Processo de inventário; decisões do notário;
recurso
1. O sumário de RP 26/4/2018 (9995/17.4T8VNG-A.P1) é o seguinte:
I - A resolução dos problemas que forem surgindo na aplicação do novo Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei 23/2013 de 5 de Março, designadamente quanto à articulação da intervenção do notário e do juiz neste processo, tem sempre de passar pela noção de que no nosso ordenamento jurídico a função jurisdicional é reserva do juiz, por imposição constitucional.
II - Mesmo na falta de previsão expressa no novo RJPI, se está em causa uma situação que carece de tutela jurisdicional efectiva, tem de admitir-se a impugnação para o tribunal da decisão proferida pelo notário em sede de processo de inventário.
III - Das decisões do notário proferidas em sede de processo de inventário passíveis de serem impugnadas, é competente para delas conhecer o juiz do tribunal de 1ª instância territorialmente competente, podendo recorrer-se, nos casos que não são expressamente previstos, ao procedimento análogo contemplado no art.º 57.º n.º 4 do RJPI que confere aos interessados a possibilidade de impugnarem judicialmente a decisão do notário sobre a forma à partilha.
IV - Das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância cabe recurso para a Relação, nos termos gerais, de acordo com o regime de recursos previsto no art.º 76 do RJPI e C.P.C.
V - Estando em causa a impugnação da decisão do notário em incidente de impedimento e suspeição suscitado no âmbito de processo de inventário subsequente ao divórcio para partilha dos bens comuns, é competente para o apreciar o juízo de família e menores territorialmente competente, de acordo com o art.º 122.º n.º 2 da LOSJ.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Alega a Recorrente que a competência do Juízo de Família e Menores para a apreciação do recurso interposto da decisão do Notário resulta do art.º 67.º do C.P.C. e do art.º 122.º n.º 2 da LOSJ e que a não se considerar este tribunal o competente, essa competência sempre seria do Juízo Local Cível, para onde o processo deve ser remetido.
A decisão sob recurso considerou o tribunal incompetente para a admissão e apreciação do recurso interposto pela Requerida, com fundamento no entendimento de que não existe qualquer norma, designadamente no RJPI, que determine a possibilidade de recurso para o tribunal de 1ª instância da decisão proferida pelo Notário na matéria em causa, não referindo porém qual o tribunal ou entidade competente para apreciar e decidir a questão…
A resposta sobre a competência para a apreciação do recurso que incide sobre a decisão do Notário proferida em incidente de impedimento ou suspeição, no âmbito do processo de inventário, exige que se teçam algumas considerações prévias sobre o novo regime jurídico do processo de inventário. [...]
Não competindo nesta sede fazer a avaliação do processo legislativo que veio a culminar no actual Regime Jurídico do Processo de Inventário, importa porém reter a ideia de que nele foi considerado necessário contemplar a intervenção do juiz no processo de inventário, designadamente com a prolação de decisão judicial final no processo, homologatória da partilha, não o desjudicializando por completo e assim se procurando acautelar questões de inconstitucionalidade que decorriam daquela Lei 29/2009 de 29 de Junho.
Não podemos esquecer que a função jurisdicional está constitucionalmente atribuída apenas aos tribunais, determinando o art.º 202.º n.º 1 da CRP que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. Está prevista nesta norma a denominada reserva da função jurisdicional cujo exercício compete ao juiz.
A delimitação do âmbito da função jurisdicional não tem sido isenta de controvérsia, havendo porém que ter sempre em consideração o n.º 2 do art.º 202.º da CRP que estabelece: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.”
Não cabendo aqui definir ou delimitar com precisão o âmbito da função jurisdicional, designadamente por referência a outras funções do Estado, como a administrativa, afigura-se para o que agora nos interessa, e à luz da previsão do art.º 202.º n.º 2 da CRP, que é suficiente e pacífica a ideia de que o processo de inventário não pode deixar de ser visto como um processo em que se coloca a necessidade de se dirimirem conflitos de interesses privados.
O processo de inventário tem como finalidade ou objectivo alcançar a partilha dos bens comuns dos interessados, precisamente nos casos em que os mesmos se encontram em desacordo ou conflito para a sua efectivação, já que se estiverem de acordo quanto à partilha dos bens têm forma de a realizar sem recorrer a este processo.
Por outro lado, a previsão do n.º 2 do art.º 202.º da CRP já mencionado, permite-nos dizer que só os actos materialmente jurisdicionais têm de ser praticados por juízes, podendo admitir-se, tal como decorre do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/2006, que não juízes pratiquem actos que embora tendo conteúdo decisório não sejam materialmente jurisdicionais.
