"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/09/2018

Jurisprudência 2018 (67)


Processo de interdição;
intervenção de terceiros


1. O sumário de RG 20/3/2018 (87/17.7T8BRG-A.G1) é o seguinte:

I - O processo especial de interdição destina-se a averiguar se o requerido, por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, não está capaz de cuidar da sua pessoa bem como de gerir os seus bens.

II - O objectivo específico deste processo, relacionado com a saúde do requerido e consequências para o próprio e respectivo património, é incompatível com a finalidade do incidente de intervenção espontânea, uma vez que o interveniente não poderá ter um interesse igual ao do autor ou do réu, no sentido de fazer valer um direito próprio.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A Recorrente, casada com o Requerido, na pendência da presente acção de interdição, apresentou articulado de intervenção nos autos, alegando, em resumo, que viveram em união de facto durante cerca de 30 anos, tendo um interesse igual ao Requerido, tanto mais que o presente processo foi requerido pelo filho que, há cerca de uma década, não fala com o pai, estando os dois de relações cortadas.

A decisão impugnada considerou ser inadmissível a intervenção espontânea da Recorrente, rejeitando-a liminarmente.

Nos termos do art.º 546.º, n.º 1 e 2 do C.P.Civil, o processo pode ser comum ou especial, sendo que o especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei, como sucede com a acção de interdição, inserida no livro V do C.P.Civil, referente aos processos especiais (cfr. art. 891.º e segs.).

Sobre esta matéria, A. dos Reis (Processos Especiais, vol. I, pág. 2) pronunciou-se esclarecendo que há certos direitos materiais que não podem ser declarados ou realizados através das formas de processo comum, razão pela qual o legislador criou processos cuja tramitação se ajustasse à índole particular do direito, isto é, cujos actos e termos fossem adequados para se obter o fim em vista-a declaração ou execução do direito de que se trata.

Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum (cfr. art. 549.º, n.º 1 do CPC).

Sobre o processo de interdição, A. dos Reis (
Ob. cit., pág. 37) adiantou que é regulado:

a) Em primeiro lugar pelas disposições contidas nos arts. 944.º a 958.º (actualmente arts. 891.º a 905.º)

b) Em segundo lugar, se estes artigos não forem suficientes, pelas disposições gerais e comuns;

c) Em terceiro lugar, pelas normas relativas ao processo ordinário.

Sublinhando ainda que se recorre às disposições gerais e comuns se as disposições privativas do processo especial não forem suficientes para prover à matéria.

Cumpre notar, em primeiro lugar, que na disciplina processual aplicável ao processo de interdição, e nas disposições gerais e comuns, nada consta sobre a possibilidade de ser deduzido o incidente de intervenção espontânea.

Concretamente, no que concerne à admissibilidade da intervenção espontânea da Recorrente, regem os artigos 311.º e 312.º do C.P.Civil: exige-se uma situação de litisconsórcio (cfr. arts. 32.º, 33.º e 34.º) na qual o interveniente faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu, apresentando o seu próprio articulado ou aderindo aos apresentados pela parte com quem se associa.

Segundo o preceituado no artigo 138.º, n.º 1 do C.Civil podem ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens.

Por conseguinte, o processo especial de interdição destina-se precisamente a averiguar a incapacidade do interditando, por algum daqueles motivos, de forma a se poder concluir que não está capaz de cuidar da sua pessoa bem como de gerir os seus bens.

Sendo um processo com um objectivo muito específico, relacionado com a saúde do requerido e consequências para o próprio e respectivo património, não é possível suscitar-se qualquer questão de listisconsórcio, como poderá suceder num processo normal em que há partes contrapostas, a fazerem valer os seus direitos.

Numa palavra, neste tipo de acção, o interveniente não poderá ter um interesse igual ao do autor ou do réu, no sentido de fazer valer um direito próprio, uma vez que tal é incompatível com a natureza e finalidade deste processo especial.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Rel. de Coimbra, de 29.05.2012, o único direito ou interesse próprio que está em causa, na acção de interdição, respeita ao requerido que é o beneficiário do pedido.

Portanto, a intervenção espontânea do cônjuge do Requerido, para, ao que parece, se associar a este último, não tem, na nossa perspectiva, qualquer fundamento legal.

Por outro lado, e no que respeita ao momento em que a intervenção é legalmente admissível, também não podia ser aceite porquanto a lei exige que o articulado seja apresentado até ao termo dos articulados (cfr. art. 314.º CPC).

Ora, considerando que, no presente processo de interdição, a acção não foi contestada, inexiste uma fase de articulados que permita a apresentação de uma intervenção espontânea (cfr. art. 894.º e 895.º CPC).

No mesmo sentido da inadmissibilidade do incidente de intervenção de terceiros na acção de interdição, o Acórdão da Rel.do Porto, de 19/09/2013 [...] concluiu que nela apenas está em causa o interesse do requerido e este está acautelado pela actuação da pessoa a quem a lei reconhece legitimidade para requerer a interdição.

Das razões aduzidas decorre que a decisão impugnada deve ser mantida por se mostrar em total conformidade com as disposições legais aplicáveis."

3. [Comentário] A solução constante do acórdão está certa, mas poderia ter sido fundamentada de uma forma muito mais simples. Segundo o disposto no art. 141.º, n.º 1, CC, "a interdição pode ser requerida pelo cônjuge do interditando, pelo tutor ou curador deste, por qualquer parente sucessível ou pelo Ministério Público". Assim, não tendo o cônjuge do filho do interditando legitimidade para propor a acção, é evidente que também não tem legitimidade para nela intervir.

MTS