"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/09/2018

Jurisprudência (848)


Caso julgado; extensão subjectiva;
substituição processual


1. O sumário de STJ 20/12/2017 (2377/12.6TBABF.E1.S2) é o seguinte: 

I - Residindo o fundamento do caso julgado no prestígio dos tribunais e em razões de certeza e segurança jurídicas, vêm-se distinguindo na doutrina e na jurisprudência duas figuras: (i) a excepção dilatória do caso julgado; e (ii) a autoridade do caso julgado.

II - Enquanto a excepção do caso julgado requer a verificação da tríplice identidade estabelecida no art. 581.º do CPC (de sujeitos, pedido e causa de pedir), a autoridade do caso julgado, segundo a doutrina e a jurisprudência actualmente dominantes, pode dela prescindir, estendendo-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado, implicando o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior, cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

III - Tendo corrido termos acção de execução específica de contrato-promessa que foi julgada procedente, sem que tenha sido aí invocada a nulidade, por simulação, desse contrato, a validade substancial deste não se apresenta como pressuposto inarredável numa segunda acção intentada por quem naquela primeira não foi parte.

IV - A afectação de terceiros pelo caso julgado pode ocorrer, essencialmente, através: (i) da eficácia reflexa do caso julgado; e (ii) da extensão do caso julgado a terceiros.

V - Um dos domínios da extensão do caso julgado a terceiros é o da substituição processual, situação em que a lei admite que seja parte no processo quem não é sujeito da relação material, posto que, ocorrendo transmissão, por acto entre vivos, de coisa ou direito litigioso, o adquirente pode substituir-se ao transmitente, não sendo, contudo, forçoso que o faça (art. 263.º, n.º 1, do CPC).

VI - Se a habilitação não for promovida e o processo seguir até final com a intervenção do transmitente, a sentença produzirá efeitos em relação ao adquirente, passando a constituir quanto a ele caso julgado, ainda que o mesmo não intervenha no processo; só assim não será no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente tiver registado a transmissão antes do registo da acção (art. 263.º, n.º 3, do CPC).

VII - Tendo a recorrente adquirido o prédio em questão quando a acção de execução específica do contrato-promessa se mostrava pendente e já estava registada, sem cuidar de averiguar esse facto ou, tendo-o constatado, sem cuidar de deduzir a competente habilitação a fim de intervir no processo e de aí fazer valer o seu direito, o caso julgado formado pela sentença que nessa acção foi proferida vincula-a, independentemente de nela não ter tido intervenção, ficando, assim, vedada a apreciação, numa nova acção, das questões da validade ou não do contrato-promessa e da propriedade sobre o dito prédio.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A sentença de 1.ª instância, procedeu, aliás, a exaustiva enunciação das posições doutrinárias que, neste particular, têm sido adoptadas.

E foi com base na mencionada distinção que a Relação, acompanhando a fundamentação vertida na decisão da 1.ª instância, decidiu, em parte, que se verificava a excepção de caso julgado na dimensão da autoridade do caso julgado, considerando, para tanto, que a procedência da acção que julgou a execução específica do contrato-promessa que a recorrente pretende agora ver declarado nulo, por simulação, trazia ínsita a validade desse mesmo negócio e que, nessa medida, tal fundamento estava abrangido pelo instituto do caso julgado.

Trata-se, porém, de conclusão que não é isenta de dúvidas, posto que, ao julgar procedente uma acção de execução específica de um contrato-promessa – em relação ao qual não foi invocado qualquer específico vício, designadamente, por divergência entre a vontade e a declaração –, o Tribunal afere, apenas e tão só, da validade formal ou aparente desse contrato, sem que possa dizer-se que a sua validade substancial esteja abrangida pelo caso julgado material.

O mesmo é dizer que, não tendo sido invocado o concreto vício da nulidade fundada em simulação do contrato na acção de execução específica que correu termos, a sua validade substancial não se apresenta como pressuposto inarredável numa segunda acção intentada por quem naquela acção não foi parte.

No entanto, a solução do presente caso não passa, a nosso ver, pelo enquadramento traçado nas Instâncias.

Sendo a recorrente um terceiro que adquiriu o bem imóvel objecto do aludido contrato-promessa de compra e venda na pendência da causa em que se discutia a execução específica do mesmo contrato, entendemos que a solução para o caso deve buscar-se, não tanto por recurso à figura da autoridade do caso julgado nos termos equacionados pelas instâncias, mas antes à luz da oponibilidade do próprio caso julgado.

A afectação de terceiros, tal como se vem distinguindo, na doutrina e na jurisprudência, pode ocorrer, essencialmente, através: (i) da eficácia reflexa do caso julgado, que se verifica quando a acção tenha ocorrido entre todos os interessados directos, esgotando, consequentemente, os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma determinada situação jurídica, que, tendo ficado definida entre os legítimos contraditores, deverá, naturalmente, ser aceite por qualquer terceiro; e (ii) da extensão do caso julgado a terceiros, que se verifica quando, mesmo que a presença de todos os interessados directos na acção permita a produção do efeito reflexo, este não se mostra suficiente, importando abranger pelo caso julgado os terceiros para os quais ele implica constituição, modificação ou extinção de uma situação jurídica.

Um dos domínios da extensão do caso julgado a terceiros é o da substituição processual, situação em que a lei admite que seja parte no processo quem não é sujeito da relação material e que se encontra regulada no artigo 263º do Código de Processo Civil, o qual dispõe:

«1. No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo,

2. (…)

3. A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, excepto no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção».

De harmonia com o estatuído neste preceito, ocorrendo transmissão, por acto entre vivos, de coisa ou direito litigioso, o adquirente pode substituir-se ao transmitente, não sendo, contudo, forçoso que o faça.

