"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/09/2018

Jurisprudência 2018 (81)


Penhora de créditos;
crédito futuro


1. O sumário de STJ 22/2/2018 (329/14.0TBPSR-E.E1.S1) é o seguinte:

I – Se as partes, depois de terem dado um contrato promessa de permuta como resolvido, acordam em celebrar um aditamento ao mesmo e uma escritura de retificação convertendo-o em contrato promessa de compra e venda, tal significa a sua repristinação.

II – A penhora de um crédito detido pela executada em consequência da celebração do contrato prometido a que diz respeito o contrato promessa de alienação do prédio é uma penhora de um crédito futuro, determinado quanto ao seu objeto e sujeitos.

III – Perante a notificação de penhora de um direito, o terceiro pode assumir uma das seguintes atitudes:

a. reconhecer a existência do crédito, tacitamente – nada dizendo – ou de modo expresso;

b. reconhecer a existência do crédito, mas declarar que a sua exigibilidade depende de prestação do executado;

c. impugnar a existência do crédito;

d. fazer qualquer outra declaração sobre o crédito penhorado que interesse à execução.

IV – Respondendo o terceiro notificado nos seguintes termos
“… cumpre-nos informar que na presente data não somos detentores de nenhum crédito à executada, o contrato que celebramos com a mesma encontra-se em fase de reapreciação visto que o objeto do mesmo se encontrava onerado com um Contrato de Arrendamento, sendo que tal facto era desconhecido da promitente compradora. Nesta fase encontramo-nos a resolver a questão com a executada. O cumprimento da nossa prestação ainda não é devido. Logo que a questão for resolvida viremos posteriormente informar V. Exa.”, fica reconhecida a existência do contrato promessa e, bem assim, que da projetada celebração do contrato definitivo emergirá para a executada um crédito equivalente à prestação que por si lhe será devida.

V – Esse reconhecimento serve de base à formação dum título executivo em que se pode fundar uma execução contra o terceiro devedor.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

Discorda a recorrente da afirmada inexistência de título executivo, baseada no entendimento – adotado no acórdão -, segundo o qual, na resposta dada pela “CC” na sequência da notificação que lhe foi feita nos termos do art. 856º, nº 1, esta não reconheceu a existência do respetivo crédito, sustentando que, diversamente, “na carta de 17/05/2010, em resposta à notificação para penhora de créditos, a Recorrida não nega a existência do crédito, afirmando apenas que o mesmo, à data, não estava vencido e não estaria eventualmente determinado, mas que, logo que o vencimento ocorresse, se comprometia a informar, de imediato, o AE.” (conclusão 1ª.).

Dissentem, pois, o Tribunal da Relação e a recorrente na interpretação que fazem desta declaração.

Comecemos por recordar o conteúdo, tanto da notificação que à ora executada foi feita, como da resposta que a esta mereceu esta mesma notificação.

A primeira tinha, além do mais que aqui não releva, o seguinte teor:

“Fica(m) pela presente formalmente notificado(s) que, nos termos do 856º do Código de Processo Civil, se considera penhorado o crédito que a executada BB detém em consequência da celebração do contrato prometido a que diz respeito o contrato promessa de alienação do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de P…, contrato esse registado pela Ap. nº 1…2, de 2009/05/20, ficando este à ordem do signatário, até ao montante de 42.926,35 Euros. Mais requer a V. Exa. que envie cópia do referido contrato promessa, devidamente certificada, assim com informação sobre se o contrato prometido já foi celebrado e em que data e Cartório. (sublinhado nosso)

Isto mostra que se está perante penhora de pretenso crédito, que poderia ainda não estar constituído, vindo à titularidade da executada inicial BB, apenas quando esta e a ora executada “CC”, dando cumprimento ao que haviam convencionado, viessem a celebrar o contrato prometido na promessa de permuta que haviam outorgado; isto, claro está, no caso, efetivamente verificado, de o negócio prometido, na altura, não estar ainda concretizado.

