"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/09/2018

Jurisprudência 2018 (66)


Legitimidade singular; venda executiva;
arrendamento; caducidade


1. O sumário de RG 5/4/2018 (340/16.7T8MNC.G1) é o seguinte:

I. A questão da legitimidade ad causam pode ser arguida ou oficiosamente conhecida na fase de recurso, se o não tiver sido antes em concreto.

II. Tendo o Banco credor hipotecário adquirido, no âmbito da liquidação em insolvência de devedor (pessoa singular), um imóvel por este dado de arrendamento a uma Sociedade e que esta, invocando-o, se recusa a entregar-lhe, não tem aquele (insolvente) de ser demandado em litisconsórcio necessário na acção em que, apenas contra o Administrador da Massa e a Sociedade, o adquirente pede a declaração de nulidade (por simulação) do contrato ou a sua caducidade, inoponibilidade ou ineficácia (artº 824º CC), e a consequente condenação na sua entrega

III. É que, face à relação material controvertida, o dito devedor não tem qualquer interesse próprio em contradizer, nem a sua intervenção é necessária para que a acção produza o seu efeito útil normal, sequer para apurar a realidade dos factos em que pessoalmente interveio.

IV. Inquestionada a assim adquirida titularidade do domínio pelo Banco e visando este entrar na posse efectiva do imóvel detido pela Sociedade (locatária), a estrutura de tal acção assemelha-se à de reivindicação. Porém, formulando-se, a título principal, o pedido de declaração de nulidade do contrato e, apenas a título subsidiário, o de caducidade ou ineficácia do mesmo, logicamente, embora este se restrinja a uma questão de direito e até se perspective logo a sua procedência, deve, primeiro, conhecer-se da matéria daquele.

V. A procedência da acção de simulação depende da alegação e prova de factos subjectivos essenciais, que podem ser alegados e demonstrados directa ou indirectamente. Por se processarem a nível interno ou psíquico e se revelarem em parcas manifestações externas, eles são de difícil percepção. Logo, a sua prova é quase sempre feita através da de factos instrumentais ou indiciários, avaliados no seu relevo e significado em função de presunções naturais e das máximas da experiência.

VI. A demonstração de tais pressupostos respeita à questão de facto. Respeitando tal tarefa ao julgamento da respectiva matéria, ela deve confinar-se, na estrutura da sentença, à parte da motivação da respectiva decisão. Por sua vez, a impugnação desta, no recurso, deve pautar-se pelas regras legais exigidas para a sua modificação, designadamente no artº 640º, CPC.

VII. Apontando todos os factos indiciários apurados, em conjugação com as máximas da experiência e as presunções naturalmente extraíveis, no sentido de que o contrato foi efectivamente simulado, devem dar-se como provados os respectivos factos essenciais, ainda que de carácter subjectivo. A partir destes se fará, então, a subsunção jurídico-normativa.

VIII. Apesar do disposto nos artºs 165º e 109º, nº 3, do CIRE, à transmissão da propriedade de imóvel, em execução universal (nos termos referidos no ponto 2 antecedente), tal como na que ocorre no âmbito de qualquer execução judicial, é aplicável o disposto no artº 824º, nº 2, do C. Civil. Por isso, a Sociedade sua detentora não pode invocar, para justificar a recusa em entregá-lo ao Banco (quer o adquire livre), o contrato de arrendamento pelo insolvente com ela celebrado já depois da referida oneração real (hipoteca em favor deste), designadamente por não ser aplicável ao caso o disposto no artº 1057º.

IX. Uma vez que a Sociedade locatária, quando instada pelo Banco, na pessoa do devedor insolvente – que corporizava os seus interesses e actividade aparentes e actuava como seu gerente de facto – se recusou a entregar o imóvel, continuando a usufruir dele, apesar de bem ciente da transmissão do domínio pleno para aquela e que o contrato de arrendamento era simulado – como também sabiam aquele gerente de facto e os seus anteriores gerentes de direito (o próprio devedor, o filho e a namorada entretanto adquirente das quotas) – ou, pelo menos, que, face à hipoteca anterior e à venda na insolvência, tal negócio não lhe era oponível, ela responde civilmente pelos danos causados, e não a Massa Insolvente vendedora.
 


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 
 
"Estabelece o artº 824º, do CC:

1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. 
 
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
 
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens.
”.