Ou seja, contrariamente ao que sucede nos casos em que falece alguma das partes em que a habilitação é obrigatória para que a causa possa prosseguir os seus termos (artigos 269.º, n.º 1, al. a), 270.º e 276.º, n.º 1, al. a), aqui a modificação subjectiva da instância é facultativa.

O facto de se estabelecer que o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for admitido a substituí-lo por meio de habilitação, significa que, não obstante aquele ter deixado de ter interesse próprio e pessoal na lide pendente, manter-se-á nela como substituto processual do adquirente (artigo 263.º, n.º 1).

No fundo, deixa de haver coincidência entre o sujeito passivo da relação substancial (adquirente) e o sujeito passivo da relação processual (transmitente) – cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 1948, p. 370 e 371.

Segue-se que, se a habilitação não for promovida (nos termos do artigo 356.º do CPC) e o processo seguir até final com a intervenção do transmitente, a sentença produzirá efeitos em relação ao adquirente, passando a constituir quanto a ele caso julgado, ainda que o mesmo não intervenha no processo (artigo 263.º, n.º 3).

É este o entendimento que se colhe dos ensinamentos, sempre actuais, de Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1946, p. 77 e ss.) que, por serem elucidativos, aqui transcrevemos: A partir da data da transmissão o alienante passa a figurar como substituto do adquirente; a transmissão operou uma conversão: de defensor de um interesse próprio o transmitente transforma-se em defensor do interesse alheio.

E não se diga que há nisto artifício ou violência. Abre-se a porta ao adquirente para que ele venha, quando quiser, assumir a defesa da sua posição, substituindo-se ao transmitente; não se prejudica a parte contrária, porque, embora o adquirente não intervenha no processo, a sentença que puser termo ao litígio constitui caso julgado quanto a ele; também se não agrava o transmitente, porque este pode promover a substituição.

Só assim não será (isto é, o caso julgado apenas não se estenderá ao adquirente) no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente tiver registado a transmissão antes de efectuado o registo da acção (artigo 263.º, n.º 3, in fine).

Bem se compreende esta excepção que mais não é do que uma consequência do sistema do registo predial: por um lado, face à sua função primordial, que é a de dar publicidade a uma determinada situação jurídica, tendo em vista a segurança do comércio jurídico e, por outro, face à regra da sua oponibilidade a terceiros, posto que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos relativamente a estes depois da data do respectivo registo (artigo 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, doravante CRgP).

Para melhor compreender a ratio da regra e da excepção a que acima se aludiu a propósito da oponibilidade ou não do caso julgado ao adquirente, basta atentar no exemplo dado por Alberto dos Reis (ob. cit., p. 81 e ss.) a este propósito e nas várias hipóteses acerca das quais discorre.

Assim:

Se, no decurso de uma acção de reivindicação, o réu vender o prédio que dela é objecto a um terceiro, sem que este a ele se substitua, prosseguindo a acção até final contra o transmitente, para saber qual a posição do comprador perante a sentença que julgou procedente a acção, condenando o réu a entregar o prédio ao autor, há que distinguir três hipóteses:

a) O autor registou a acção e o adquirente não registou a transmissão ou registou-a depois de feito o registo da acção;

b) O autor não registou a acção e o comprador registou a transmissão ou o autor só registou a acção depois de registada a transmissão a favor do comprador;

c) Nem o autor registou a acção, nem o comprador registou transmissão.

Na primeira hipótese, a sentença constitui caso julgado a respeito do comprador, estando este obrigado a acatá-la e a cumpri-la, devendo, consequentemente, entregar o prédio ao autor, sendo que se não fizer a entrega voluntariamente, aquele pode, com base na sentença, promover contra si execução para entrega de coisa certa, habilitando-o como sucessor do réu no requerimento executivo (artigos 54.º, n.º 1, 55.º, e 263.º, n.ºs 1 e 3, 1.ª parte, do CPC).

Na segunda hipótese, a sentença não vincula o adquirente, é, quanto a ele, res inter alios acta, o que significa que o comprador não está obrigado a entregar o prédio ao autor, nem este pode promover contra aquele execução para esse efeito, mister se tornando que proponha contra ele nova acção de reivindicação com vista a obter sentença que possa opor-lhe (art. 263.º, n.º 3, in fine).

Na terceira hipótese, a situação é igual à da primeira, uma vez que, não tendo o adquirente registado a transmissão, funciona a regra do artigo 263.º, n.º 3, 1.ª parte, e não a excepção consignada na sua parte final.

É, pois, como se disse, o fim do registo que justifica a diversidade de soluções já que, destinando-se o mesmo a dar publicidade aos actos que possam afectar a propriedade imobiliária, não estando o acto registado, os terceiros ignoram-no.

É que se o autor intentou acção de reivindicação, mas não a registou e o réu vendeu o imóvel em causa a um terceiro, este ao efectuar a comprar confiou que, nada constando do registo, estava seguro, promovendo, como tal, o registo da transmissão a seu favor, ficando, portanto, protegido por este.

Já se a acção está registada e apesar disso o terceiro comprou o prédio, não pode depois queixar-se de lhe ser oposta a sentença que julgue a acção procedente, posto que, antes de efectuar a compra, podia e devia ter diligenciado por saber o que constava do registo a respeito do prédio. Pelo que, se realmente averiguou que se mostrava registada uma acção de reivindicação tendo por objecto o prédio e se mesmo assim se aventurou a comprar, sujeitou-se ao risco de ter de largar mão do prédio no caso de a acção proceder, não podendo, como é evidente, alegar ignorância. Se, por outro lado, não cuidou de se informar na Conservatória acerca da situação jurídica do prédio, também não se poderá queixar já que será vítima do seu imperdoável desleixo."


[MTS]