de crédito, pelo que não pode exercer qualquer direito em lugar do lesado (ou do terceiro).

Como ensinava Vaz Serra (RLJ, 99, 360):

“A sub-rogação supõe o pagamento... e, portanto, o terceiro que paga pelo devedor só se sub-roga nos direitos do credor com o pagamento. Enquanto não o faz, não é sub-rogado e não pode, por isso, exercer os direitos do credor."

E, mais adiante:

"É que o eventual sub-rogado, enquanto não efetuar o pagamento, não tem crédito contra o terceiro responsável (crédito cujo montante será determinado pelo pagamento que fizer), e não tem sequer um crédito já existente mas ainda inexigível."

Compreende-se, deste modo, que o início do prazo de prescrição do direito atribuído ao “FGA” pelo art.º 25 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, deva ser estabelecido, por analogia, nos termos previstos no art.º 498, n.º 2, do CC.

26. Neste domínio, assume ainda particular relevância a questão de saber se, relativamente a montantes que o sub-rogado tenha pago faseadamente ao lesado ou a terceiros, o prazo prescricional se começa a contar do momento em que é paga cada parcela, sem que tal obste a que venha, depois, exercer o seu direito de sub-rogação quanto a outras quantias que venha a pagar, ou se a contagem do prazo se inicia a partir da data em que tenha sido efetuado o último pagamento.

A letra da lei (art. 498º, nº2, do CC), só por si, não permite resolver a situação.

Sobre esta problemática, escreveu-se no ac. do STJ de 7/4/2011, disponível in www.dgsi.pt:

“Não sendo a letra da lei - ao reportar-se apenas ao «cumprimento», como momento inicial do curso da prescrição - suficiente para resolver, em termos cabais, esta questão jurídica, será indispensável proceder a um balanceamento ou ponderação dos interesses envolvidos: assim, importa reconhecer que a opção pela tese que, de um ponto de vista parcelar e atomístico, autonomiza, para efeitos de prescrição, cada um dos pagamentos parcelares efetuados ao longo do tempo pela seguradora acaba por reportar o funcionamento da prescrição, não propriamente à «obrigação de indemnizar», tal como está prevista e regulada na lei civil (arts. 562º e segs.) mas a cada recibo ou fatura apresentada pela seguradora no âmbito da ação de regresso, conduzindo a um - dificilmente compreensível - desdobramento, pulverização e proliferação das ações de regresso, no caso de pagamentos parcelares faseados ao longo de períodos temporais significativamente alongados.

Pelo contrário, a opção pela tese oposta - conduzindo a que apenas se inicie a prescrição do direito de regresso quando tudo estiver pago ao lesado - poderá consentir num excessivo retardamento no exercício da ação de regresso pela seguradora, manifestamente inconveniente para os interesses do demandado (…).

Por outro lado, a ideia base da unidade da «obrigação de indemnizar» poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente:

- a indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença;

- a indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas.”

Em suma, e tal como se concluiu no mencionado aresto, “se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro.”

Perfilhamos idêntico entendimento, afigurando-se-nos inteiramente aplicável ao caso em apreço a doutrina do referido aresto. [Cf., a este respeito, os acórdãos do STJ de 14.7.2016, de 19.5.2016 e de 21.9.2017, disponíveis em www.dgsi.pt]

No caso vertente, está provado que o último pagamento efetuado pelo “FGA” ocorreu em 20-06-2008, pelo que é manifesto não ter ainda decorrido o prazo prescricional de três anos, nem à data da instauração da presente ação nem da citação da recorrente (cf. art. 323º, nº1, do CC).

A idêntica conclusão se chegará, caso se atribua relevância à data do último pagamento de cada um dos núcleos indemnizatórios, diferenciados em função de critérios funcionais.

Efetivamente, estando em causa a indemnização por danos patrimoniais e danos não patrimoniais, o ressarcimento quanto a estes foi adiantado pelo FGA, pela última vez, em 13.12.2007 e, relativamente aos danos patrimoniais, o último pagamento teve lugar, como já se disse, em 20.6.2008."
 
[MTS]