Afigura-se que é a partir destes pressupostos que a Lei 23/2013 de 5 de Março veio estabelecer o novo Regime Jurídico do Processo de Inventário, por um lado atribuindo ao notário diversas competências no âmbito deste processo, e por outro lado, nele prevendo igualmente a intervenção do juiz, em razão da natureza do processo em questão e do facto dos notários não poderem, no exercício da sua actividade, invadir o domínio da função jurisdicional que por imperativo constitucional cabe exclusivamente ao juiz.
Tendo presente estas ideias verificamos que no novo RJPI, na repartição de competências entre cada um dos intervenientes, o legislador previu diversas situações que considerou carecerem de tutela jurisdicional efectiva, cuja resolução atribuiu ao tribunal, à luz da reserva da função jurisdicional que cabe ao juiz.
A circunstância de terem passado a existir dois intervenientes no processo de inventário - Notário e Juiz - com a preponderância conferida ao papel do Notário na tramitação e decisão deste processo, veio trazer problemas na articulação da intervenção em concreto destas duas entidades no processo, que nem sempre tem vindo a revelar-se linear, não só pela existência de situações de fronteira difíceis de qualificar e integrar na competência de cada um, mas também pelo facto de nos depararmos com situações cuja resolução o legislador não previu expressamente na lei que estabelece o novo RJPI.
A passagem para os Notários da tramitação e decisão de questões que se colocam no âmbito do processo de inventário, não pode naturalmente significar que os mesmos tenham passado a exercer a função jurisdicional, já que esta, por determinação constitucional está atribuída em exclusivo aos tribunais e ao juiz. Não podendo equipara-se a função do notário à função do juiz, antes se impondo que se tenha como presente a sua diferenciação, não deixa porém o novo regime jurídico de colocar questões que não são claras e que se prendem precisamente com a definição dos limites da função e competências de cada um: do notário e do juiz.
Afigura-se que a resolução dos problemas que forem surgindo na aplicação de uma lei que ainda encerra muitas interrogações, tem sempre de passar, por um lado, pela noção de qual é no nosso ordenamento jurídico, legal e constitucional, a posição do notário e a posição do juiz e, por outro lado, tal como nos diz Nuno de Lemos Jorge, in. Função do Notário e Função do Juiz no Regime Jurídico do Processo de Inventário – Lei 23/2013 de 5 de Março, Revista Julgar n.º 24, pág. 129, pelo reconhecimento de que “…o novo processo de inventário é um verdadeiro processo, com a finalidade de realização da justiça do caso concreto que é comum a outros processos e não pode deixar de iluminar o intérprete.”
Surgindo o Notário como a entidade encarregada de dirigir e em alguns casos de decidir no processo de inventário, é prevista igualmente ainda que de forma mais pontual a intervenção do Juiz neste processo, dispondo o art.º 3.º n.º 7: “Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz.”
As intervenções do juiz de 1ª instância consagradas no diploma em questão, não deixam de encerrar algumas incongruências, na constatação de que este ao mesmo tempo que é chamado a proferir decisão em primeira instância, é igualmente chamado a decidir como juiz de recurso.
O art.º 66.º n.º 1 do RJPI prevê a intervenção do juiz, sempre necessária em sede de processo de inventário, atribuindo-lhe competência para proferir a decisão homologatória da partilha, em 1ª instância. Desta decisão do juiz, de acordo com o disposto no art.º 66.º n.º 3 cabe recurso para o Tribunal da Relação.
Outras normas existem neste diploma que contemplam a eventualidade da intervenção do juiz no processo, como juiz de recurso, intervenção esta que pode ser suscitada quer por iniciativa das partes com a impugnação de decisão proferida pelo notário, de que é exemplo quer o art.º 16.º n.º 4 quando dispõe: “Da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns cabe recurso para o tribunal competente, no prazo de 15 dias a partir da notificação da decisão, o qual deve incluir a alegação do recorrente.”, quer o art.º 57.º n.º 4 que prevê a possibilidade da impugnação do despacho sobre a forma da partilha para o tribunal de 1.ª instância competente.
A intervenção do tribunal chamado a decidir questões que se colocam no processo de inventário, pode vir ainda a resultar da iniciativa do próprio notário, quando o mesmo entende remeter as partes para os meios comuns, conforme resulta do art.º 16.º n.º 1 que dispõe: “O notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade.”
Não pode deixar de ver-se nestas normas a concretização legal da salvaguarda do princípio da reserva do juiz no exercício da função jurisdicional, a que já se aludiu.
