"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/09/2018

Jurisprudência 2018 (70)


Obrigação solidária; insolvência;
perda de benefício do prazo 


1. O sumário de STJ 18/1/2018 (123/14.9TBSJM-A.P1.S2) é o seguinte:

I - A obrigação solidária de restituição do capital mutuado e respectivos juros, nos prazos estabelecidos nos contratos de mútuo com hipoteca, celebrados entre o banco exequente e a recorrente e o executado, constitui uma obrigação a prazo, em que a exigibilidade do cumprimento é diferida para um momento posterior.

II - Esta possibilidade constitui um benefício, em regra, do devedor (cfr. art. 779.º do CC): o credor não pode exigir a prestação antes do fim do prazo, embora assista ao devedor o direito de proceder à sua realização a todo o tempo, renunciando a esse benefício.

III - Contudo, para além dos casos de exigibilidade antecipada previstos nos arts. 780.º e 781.º, ambos do CC, prevê o art. 91.º, n.º 1, do CIRE, que, com a declaração judicial de insolvência, a dívida a prazo se vence antecipadamente, sem necessidade de interpelação do credor ao devedor: dá-se o vencimento automático antecipado.

IV - A perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda.

V - Ao proceder ao bloqueamento do acesso à conta bancária onde era processado o pagamento das prestações, o banco exequente impossibilitou que continuassem a ser pagas as prestações mensais e sucessivas relativas aos dois contratos de mútuo, razão única pela qual os pagamentos não foram efectuados, não dispondo, consequentemente, de fundamento legal para considerar vencidas todas as prestações ainda em dívida e exigi-las da co-executada recorrida.
 
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"A exigibilidade antecipada dá-se nos dois casos referidos no artigo 780º do CC, ou seja, quando ocorra insolvência do devedor [...], ainda que esta não tenha sido judicialmente declarada, ou quando, por causa imputável ao devedor, se mostrem diminuídas as garantias do crédito ou não prestadas as garantias prometidas. Nestas duas situações, fica ao critério do credor fazer vencer a dívida mediante a interpelação do devedor. Dá-se, ainda, na situação prevista no artigo 781º do CC, com a falta de pagamento de uma prestação nas dívidas a prestações, desde que, neste último caso, as partes não tenham clausulado coisa diversa [...].

Existe, contudo, uma situação em que a dívida a prazo se vence antecipadamente, sem necessidade de interpelação (vencimento automático antecipado). É o que se passa com a declaração judicial de insolvência (artigo 91º, n.º 1, do CIRE).

No caso dos autos, um dos devedores – o DD – foi declarado insolvente – cfr. alínea g) dos factos provados.

Conforme dispõe o artigo 91º, n.º 1, do CIRE, a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.

Bem se compreende a razão de ser desta disposição, pois não fará sentido manter-se o prazo da prestação quando o tribunal confirma, através da sentença declaratória da insolvência, a impossibilidade de o devedor solver as suas obrigações. Nessa hipótese, não obstante a estipulação de prazo a favor do devedor, o credor pode exigir o cumprimento imediato da obrigação.

Baseada nesse facto, entende a recorrente que o vencimento automático da obrigação abrange a condevedora AA, aqui embargante/recorrida, devendo considerar-se também vencida a totalidade da obrigação quanto a ela.

Torna-se, portanto, necessário averiguar se a circunstância da insolvência do devedor DD tem algum efeito no âmbito das relações externas entre a embargante condevedora e o credor exequente.

A obrigação solidária é hoje vista não como uma só obrigação com pluralidade de sujeitos, mas antes como uma pluralidade de obrigações, ligadas entre si por um certo nexo, que procede não só da identidade da prestação, como da comunhão de fim das várias obrigações[5]. Por isso se diz que existe, na obrigação solidária, uma multiplicidade de vínculos, sendo distinto ou independente o que une o credor a cada um dos condevedores e o que liga cada um destes àquele.

Consonante com esta configuração da natureza da obrigação solidária, dispõe o artigo 782º do CC que a perda de benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.

Pires de Lima e Antunes Varela ["Código Civil Anotado", Volume II, edição de 1968, página 25], com a clareza expositiva que todos conhecem, anotam esse preceito do seguinte modo:

“Esta disposição tem carácter genérico: refere-se a todos os casos, previstos na lei, de perda do benefício do prazo.

Pode tratar-se ou não de uma obrigação solidária. Em qualquer caso, só ao devedor que der causa ao vencimento imediato da obrigação pode ser exigido o cumprimento (total ou parcial) antes de terminar o prazo. E, cumprida a obrigação, o solvens não pode exercer o direito de regresso, sendo a obrigação solidária, antes do vencimento. É o que resulta não só deste artigo 782º, como do n.º 1 do artigo 525º”

Na verdade, a perda do benefício do prazo, tendo carácter pessoal, não se estende aos co-obrigados [...] do devedor, nem aos terceiros que garantam o cumprimento da obrigação, salvo se, por convenção das partes, houver estipulação que afaste a aplicação da disciplina do artigo 782º, dada a natureza supletiva deste preceito [...] - cfr. artigo 405º, nº 1, do Código Civil.