Sendo certo que, em face dela, os bens vendidos em execução são transmitidos livres – livres dos direitos reais de garantia que os onerarem bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia (salvo os que, constituídos antes destes, sejam eficazes em relação a terceiros independentemente de registo), os quais, portanto, caducam – pode, com efeito, questionar-se se o nº 3, do artº 109º, do CIRE, apenas se limita a salvaguardar o locatário dos seus direitos em geral civilmente reconhecidos em caso alienação da coisa (como o da manutenção da sua posição contratual e direito de preferência) mas não obsta, antes cede, aos direitos do adquirente nas circunstâncias e segundo os termos referidos no nº 2, do artº 824º, do CC.

Qualificando-se tal direito do locatário como real (de gozo), fácil parece ser enquadrá-lo no âmbito daqueles “demais direitos reais” ali definido que, assim, cedem ante o adquirente.

Afastando-se essa qualificação, já a tarefa hermenêutica surge mais complicada: prevalece, designadamente na insolvência por força da aplicação ampla do nº 3, do artº 109º, do CIRE, o artº 1057º, do Código Civil, mantendo-se a relação locatícia apenas subjectivamente modificada pela mudança de senhorio? 

Ou caduca o arrendamento e liberta-se o adquirente do vínculo obrigacional que desse contrato provinha desde que, não estando ele sequer sujeito a registo, “não tenha sido constituído antes de qualquer arresto, penhora ou garantia”, não produzindo, por isso, quaisquer efeitos contra o terceiro adquirente?

Nesta última hipótese, para o arrendamento ser oponível ao adquirente teria de a sua constituição ser anterior [...] e produzir, independentemente daquele, efeitos em relação a terceiros.

Ora, está consolidada quase unanimemente na Jurisprudência o entendimento de que:

- o direito ao arrendamento não tem natureza real;
 
- apesar disso, o arrendamento de prédio posterior à sua hipoteca ou à sua penhora caduca ou, pelo menos, é ineficaz em relação ao adquirente na venda executiva (ou inoponível);
 
- o mesmo acontece na venda em liquidação da massa insolvente.

Relativamente à venda executiva, entre muitos e desde há muito prolatados arestos (na sua grande maioria relevando favoravelmente a posição do adquirente), vamos destacar de seguida alguns, notando-se desde já o respaldo em boa parte deles encontrado na Doutrina, particularmente de Oliveira Ascensão [Que exaustivamente tratou a matéria em estudo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Setembro/1985, páginas 345 a 390, especialmente 355 e sgs.] e de M. Henrique de Mesquita [Na sua obra Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1997, página 140, nota 18, onde considera inaplicável o frequentemente invocado artº 1057º, do CC à venda da coisa locada em processo executivo].

- O Acórdão do STJ, de 31-10-2006 [Proferido no processo 06A3241, relatado pelo Consº Urbano Dias], relativamente a caso em que o arrendamento foi celebrado já depois de penhorado o prédio também antes dado de hipoteca, entendeu que: 

“À luz do art. 824º do CC, o contrato de arrendamento é considerado como um verdadeiro ónus em relação ao prédio.
 
Daí que, vendido o prédio em sede executiva, o contrato de arrendamento celebrado depois da constituição de hipoteca e da penhora caduque automaticamente.
 
O simples facto de só passados oitos [sic] após a aquisição a A., adquirente do prédio onerado com o arrendamento, ter vindo a juízo fazer valer os seus direitos em nada colide com o instituto do abuso de direito.”.

Fundamentou-se assim a orientação nele perfilhada:

“Com efeito, independentemente de se curar da hipoteca e da repercussão do registo da mesma em relação ao contrato de arrendamento, uma coisa é certa: no caso presente, houve a efectivação de uma penhora que foi devidamente registada antes da celebração do contrato de arrendamento que serviu de base a outros negócios e que, por isso mesmo, levou a que, consumada a venda executiva, o prédio fosse entregue ao comprador (no caso a própria Empresa-A) livre do ónus do arrendamento. Ou seja, com a concretização da venda, automaticamente caducou o contrato de arrendamento.
 
Com esta argumentação que, repetimos, temos por perfeitamente correcta atenta a factualidade dada como provada, o problema fica resolvido.
 
Caduco o referido contrato de arrendamento, automaticamente caducam todos os outros contratos que foram sendo celebrados no pressuposto da validade e eficácia daquele.
 
Mas não podemos olvidar que, in casu, estamos perante execução hipotecária, com a garantia registada antes da celebração do contrato de arrendamento.
 
Mas isso não altera em nada o que se disse.
 
A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor da coisa pertencente ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores, como resulta do nº 1 do art. 686º do CC. É claro que tal garantia há-de manifestar-se com toda a acuidade em sede executiva, esgotadas que sejam as possibilidades de o credor fazer valer as suas potencialidades por via amigável.
 