Em causa está, pois, um direito que, à data, era um crédito futuro - a prestação que a executada inicial BB teria a haver da “CC” aquando da celebração do contrato, a cuja outorga ambas se comprometeram através do contrato promessa referido.

Salvo o devido respeito por opinião diversa, e sufragando o entendimento que sobre a matéria adotam Miguel Teixeira de Sousa [ “Acção Executiva Singular”, pág. 265] e Rui Pinto [“Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 618], consideramos que nada obsta à sua penhorabilidade, pois que, embora futuro, o crédito em causa é determinado quanto ao seu objeto e sujeitos.

Obtida esta conclusão, atentemos, agora, na resposta dada pela notificada, aqui executada e recorrida.

Foi do seguinte teor:

“Notificados que fomos por V. Exa. cumpre-nos informar que na presente data não somos detentores de nenhum crédito à executada, o contrato que celebramos com a mesma encontra-se em fase de reapreciação visto que o objeto do mesmo se encontrava onerado com um Contrato de Arrendamento, sendo que tal facto era desconhecido da promitente compradora. Nesta fase encontramo-nos a resolver a questão com a executada. O cumprimento da nossa prestação ainda não é devido. Logo que a questão for resolvida viremos posteriormente informar V. Exa.”.[...].

Aferir o sentido que a esta declaração pode ser atribuído tem uma importância determinante para a questão de saber se existe título executivo.

Na verdade, perante a notificação de penhora, feita nos termos do anterior art. 856º, nº 1, equivalente ao art. 773º, nº 1, do atual CPC, o terceiro pode assumir uma das seguintes atitudes [Cfr. Lebre de Freitas, “A Ação Executiva À luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6ª edição, pág. 284 e sgs. e Rui Pinto, obra citada, pág. 622 e segs.]:

a. reconhecer a existência do crédito, tacitamente – nada dizendo – ou de modo expresso – art. 856º, nº 3, equivalente ao art. 773º, nº 4 do atual CPC e 856º, nº 2, equivalente ao art. 773º, nº 2 do atual CPC, respetivamente;

b. reconhecer a existência do crédito, mas declarar que a sua exigibilidade depende de prestação do executado, ou seja, invocar a exceção de não cumprimento de obrigação recíproca – art. 859º, nº 1, equivalente ao atual art. 776º, nº 1 do CPC;

c. impugnar a existência do crédito – art. 858º, nº 1, equivalente ao atual art. 775º, nº 1 do CPC.

d. fazer qualquer outra declaração sobre o crédito penhorado que interesse à execução. [Hipótese autonomizada por Lebre de Freitas, na obra citada, a pág. 285]

Na hipótese aludida em c., mantendo o exequente a penhora, o crédito passa a ser tido como litigioso – art. 858º, nº 2, idêntico ao atual art. 775º, nº 2 do CPC.

Na referida em b., seguindo-se os termos definidos no art. 859º, nºs 2 a 4 – correspondentes aos atuais arts. 776º, nºs 2 a 4 do CPC -, pode haver lugar, por apenso, a uma execução para exigir a prestação do executado, caso este, tendo este confirmado a declaração [...], não satisfaça a prestação, ou passará a ter-se o crédito como litigioso, no caso de o executado impugnar a declaração e o exequente manter a penhora.

Finalmente, na primeira das hipóteses figuradas “fica imediatamente assente (a existência do crédito) no âmbito do processo executivo, podendo como tal ser adjudicado ou vendido (…) e servindo o ato de reconhecimento de base à formação dum título executivo em que se pode fundar uma execução contra o terceiro devedor (que não pague …), por meio de substituição processual (do executado pelo exequente, mas constituindo título executivo a declaração de reconhecimento do devedor).” [Lebre de Freitas, obra citada, pág. 285].

No caso, é manifesto que não houve reconhecimento tácito do crédito da executada BB, pois que a “CC” não se remeteu ao silêncio.