Ora, contrariamente ao que sustenta a recorrente [...], a aplicação do artigo 782º não se mostra afastada pelo clausulado nos contratos de mútuo com hipoteca, designadamente pelo ponto 3 da cláusula décima-sexta [...].

O que aí se diz é que “assiste ainda à IC (BB) o direito de pôr termo ao contrato e exigir o integral reembolso daquilo que lhe for devido por força do mesmo, se o ‘Mutuário’ deixar de cumprir qualquer obrigação contratual, ou se se verificar qualquer das situações previstas no artigo 780º do Código Civil, designadamente se o ‘Mutuário’ se tornar insolvente ou se, por causa que lhe seja imputável, diminuírem as garantias do crédito ora concedido”.

Como judiciosamente se afirma na sentença recorrida, com integral acolhimento no acórdão recorrido, “na referida cláusula não se explicita que é exigível o integral reembolso a todos os mutuários, mesmo aos não insolventes. Aliás, fala-se em mutuário como se fosse singular pelo que a mesma não é unívoca. Por fim, supletivamente aplica-se o previsto no art. 782º do CC, salvo quando as partes expressamente estipulem um regime diverso o que, a nosso ver, não resulta, aos olhos do normal declaratário – cfr. art. 236º, nº 1, do CC”.

A perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que, entenda- -se, não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda. Antunes Varela adianta, a este propósito, que esta seria a solução imposta pelos princípios fundamentais da solidariedade, em matéria de meios pessoais de defesa, sendo que o artigo 782º não deixou de a consagrar, aberta e directamente, dizendo que a perda do benefício do prazo não se estende ao co-obrigados do devedor [“Das Obrigações em Geral”, Volume II, 4ª edição, página 54].

A alusão à obra de Pestana de Vasconcelos, “Direito das Garantias”, não constitui qualquer contributo para reforço da tese do recorrente, uma vez que o que aí vem afirmado não a corrobora.

Quando esse autor refere [2ª edição, 2015, página 186] que um dos principais riscos que a solidariedade passiva pretende afastar é o da insolvência de um dos condevedores e que, se tal se verificar, o credor poderá exigir o cumprimento integral da obrigação ao outro condevedor, isso não é mais do que sublinhar um dos traços caracterizadores da solidariedade passiva: a extensão integral do dever de prestar em relação a todos os devedores.

Coisa diferente é o tempo em que será exigível essa prestação por parte do credor em relação ao devedor não insolvente. Esse tempo será o que estiver convencionado no contrato, até que surja – se surgir – qualquer evento que produza efeito antecipatório no vencimento.

O BB, apesar disso, reclamou da condevedora AA a totalidade da dívida em falta e, em Setembro de 2013, promoveu o bloqueamento da conta bancária relativa àqueles dois contratos de mútuo, o que impossibilitou o pagamento das respectivas prestações mensais – cfr. alínea m) –, sendo que, até essa ocasião, as obrigações decorrentes dos contratos vinham a ser pontualmente cumpridas – cfr. alíneas l) e o) dos factos provados.

Para tentar pagar, o executado DD comunicou com a Administradora de Insolvência, solicitando-lhe que enviasse comunicação ao exequente para desbloqueamento da conta bancária. A Administradora de Insolvência comunicou ao exequente a ordem de desbloqueamento, emitindo o respectivo certificado em 24 de Setembro de 2013. Nessa sequência, o desbloqueamento da conta foi momentâneo (durante um dia), voltando a conta a estar bloqueada, pelo que a movimentação da conta não era possível. Os executados contactaram o gestor da conta, sendo informados que todos os processos de crédito se mantinham bloqueados e sob gestão da Direcção de Crédito, impossibilitando, assim, não só a movimentação da conta bancária, como o depósito das prestações e consequente amortização do crédito – cfr. alíneas n), p), q) e r) dos factos provados.

Como se vê, foi o exequente que, ao proceder ao bloqueamento do acesso à conta bancária onde era processado o pagamento das prestações, impossibilitou que continuassem a ser pagas as prestações mensais e sucessivas relativas aos dois contratos de mútuo, tendo sido só essa a razão por que tais pagamentos não foram feitos.

De qualquer modo, o que importa reter é que o exequente não dispunha de fundamento legal para considerar vencidas todas as prestações ainda em dívida e exigi-las da recorrida."
 
[MTS]