Assim, não tendo a credora Empresa-A feito valer por via da negociação os seus direitos garantidos pela hipoteca, outro remédio não tinha que não fosse o recurso à via judicial, concretamente à acção executiva.
 
Proposta a competente acção, seguiu-se a penhora do imóvel hipotecado, em observância do disposto no art. 835º do CPC.
 
A execução prosseguiu até à fase da venda e, com a adjudicação do imóvel hipotecado e penhorado, foi ele libertado de todos os ónus a fim de ser entregue ao arrematante, tal-qualmente o mesmo foi pracejado.
 
E, por isso mesmo, é que o contrato de arrendamento caducou automaticamente.
 
Se assim não fosse, perderia todo o alcance a garantia real.
 
Mas, a verdadeira dificuldade do problema está em saber se o arrendamento é um verdadeiro ónus para este efeito.
 
Caso a resposta seja positiva, encontraremos a solução, em tese geral, para o caso concreto, não obstante o resultado já alcançado por via da particularidade do mesmo, tal como o Relação o fez.

Vejamos, então.
 
O art. 819º do CC, na sua redacção originária e aplicável ao caso, tendo em conta a temporalidade dos factos em causa, dispunha que "sem prejuízo das regras de registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados".
 
À luz deste preceito discutia-se já se o arrendamento era, para este efeito, um verdadeiro ónus, não faltando jurisprudência a aceitar semelhante tese.
 
Exemplar é o acórdão deste Supremo Tribunal de 06 de Julho de 2000 que aprofundadamente debateu o problema e chegou à conclusão de que "a venda judicial, em processo executivo, de fracção hipotecada faz caducar o seu arrendamento, não registado, quando posteriormente celebrado à constituição e registo daquela hipoteca, por na expressão «direitos reais» mencionada no art. 824º, nº 2 do CC se incluir, por analogia, aquele arrendamento" (in C.J. - Acs. STJ -, Ano VIII - Tomo II, pág. 150 e ss.).
 
Data venia, desde já adiantamos que este nos parece ser o ponto de vista correcto.
 
Na verdade, o art. 1057º do CC preceitua que "o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo".
 
Consagra, pois, este preceito legal a regra "emptio non tollit locatum".
 
A sua excepção surge apenas com respeito ao que está estabelecido no direito registral.
 
Como assim, um contrato de arrendamento (registado ou não) celebrado antes do registo de hipoteca, arresto ou penhora é oponível a estes actos (no caso de arrendamento sujeito a registo e não registado é que ele só poderá ser oponível pelo prazo pelo qual podia ser feito sem sujeição a registo).
 
Mas já um contrato de arrendamento, sujeito a registo e registado, celebrado após aqueles actos posteriormente a constituição de arresto, hipoteca ou penhora extingue-se com a venda.
 
Isto mesmo resulta do respeito pelo estabelecido no art. 6º do CRP, nº 1 - "o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe seguirem relativamente aos mesmos bens".
 
Mas o que nos preocupa, de verdade, é saber se o mesmo também se verifica em relação a um arrendamento não sujeito a registo celebrado após serem levados a registos hipotecas, arrestos ou penhoras.
 
Pela nossa parte, entendemos que não há razão para dar mais protecção aos arrendamentos não sujeitos a registo celebrados após aqueles actos do que aos arrendamentos não sujeitos a registo ou aos registáveis e não registados. Tanto num caso como noutro, a situação locatícia não merece qualquer protecção.
 
Seguir por caminho diferente daria azo a graves injustiças, pois estaríamos a criar um regime de favorecimento em relação a estas situações não registadas: nestes casos, os arrendatários veriam a sua situação perfeitamente segura, apesar da venda executiva do imóvel e quiçá com arresto ou hipoteca prévios.
 
E a injustiça sairia até reforçada nos casos de o contrato de arrendamento não estar registado apesar da sua obrigatoriedade. Nestes casos, valeria bem a pena não registar o contrato.
 
É que registando-o, mais dia, menos dia, havendo registo prévio de penhora, arresto ou hipoteca, a sua situação estava ficaria definida com a venda executiva do imóvel e no sentido da caducidade do arrendamento.
 
Mas já o caso mudaria radicalmente de figura se o arrendamento não estivesse registado ou não fosse registável.
 
O Direito, sob pena de se negar, não pode aceitar esta dualidade de critérios: há que considerar que o arrendamento surge aqui e agora como um verdadeiro ónus quer esteja sujeito a registo quer não.

Assim, no caso de não estar o arrendamento sujeito a registo ou, estando-o, não ter sido registado, há que, no caso de venda executiva com penhora, hipoteca ou outro direito real registados, julgar o mesmo caduco."

[MTS, "BH", 2/9/2018]