Objecto do processo; actuação das partes;
venire contra factum proprium
1. O sumário de STJ 18/1/2018 (1005/12.4TBPVZ.P1.S1) é o seguinte:
I. Sem embargo da oficiosidade relativamente à qualificação jurídica exposta pelas partes, o Tribunal não pode na sentença extravasar do objecto do processo que é integrado tanto pelo pedido como pela causa de pedir (art. 609º, nº 1, do CPC).
II. Esta limitação é especialmente imposta quando esteja em causa a declaração de anulação de um negócio jurídico, uma vez que a sua arguição, para além de depender da iniciativa do interessado, está sujeita a um prazo de caducidade que não é de conhecimento oficioso (art. 287º do CC).
III. Numa acção cujo objecto seja integrado exclusivamente pela declaração de nulidade de um contrato de compra e venda com fundamento em simulação não pode ser declarada a anulação do mesmo contrato com fundamento na falta de consentimento dos outros filhos dos vendedores [...].
IV. Nos casos em que a delimitação do objecto do processo não resulte com total evidência da petição inicial, revela-se necessária a interpretação da vontade manifestada pelo autor e a apreciação do modo como esse objecto foi compreendido quer pela parte contrária, quer pelo Tribunal.
V. Numa acção em que foi pedida a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda com fundamento em simulação, mas em que também se aludiu à anulabilidade do mesmo contrato com fundamento na falta de consentimento dos demais filhos dos vendedores, nos termos do art. 877º do CC (venda a filhos ou netos), apesar da improcedência do pedido de declaração de nulidade, é legítimo na sentença declarar a anulação do contrato numa situação em que concorrem as seguintes circunstâncias:
a) Foram alegados na petição inicial factos relacionados com a anulabilidade prevista no art. 877º do CC e na contestação os RR. defenderam-se com a alegação da existência do consentimento dos demais filhos e com o facto de estes terem tido conhecimento da venda há mais de um ano, factos que apenas interessavam na medida em que estivesse em causa a anulação do contrato ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC;
b) Os demais filhos dos vendedores que pela R. vendedora foram chamados a intervir na acção instauraram uma acção autónoma contra os mesmos RR. pedindo que fosse declarada a anulação do contrato de compra e venda com fundamento no art. 877º do CC, tendo os RR. alegado nessa acção a excepção de litispendência fundada no facto de esse pedido de anulação já ter sido deduzido na presente acção;
c) A excepção de litispendência alegada na segunda acção foi julgada procedente, sendo os RR. absolvidos da instância, decisão que, apesar do recurso interposto pelos AA., foi confirmada pela Relação;
d) Na audiência prévia da presente acção o juiz integrou nos temas de prova matéria relacionada com a falta de consentimento dos demais filhos dos vendedores, o que apenas interessaria para a acção na perspectiva da posterior apreciação de um pedido de anulação formulado ao abrigo do art. 877º do CC;
e) Antes da audiência de julgamento os AA. apresentaram requerimento no sentido de ser apreciada subsidiariamente a anulação do contrato de compra e venda, pretensão que foi indeferida com a justificação de que se tratava de uma mera divergência de qualificação jurídica, a qual seria oportunamente considerada na sentença.
VI. Uma perspectiva formal que, nestas circunstâncias conjugadas, considerasse como único objecto do processo a declaração de nulidade do contrato de compra e venda com fundamento em simulação, desconsiderando a anulablidade do mesmo contrato ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC, traduziria uma situação de abuso objectivo do direito de defesa, cujos efeitos deveriam ser vedados por aplicação do disposto no art. 334º do CC.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"5.2. Na petição inicial, quer no que respeita à enunciação da pretensão, quer quanto aos respectivos fundamentos, ganhou um especial (e, aliás, excessivo) relevo a matéria relacionada com a simulação do contrato de compra e venda e com o efeito jurídico projectado: a nulidade.
Porém, diversos factores levam-nos a concluir que o objecto da acção que emerge de tal articulado não se circunscreve a tal vício-fundamento e ao aludido efeito jurídico, envolvendo também a anulabilidade do contrato de compra e venda em que a R. interveio como compradora sustentada na falta de consentimento dos demais filhos dos vendedores.
