Providência cautelar não especificada;
recurso; conclusões
1. O sumário de RP 26/4/2018 (5219/17.2T8VNG-A.P1) é o seguinte:
I - As conclusões do recurso são a indicação sintética dos fundamentos por que se pede a alteração, revogação ou anulação da decisão. Cumprem importante missão de levantamento das questões controversas, procurando evitar a impugnação geral, vaga, imprecisa e indefinida, mas, também, a viabilização do exercício do contraditório, de modo a não criar dificuldades acrescidas à posição da outra parte, privando-a de elementos importantes para organizar a sua defesa, em sede de contra - alegações.
II - O ónus imposto na parte final do art.º 639º, nº 1, do Código de Processo Civil - da conclusão sintética - deve ser interpretado com moderação, importando mais ver em tal imposição uma recomendação de boa técnica processual, do que um comando rigoroso e rígido, a aplicar com severidade e sem contemplações.
III - Se, com base num contrato de mandato sem representação, o mandatário adquire uma quota de uma sociedade comercial para a transferir para o mandante e, em vez disso, promove, como sócio e gerente da sociedade, uma assembleia geral para aprovação de um aumento do capital social para um valor tão elevado que reduz a quota a entregar ao mandante de 57% para 2,478% do capital, perspetivando-se mesmo a dissolução da sociedade por vontade dos sócios (qualidade que o Requerente ainda não tem mas já deveria ter), deve ser admitido procedimento cautelar que acautele o interesse do requerente/mandante enquanto não for proferida decisão final no processo principal de execução específica do contrato de mandato.
IV - A tutela cautelar da posição do mandante, não obstante não ser ainda sócio da sociedade, assenta no direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva já proposta, ao abrigo do nº 2 do art.º 362º do Código de Processo Civil, sendo adequada a providência cautelar comum ou não especificada.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Dispõe o nº 1 do art.º 380º do Código de Processo Civil que “se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável”.
A providência específica da “suspensão de deliberações sociais” visa antecipar determinados efeitos resultantes da sentença da ação (principal) declarativa, da nulidade ou da anulabilidade, prevenindo assim a execução de uma deliberação formal ou substancialmente inválida, mas suscetível de se repercutir negativamente na esfera jurídica do sócio ou da sociedade ou outra pessoa coletiva. Exerce uma função instrumental relativamente às ações de declaração de invalidade de deliberações sociais.
A causa de pedir desta providência deve respeitar a factos cujo apuramento sumário permita a conclusão, com grau de probabilidade necessário, pela verificação dos seus requisitos legais, traduzindo-se o pedido na suspensão dos efeitos da deliberação não executada ou ainda não integralmente executada. Faz sentido o seu uso quando a situação litigiosa tenha origem numa deliberação cuja execução se pretenda evitar, com a alegacão dos prejuízos que daí possam decorrer.
Compreende-se, pois, a determinação legal prevista no nº 3 do art.º 381º do Código de Processo Civil, de que, a partir da citação e enquanto não for julgado em l.ª instância o pedido de suspensão, não é lícito à associação ou sociedade executar a deliberação impugnada, ou o que dela falta executar.
Para que a providência seja decretada, hão de verificar-se os pressupostos conaturais das providências, o fumus boni juris, correspondente, no caso, à probabilidade da verificação de um desses vícios geradores de nulidade ou de anulabilidade da deliberação, e o periculum in mora que a lei faz corresponder à verificação, em termos de probabilidade, do perigo de ocorrência de dano apreciável decorrente da execução da deliberação inválida.
A legitimidade para a instauração do procedimento cautelar de suspensão da deliberação a lei depende da qualidade de sócio (art.º 380º, nº 1, do Código de Processo Civil) e a legitimidade passiva para a ação ou para a suspensão pertence unicamente à sociedade (art.º 60º, nº 1, do CSC.) [A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, 4ª edição, IV volume, pág. 90].
Com toda a evidência, não é este o procedimento cautelar destinado a acautelar o direito que o Requerente invocou. Não só não tinha ele legitimidade ativa para instaurar a ação de invalidade de uma deliberação social ou o referido procedimento cautelar especificado, como a ação principal não visa qualquer desses fins, não está em causa a suspensão de qualquer deliberação social e não foi demandada a sociedade.
A Requerente não usou, e bem, do referido procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais.
Nenhum outro procedimento cautelar especificado se adequa às caraterísticas do caso concreto - sobretudo, face à necessária ponderação do risco de lesão especialmente prevenido por cada uma das providências específicas previstas na lei - , pelo que a única via possível de ação cautelar é a que o Requerente usou, ou seja, o procedimento cautelar comum ou providência cautelar não especificada, aquele que tem cariz residual. Portanto, aquele que constitui o instrumento apropriado à dedução e apreciação de pretensões de natureza cautelar que não têm guarida em qualquer dos restantes procedimentos.