Mas no âmbito da tramitação do processo de inventário atribuída ao notário, podem vir ainda a ocorrer outras situações para além daquelas em que o RJPI prevê expressamente a intervenção do juiz, designadamente enquanto juiz de recurso, em que esta se impõe, quer por se suscitarem questões semelhantes àquelas que nela são regulados e assim o determinam, quer pelo facto de se tratarem de questões que, pela sua natureza exigem uma tutela jurisdicional efectiva, não podendo deixar de considerar-se incluídas no exercício da função jurisdicional, por imperativo de ordem constitucional.
As ideias gerais que sinteticamente se expuseram, ajudam-nos mais facilmente a definir qual é o tribunal competente, que deve ser chamado a decidir em caso de necessidade de tutela jurisdicional efectiva, designadamente em sede de impugnação ou recurso das decisões proferidas pelo Notário, mesmo nas situações que não estão expressamente previstas no novo RJPI, mas que se podem colocar no âmbito do processo de inventário,
O facto de no Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei 23/2013 de 5 de Março, não existir qualquer norma expressa que regulamente esta questão da impugnação em geral das decisões proferidas pelo notário, quando necessário, e em particular daquelas que são emitidas em incidente de incumprimento e suspeição, apenas nos pode levar a reconhecer que estamos perante uma lacuna da lei, que importa integrar de acordo com os princípios estabelecidos no art.º 10.º do C.Civil, ou seja, em primeiro lugar com recurso à avaliação das normas e princípios que resultam deste mesmo diploma.
Parece-nos claro que tal competência não pode deixar de estar atribuída aos tribunais de 1ª instância.
Senão vejamos.
Em primeiro lugar, considera-se que essa é a solução que melhor dá acolhimento e se integra na opção do legislador em contemplar a intervenção obrigatória, de dois intervenientes – notário e juiz de 1ª instância - no processo de inventário, ainda que em diferente medida, e a que corresponde à melhor articulação entre as diferentes competências de cada um, na tramitação daquele processo.
Em segundo lugar, porque essa é desde logo a solução prevista no novo RJPI para outras situações, em que é ao juiz de 1ª instância que é conferida a competência não só para a prática de actos jurisdicionais no âmbito do processo de inventário, como também para apreciar as decisões do notário em sede de recurso, como acontece na previsão do art.º 16.º n.º 4 já mencionado, ou para conhecer a impugnação da decisão deste sobre a forma à partilha, contemplada no art.º 57.º n.º 4 do RJPI.
Em terceiro lugar, importa considerar ainda a propósito da competência dos tribunais em razão da hierarquia, o disposto nos art.º 67.º e 68.º do C.P.C. Quanto aos tribunais de 1ª instância estabelece o art.º 67.º: “Compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos”, enquanto o art.º 68.º relativamente às Relações, lhes confere competência para os recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1ª instância, para além daqueles que por lei sejam da sua competência.
Finalmente, mais se refere, que a situação do legislador contemplar a possibilidade de recurso das decisões dos notários e conservadores para o tribunal de 1ª instância não é aliás nova, sendo disso exemplo a previsão do art.º 3.º da Lei nº 82/2001,de 03 de Agosto, que dispõe sobre a remessa do processo para o tribunal competente para decidir o recurso da decisão do conservador; ou o art.º 10.º do Decreto-lei nº 272/2001, de 13 de Outubro, que estabelece que “das decisões do conservador cabe recurso para o tribunal judicial da 1ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertence a conservatória.”
Não nos esquecemos do art.º 76.º do RJPI que se refere ao regime de recursos. Contudo, este artigo contempla o regime de recursos precisamente das decisões que venham a ser proferidas pelo juiz de 1ª instância no âmbito do processo de inventário, não se reportando ao recurso de qualquer decisão proferida pelo notário. O mesmo alude à aplicação do regime de recursos previsto no C.P.C. com referência ao recurso da decisão homologatória da partilha, decisão esta que cabe ao juiz, nos termos do art.º 66.º do RJPI e não ao notário. Como já se viu, no âmbito do processo de inventário o juiz também é chamado a decidir em primeira instância.
Só das decisões do tribunal de 1ª instância é que cabe recurso para o Tribunal da Relação; as decisões do notário não são decisões proferidas no âmbito da função jurisdicional pelo que delas não pode haver recurso directo para a Relação.