Esta é a percepção que emerge de alguns dos elementos que ressaltam dos autos:
- A petição inicial evidencia que, embora os AA. tenham apostado essencialmente na alegação de factos relacionados com a simulação do contrato de compra e venda, não deixaram também de aludir à “proibição de os pais venderem aos filhos, sem autorização dos demais filhos”, como se “prevê no art. 877º do CC” (sic) (art. 46º);
- A percepção de que o objecto do processo integra também a questão da anulabilidade da compra e venda em face do art. 877º, nº 2, do CC, foi bem compreendida pela falecida R. EE (vendedora) que, além de ter requerido a intervenção principal dos outros filhos, invocou ainda a excepção de caducidade, nos termos do art. 287º, nº 2, do CC;
- Na enunciação dos temas de prova o juiz (sem oposição de qualquer das partes) inseriu um que tratava de apurar se os pais do A. e 1ª R. consultaram os demais filhos dos vendedores sobre as vendas que fizeram, facto que apenas relevava para efeitos da anulação do contrato de compra e venda, ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC;
- Na sessão da audiência de julgamento de 5-2-16 foi decidido (sem qualquer oposição) que também iria ser objecto de prova apurar se os AA. e os demais RR., herdeiros dos falecidos EE e FF, “tiveram ou não conhecimento da escritura em causa nos autos outorgada em 9-8-01” (fls. 589), facto que apenas interessaria no pressuposto de que (também) estava em causa a caducidade do direito de anulação previsto no art. 877º, nº 2, do CC.
- Em 26-1-16 [...], o A. apresentou um requerimento no sentido de “ampliar o seu pedido pela forma seguinte: subsidiariamente, seja anulada a escritura de 9-8-01, nos termos fixados no art. 877º, nº 2, do CC”, ao que se a R. CC, ora recorrente, respondeu (fls. 583, vº e 584) que se se tratasse de um contrato de compra e venda “já há muito está caducado o direito de invocar essa anulabilidade, pelo decurso do prazo de um ano a contar do conhecimento do negócio …”, considerado que a acção foi proposta em 21-4-12 e que a ampliação do pedido data de 26-1-16; relativamente a tal requerimento, na audiência de julgamento de 5-2-16 (fls. 587) foi decidido que, por “não se tratar de uma ampliação do pedido, uma vez que os AA. apenas pretendem que seja considerada pelo Tribunal uma outra configuração e efeitos jurídicos dos factos que alegaram na petição inicial … ficaria a constar nos autos a vontade dos AA. de aproveitarem tal efeito jurídico que, por se tratar de matéria de direito, seria sempre atendível pelo Tribunal”;
- A própria R. veio [...] requerer a ampliação do pedido reconvencional para que se considerasse que o negócio titulado pela escritura de 9-9-01 “se subsume a um contrato de dação em cumprimento feito pelos seus falecidos pais” (o que só se compreende para evitar o efeito de anulação, nos termos do nº 3 do art. 877º do CC);
- Na sessão de julgamento de 22-4-16 foi proferido despacho que “não admitiu as ampliações dos pedidos requeridas pelos AA. (com referência a fls. 579) e pela R. reconvinte CC” (com referência a fls. 600), tendo-se consignado expressamente que tal indeferimento não prejudicava “o aproveitamento da vontade neles manifestada quanto aos efeitos jurídicos que oportunamente alegaram” (fls. 625);
- Tal despacho de indeferimento foi impugnado pela R., ora recorrente, no posterior recurso de apelação que interpôs da sentença que declarou a anulação do contrato de compra e venda, ao abrigo do nº 2 do art. 877º do CC. Contudo, no acórdão que foi proferido nesse recurso a Relação, incidindo sobre a impugnação daquele despacho interlocutório, decidiu que a R. deveria ter recorrido no prazo legal, pois assim o permitia e admitia o art. 644º, nº 2, al. d), do CPC, e que, pelo facto de não ter sido interposto recurso autónomo, tal despacho se encontrava transitado em julgado, não podendo ser posto em crise, concluindo, deste modo, que se mantinha válido (fls. 752 e 753);
- Independentemente da concordância com tal decisão da Relação (que, aliás, nos parece não ter fundamento legal em face do disposto no art. 644º, nºs 1 e 2, do CPC), verifica-se que a mesma não foi impugnada pela R., nem sequer em sede de ampliação do objecto da revista, de modo que, para todos os efeitos, transitou em julgado o despacho do juiz que, indeferindo a pretendida “ampliação” do pedido, por forma a ser apreciado subsidiariamente o pedido de anulação do contrato de compra e venda ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC, admitiu “expressamente” que tal indeferimento não prejudicaria “o aproveitamento da vontade nele manifestada quanto aos efeitos dos factos jurídicos que (os AA.) oportunamente alegaram”; tratando-se de um despacho coberto pelo caso julgado formal(art. 620º do CC), com força obrigatória intraprocessual, fica vedado concluir que, como agora defende a recorrente, não possa ser apreciada, por motivos formais ligados à delimitação do objecto do processo, a anulação do contrato de compra e venda ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC.