Também é de excluir o reconhecimento do crédito com invocação de exceção de não cumprimento, por parte da “CC”.

Perscrutando o conteúdo e significado da declaração prestada, também não vemos que se possa atribuir à mesma a natureza de impugnação do crédito por parte da terceira, pretensa devedora.

E é escasso, a nosso ver, o significado e valor que lhe atribui o acórdão impugnado, ao reduzi-la a uma mera “declaração que interessa à execução”.

Há que reconduzi-la e avaliá-la à luz do circunstancialismo em que foi proferida, tendo presente que constituía a resposta da “CC” a notificação através da qual lhe fora comunicado que se considerava penhorado o crédito que sobre ela viria a deter a executada BB quando celebrado fosse o contrato prometido na promessa de alienação, entre ambas celebrada, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor, contrato esse registado pela Ap. nº 1…2, de 2009/05/20. [...]

A afirmação da “CC” no sentido de que, naquela data, a executada não detinha sobre ela qualquer direito de crédito e que o contrato promessa por elas celebrado se encontrava em reapreciação, significa tão só que, então, o crédito penhorado ainda se não havia constituído por não ter sido ainda celebrada a permuta prometida, da qual emergiria o crédito objeto da penhora.

De modo algum compromete o reconhecimento que faz desse crédito futuro, quando profere, naquele mesmo contexto, a afirmação segundo a qual : “O cumprimento da nossa prestação ainda não é devido. Logo que a questão for resolvida viremos posteriormente informar V. Exa.”.

Reconhece, em termos que não deixam margem para dúvida razoável, a existência do contrato promessa e, bem assim, que da projetada celebração do contrato definitivo emergirá para a executada BB um crédito equivalente à prestação que por si lhe será devida.

Daí a afirmação que a sua prestação ainda não é devida e a assunção do compromisso de prestar a pertinente informação nos autos logo que a questão surgida no âmbito do contrato promessa seja ultrapassada.

Cremos, assim, poder afirmar que a “CC”, ora recorrida, reconheceu a existência do crédito futuro em causa, sendo este o sentido a extrair da sua declaração, prestada após a notificação que lhe foi efetuada e no quadro do demais circunstancialismo fáctico descrito.

É com este sentido que vale a sua declaração, o sentido que dela extrairia um declaratário normal, “ou seja, medianamente instruído e diligente” [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, Vol. I, pág. 223], colocado na posição do real declaratário, perante o comportamento do declarante – art. 236º, nº 1, do C. Civil.

Chegados a esta conclusão uma outra se impõe – a de que esse reconhecimento pode servir “de base à formação dum título executivo em que se pode fundar uma execução contra o terceiro devedor (que não pague …)” [Lebre de Freitas, obra citada, pág. 285].

Ora, o direito de crédito penhorado veio a constituir-se aquando da celebração do negócio de compra e venda descrito no facto provado nº 24, sendo que naquele ato, como acima salientámos, a ora executada CC satisfez duas das parcelas do preço pelo qual adquiriu o prédio à executada inicial – cfr. os factos nºs 24 e 25.

Como acima dissemos já, o contrato promessa retificado por essa mesma escritura corresponde ao inicialmente outorgado, através do qual as partes se comprometeram na futura alienação – primeiro por permuta e, mais tarde, por compra e venda – do imóvel referido no facto provado nº 3.

Aquando da celebração da compra e venda, a CC, SA devia ter considerado a existência dessa penhora, cumprindo aquilo a que, por virtude dela, ficara adstrita, aliás de acordo com o que se comprometera fazer após a respetiva notificação – cfr. facto provado nº 20.

Não tendo depositado à ordem do agente de execução a quantia de € 42.926,35, de acordo com a notificação que lhe fora feita, deixou de cumprir a obrigação que sobre ela impendia, assim incorrendo na previsão normativa do nº 3 do art. 860º do CPC então vigente.

Existe, pois, título executivo e obrigação exequenda, não procedendo a oposição e não podendo manter-se o acórdão recorrido."

[MTS]