No sentido de que é o tribunal de 1ª instância e não o tribunal da Relação o competente para conhecer, em primeira linha, do recurso de decisão proferida pelo notário em sede de processo de inventário, tem vindo aliás a pronunciar-se a jurisprudência dos nossos tribunais da Relação, de que são exemplo os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2017 no proc. 109/17.1YRCBR e de 09/05/2017 no proc. 86/17.9YRCBR, ambos in. www.dgsi.pt neste último se referindo: “… resulta das disposições ora transcritas que das decisões proferidas por notário, expressamente passíveis de recurso (como o é in casu, cf. artigo 16.º, n.º 4, do RJPI), cabe recurso para o Tribunal da 1.ª instância que for o territorialmente competente, a interpor no prazo e regimes ali fixados, ao passo que o recurso da sentença homologatória da partilha, porque proferido pelo Juiz desse Tribunal de 1.ª instância, é dirigido ao Tribunal da Relação territorialmente competente, como o determina o citado artigo 66.º, n.º 3, uma vez que vem interposto de decisão judicial e não do notário.”
A doutrina tem vindo a expressar igual entendimento. Veja-se Lopes Cardoso, in. Partilhas Judiciais, pág. 82 ss. que refere: “vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através dum requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário.”
Também Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, in. Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime, pág. 230, ensinam-nos a propósito do regime de recursos previsto no art.º 76.º do RJPI com remissão para o C.P.C.: “…apenas se aplica a decisões tomadas pelo tribunal e não pelo notário, uma vez que as decisões tomadas por este último apenas poderão ser objecto de impugnação para o Tribunal de 1.ª instância territorialmente competente nos casos especialmente previstos na lei ou nas situações que temos vindo a apontar.”.
Posto isto, afigura-se que podemos retirar a seguinte conclusão: das decisões do notário proferidas em sede de processo de inventário, passíveis de serem impugnadas, é competente para conhecer da impugnação o juiz do tribunal de 1ª instância territorialmente competente, podendo recorrer-se, nos casos que não são expressamente previstos, ao procedimento análogo contemplado no art.º 57.º n.º 4 do RJPI que confere aos interessados a possibilidade de impugnarem judicialmente a decisão do notário sobre a forma à partilha. Das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância cabe recurso para a Relação, nos termos gerais, de acordo com o regime de recursos previsto no art.º 76 do RJPI e C.P.C.
Se é certo, conforme refere o Exm.º Juiz a quo, que ao tribunal de 1ª instância não lhe está atribuída competência para conhecer recursos de apelação nos termos previstos no C.P.C., já não pode deixar de se lhe reconhecer competência para a apreciar a impugnação da decisão proferida por notário, ainda que impropriamente denominada e apresentada como recurso de apelação.
Com respeito à situação concreta que nos ocupa, põe-se ainda a questão de saber qual o tribunal de 1ª instância competente em razão da matéria para a apreciação da impugnação suscitada: se o juízo de família e menores como pretende a Recorrente, se o juízo local cível.
A resposta a esta questão tem de ser encontrada no âmbito da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovada pelo Decreto-Lei 62/2013 de 26 de Agosto.
Aos juízos locais cíveis, como se sabe, o legislador veio atribuir-lhes competência residual, para julgarem causas não atribuídas a outros juízos ou tribunal, estabelecendo o art.º 130 n.º 1 da LOSJ: “Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.”
Em face desta previsão, importará então apurar em primeiro lugar se estamos perante uma causa atribuída ao juízo de família e menores.
A LOSJ vem na subsecção IV nos art.º 122.º a 124.º regular sobre a competência dos juízos de família e menores. No art.º 122.º é prevista a competência destes juízos quanto a matérias relacionadas com o estado civil das pessoas e família, sendo contempladas no n.º 1 deste artigo diversas acções que compete a estes juízos preparar e julgar; acrescenta o n.º 2: “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”
No caso em presença estamos perante uma questão suscitada no âmbito de um processo de inventário que corre termos com vista à partilha dos bens comuns do casal, subsequente ao divórcio. Competindo aos juízos de família e menores exercer a competência conferida aos tribunais nestes processos de inventário específicos, considera-se que é o juízo de família e menores o competente para conhecer da impugnação da decisão do notário proferida em sede de incidente de impedimento e suspeição suscitado no âmbito daquele processo.
Por estar em causa a impugnação de uma decisão do notário proferida em incidente de impedimento e suspeição suscitado por uma das partes em processo de inventário, e por não a desconhecermos, impõe-se fazer uma referência à posição que tem vindo a este respeito a ser defendida por Sofia Henriques, in. O Regime de Impedimentos e Suspeições do Notário no Âmbito do Processo de Inventário, Revista Julgar, pág. 139/140, para, como todo o respeito, dela se discordar.