A conjugação de todos estes elementos leva-nos a concluir que, para todos os efeitos, o pedido de anulação da compra e venda com o fundamento previsto no art. 877º, nº 2, do CC, também integra o objecto do processo.
5.3. Existe, aliás, no CPC uma situação paralela que permite sustentar esta conclusão.
Nos termos do art. 186, nº 2, al. a), do CPC, a petição é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, sendo isso causa da nulidade de todo o processo. No entanto, prescreve o nº 3 que uma consequência tão radical é de evitar nos casos em que o réu, apesar de ter arguido a ineptidão, interpretou convenientemente a petição inicial.
Trata-se de uma situação peculiar que é justificada pelas circunstâncias específicas mas que valoriza, como deve ser, os aspectos de ordem material, em detrimento de argumentos de ordem formal.
Assim, nos casos em que, a partir das reacções do autor e do réu no processo, se puder afirmar que este interpretou correctamente o objecto do processo, integrado pela causa de pedir e pelo pedido, o legislador – numa manifestação do princípio da economia processual, evitando a duplicação de processos, e de valorização do mérito – considera suprida aquela nulidade que, em princípio, seria insanável.
Trata-se de um afloramento do mesmo princípio que no caso nos deve levar a considerar que, malgrado o argumentário de que os RR. agora se pretendem servir para evitar a apreciação do mérito da pretensão da anulação do contrato de compra e venda, sempre estiveram cientes, pelo menos a partir da audiência prévia, de que tal pretensão também estava em discussão nos presentes autos.
5.4. Mas existe um argumento ainda mais consistente e que, numa perspectiva substancial, infirma a tese formal que foi adoptada pela Relação.
Na presente acção foi requerida pela 2ª R. EE, entretanto falecida, a intervenção provocada dos seus outros filhos que não eram parte na acção. Tal incidente foi admitido, na sequência do que os Intervenientes vieram manifestar nos autos a sua estupefacção pelo facto de ter sido outorgada a escritura de compra e venda de 2001 que pelos mesmos seria totalmente desconhecida. Os mesmos não deduziram qualquer pretensão, mas deixaram assinalado que iriam intentar acção autónoma que teria por objecto precisamente a anulação do contrato de compra e venda com fundamento na falta do seu consentimento, nos termos previstos no art. 877º, nº 2, do CC.
Assim o fizeram, como o revela a certidão que contém algumas peças processuais (petição, despacho saneador, alegações de recurso de apelação e acórdão da Relação), das quais resulta que efectivamente pelos referidos Intervenientes foi instaurada a referida acção com o aludido fundamento, tendo os RR. nessa acção (e que também são RR. na presente acção) apresentado contestação na qual invocaram a excepção de litispendência com o fundamento de que essa segunda acção seria uma repetição da presente acção.
Os AA. desta segunda acção, ou seja, os referidos Intervenientes opuseram-se à referida excepção, mas a sua posição decaiu, tendo sido proferido despacho saneador no qual se concluiu, além do mais, que “a causa de pedir alegada pelos AA., ou seja, a falta de consentimento e a simulação do contrato de compra e venda a que aludem as partes está precisamente a ser objecto de discussão no aludido processo (a presente acção) que corre termos pelo 1º juízo deste tribunal”. Mais adiante diz-se também que “ainda que se atendesse essencialmente ao pedido de anulação por falta do consentimento, tal fundamento foi também alegado na aludida acção (ou seja, na presente acção) …”. Observou-se ainda que “independentemente da qualificação jurídica que os AA. da aludida acção (a presente acção) tenham feito e se faça da consequência a retirar de tal falta de consentimento, tal não releva para efeitos da questão que ora se aprecia (a litispendência) pois relevante é a factualidade invocada e esta coincide também nesta parte, ou seja, a falta de consentimento para a aludida venda”. Em conclusão, refere-se no referido despacho saneador que “se verifica a existência de litispendência … pois estão preenchidos todos os requisitos para que se possa concluir por tal excepção, já que há identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir”, o que redundou na absolvição da instância de todos os RR. dessa segunda acção (fls. 806).