O Requerente respeitou o princípio da legalidade das formas processuais, observando o que consta do nº 3 do art.º 362º do Código de Processo Civil.
Dispõe ainda o art.º 362º do Código de Processo Civil:
«1- Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
2- O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
(…).».
Entendeu-se na decisão recorrida que o Requerente pretende “obter efeitos semelhantes aos de um procedimento de suspensão de deliberações sociais, sem que se verifiquem os respetivos pressupostos, relativamente a uma eventual deliberação social, à margem da necessária ponderação a efetuar por forma a harmonizar os interesses contrapostos, do Requerido, em cuja esfera jurídica se poderá repercutir de forma negativa a execução de uma deliberação social de aumento de capital ou de dissolução da sociedade, e a sociedade, que poderá sofrer uma perturbação e até mesmo um prejuízo com a suspensão da deliberação social, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal, tanto mais que não lhe é dada a possibilidade de exercer o respetivo contraditório, por não ser parte no presente procedimento, o que contraria o já mencionado princípio da legalidade das formas processuais”.
Acrescenta que, “ainda que assim não se entendesse, o eventual direito de propriedade de uma quota com o valor nominal de €2.850,00, atualmente representativa de 57% do capital social da sociedade D…, Lda., a adquirir por força da decisão final a proferir na ação principal, não confere ao Requerente o direito de interferir na sociedade à qual é alheio, através de uma limitação do direito de voto do Requerido, impedindo a sociedade de formar e exteriorizar livremente a sua vontade por meio de deliberação social, por forma a salvaguardar uma posição que o Requerente, neste momento, não tem, na referida sociedade”.
Ainda na perspetiva da sentença, a expetativa de aquisição do direito pelo Requerente não pode justificar a sua interferência na vida da sociedade através da imposição ao Requerido de um comportamento omissivo, impedindo-a de deliberar sobre os assuntos que o conjunto dos sócios entenda relevantes para o exercício da sua atividade, até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida. Daí que o eventual direito a adquirir por força da decisão que vier a ser proferida na ação principal só possa ser exercido pelo Requerente no futuro, concluiu a sentença.
Invoca o Requerente a celebração de um contrato de mandato sem representação entre ele, na qualidade de mandante, e o Requerido, na qualidade de mandatário.
Estaremos, assim, perante uma situação de interposição real de pessoas: o interposto atua em nome próprio, mas no interesse e por conta de outrem, por força de um acordo entre ele e um só dos sujeitos. Devem cumprir-se duas finalidades: uma imediata, consistente em ato ou atos a praticar pelo mandatário e, normalmente por terceiros e uma mediata, através da qual o mandatário deve transferir, para o mandante os efeitos daquele ou daqueles atos. Enquanto os não transferir, o mandatário adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos que celebra (art.ºs 1157º, 1180º e 1181º, nº 1, do Código Civil).
O Requerido estará, por isso, na posse de 57% do capital social da D… que adquiriu em nome próprio, com a obrigação de o transferir para o Requerente em execução do mandato. Enquanto a transferência do direito não for efetuada, exerce o direito e assume as obrigações de corrente do negócio que efetuou com terceiro. Os direitos e obrigações decorrentes do negócio produzem-se na esfera jurídica do mandatário, que fica com a obrigação de os transferir para a pessoa por conta de quem age, ou seja, o mandante. É o mandatário que adquire os direitos e assume as obrigações dos atos que celebra, porém com a obrigação de os transferir para o mandante, por conta de quem agiu, através de um novo ato (alienação solutionis causa) cuja causa é precisamente a “causa mandati”.
Conforme a alegação do Requerente, o Requerido não cumpriu o mandato na parte em que deveria ter transferido para o primeiro as ações que adquiriu por conta dele. Não podendo nós adiantar o resultado da ação principal, a verdade é que lhe foi dada a configuração de uma ação de execução específica, pela qual se visa obter os efeitos da declaração negocial, ou seja, a transferência para o Requerente da propriedade de uma quota com valor nominal de €2.850,00, representativa de 57% do capital social da D… e respetivo registo oficioso na Conservatória do Registo Predial (pedido principal).
É, sem dúvida, uma ação constitutiva, destinada a autorizar uma mudança na ordem jurídica, mediante o exercício pelo Requerente de um direito potestativo.
O direito emergente de decisão a proferir pode justificar o recurso à providência cautelar comum, como resulta expresso no nº 2 do art.º 362º do Código de Processo Civil."
[MTS]