Entende a Autora do estudo citado, depois de concluir que o notário em face das competências que lhe foram legalmente atribuídas no âmbito do processo de inventário, deve considerar-se sujeito ao regime de impedimentos e suspeições previsto e estabelecido para o juiz no Código de Processo Civil, que é ao Presidente do Tribunal da Relação territorialmente competente que cabe o conhecimento da impugnação da decisão do notário proferida nestes incidentes, uma vez que é também a este que por força do disposto nos art.º 122.º n.º 2 e 119.º n.º 3 do C.P.C. está atribuída competência para decidir dos impedimentos e suspeições dos juízes, normas que entende serem aplicáveis.
Não importa agora aqui cuidar de saber se se aplica aos Notários o regime de Impedimentos e Suspeições previstos para os juízes no Código de Processo Civil, ou antes em exclusivo o que está previsto nos diplomas que regulam a sua actividade, como sejam o Estatuto do Notariado, o Código do Notariado e o Estatuto da Ordem dos Notários, uma vez que tal não constitui objecto do presente recurso.
Sempre importa referir porém que o notário enquanto entidade oficial revestida de fé pública, está sujeito ao seu Estatuto, no qual é previsto um regime próprio de incompatibilidades e de exclusividade.
Na opção do legislador em atribuir ao notário o papel preponderante que este tem agora em sede de processo de inventário, escolhendo-o de entre outras classes de profissionais para a tramitação de tal processo, não terá sido alheia a ponderação da exigência de independência e imparcialidade que lhes é imposta, designadamente pelo seu próprio Estatuto.
No Estatuto da Ordem dos Notário aprovado pela Lei 155/2015 de 15 de Setembro são os art,º 72.º a 75.º que estipulam sobre os impedimentos e imparcialidade do notário; o Estatuto do Notariado, aprovado pela Decreto-lei 26/2004 de 4 de Fevereiro, prevê os princípios da legalidade, autonomia, imparcialidade e exclusividade nos art.º 11.º a 15.º e também o Código do Notariado vem estabelecer no seu art.º 5.º os impedimentos dos notários. Em nenhum destes diplomas é porém regulamentado o procedimento que deve ocorrer quando um incidente destes é suscitado perante o notário, nomeadamente no âmbito do processo de inventário, e modo de reagir à decisão que sobre ele venha a incidir. Designadamente, não é atribuída tal competência à Ordem dos Notários.
O novo RJPI faz apenas uma alusão ao impedimento do notário, quando no art.º 3.º n.º 2 estabelece: “Em caso de impedimento dos notários de um cartório notarial, é competente qualquer dos outros cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão.” Neste diploma não é porém contemplada qualquer outra previsão ou regulamentação especificamente direccionada para os impedimentos e suspeições do notário.
Não podemos porém concordar com o entendimento defendido, de que a competência para decidir dos impedimentos e suspeições dos notários é das Relações e nestas do Presidente do Tribunal da Relação, em equiparação do procedimento previsto no Código de Processo Civil para os impedimentos e suspeição dos juízes, uma vez que, por um lado, tal solução parte da equiparação da função do notário no processo de inventário à do juiz, contendendo com a avaliação do novo RJPI nos termos em que o entendemos e ficaram expostos, assente na necessária distinção das funções de cada um daqueles intervenientes no âmbito do processo de inventário, e por outro lado, considera-se que a solução para o suprimento das lacunas existentes neste diploma deve ser procurada, em primeiro lugar, no âmbito deste mesmo regime.
Em conclusão, não se vê razão que possa justificar que relativamente a uma decisão de um incidente de impedimento ou suspeição proferida pelo notário que surge no âmbito da tramitação do processo de inventário, seja dada uma solução diferente da que se expressou, quanto à forma como deve ser impugnada a decisão do notário em qualquer outro incidente que aí surja e que careça de tutela jurisdicional. Ou seja, na falta de previsão expressa no novo RJPI e estando em causa uma situação que carece de tutela jurisdicional efectiva, tem de admitir-se a impugnação da decisão proferida pelo notário, para o tribunal de 1ª instância competente para intervir no processo de inventário.
Chegamos então à conclusão de que, na situação em presença, é competente para a apreciar a decisão proferida pela Exm.ª Notária no incidente de impedimento e suspeição suscitado no processo de inventário, o juízo de família e menores territorialmente competente.
Impõe-se assim a revogação da decisão recorrida que entendeu ser o juízo de família e menores incompetente para a admissão e conhecimento do recurso interposto pela interessada, considerando-se o juízo de família e menores competente para apreciar e decidir a impugnação da decisão da Exm.ª Notária em causa, proferida no âmbito de processo de inventário subsequente ao divórcio, para partilha dos bens comuns."
[MTS]