Os AA. dessa segunda acção não se conformaram e interpuseram recurso de apelação, mas foi proferido acórdão da Relação no qual foi reafirmada a existência da identidade do pedido, uma vez que “estava em causa a apreciação nas duas acções de pedido idêntico, a invalidade da escritura celebrada a 9-8-01, portanto nelas se pretendendo obter o mesmo efeito jurídico, tendo por referência o mesmo acto”.
Quanto à identidade de causas de pedir foi referido, “relativamente aos pedidos de invalidade formulados em cada uma das acções, por na presente acção os AA. formularem o pedido de invalidade do negócio, dito de compra e venda, celebrado através da escritura de 9-8-01, quer com base na falta de consentimento da sua parte, deles apelantes/autores) para a concretização desse mesmo negócio (de venda de pais a filhos), quer ainda na simulação de preço, factos que não coincidem com os invocados pelos demandantes naqueloutra acção”, que “não é de todo certo naquela primeira acção não terem os aí respectivos autores alegado a falta de consentimento à realização do dito negócio de Agosto de 2001, já que tal alegação decorre do por aqueles referido, entre o mais, no art. 48º da p.i.” e que “nessa mesma acção e no articulado próprio que os apelantes aí apresentaram também expressamente alegaram essa falta de consentimento da sua parte, como resulta do vertido nomeadamente nos arts. 6º, 19º e 21º daquela peça processual”. Concluiu-se então: “daí que exista coincidência desse fundamento no confronto de ambas as acções, ao contrário do pugnado pelos recorrentes, os quais detêm nessa acção a qualidade de parte, enquanto nela intervieram, ao apresentarem articulado próprio no âmbito do incidente já referido”, considerando “justificada a existência da tríplice identidade de que depende a verificação da excepção de litispendência …”. (fls. 822 e 823).
Em suma, ao invés do que agora os RR. alegam nas contra-alegações da revista, não pode ser desconsiderada com a leveza que é apresentada o modo como se defenderam nessa segunda acção, tendo como ponto de referência para efeitos de apreciação da litispendência o objecto que estava configurado na presente acção.
Seria um resultado manifestamente incompreensível que, através do mero jogo formal em que os RR. procuram apostar, acabassem por ficar isentos da apreciação do mérito relativamente ao pedido de anulação formulado ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC, não apenas na segunda acção em que a anulação foi inequivocamente invocada, mas que culminou com a absolvição da instância, como também na presente acção, a pretexto de que, afinal, ao contrário do que apregoaram naquela acção, não havia identidade objectiva no que concerne à anulação fundada no art. 877º, nº 2, do CC.
Num mesmo litígio que divide os filhos dos vendedores não pode, sem o risco de uma insustentável contradição, consolidar-se uma solução que considerou verificada a excepção de litispendência na segunda acção, a pretexto de que se repetia essencialmente o objecto da presente acção, e nesta acção assumir-se que, afinal, o objecto que estava em discussão era diferente daquele que fora exposto naquela acção, não envolvendo de modo algum o pedido de anulação ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC.
Em última instância, um tal resultado – incompreensível em face das regras da lógica e insustentável em face dos preceitos legais – sempre deveria ser impedido pela intervenção da figura, de amplitude genérica, que não exclui sequer as actuações inseridas em processos judiciais, do abuso de direito de defesa, na modalidade de venire contra factum proprium, por manifesta e objectiva violação das regras da boa fé.
O facto de os RR. terem assumido na defesa que apresentaram na segunda acção que a questão da anulação do contrato ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC, estava a ser apreciada no âmbito da presente acção só pode ter o significado, que outros elementos já referidos já permitiam afirmar, de que, de facto, também este pedido com este fundamento integrava o objecto desta acção, do que os RR. estavam bem cientes quando paralelamente invocaram a litispendência.
Por outro lado, considerando os factos e as normas jurídicas que foram alegados na petição inicial da presente acção, foi assegurado aos RR. o exercício do contraditório relacionado com os efeitos decorrentes da aludida falta de consentimento, ao abrigo do art. 877º, nº 2, do CC, tendo tido a oportunidade não apenas de infirmarem essa falta de consentimento, como ainda de eventualmente alegarem o decurso do prazo de caducidade previsto no art. 877º, nº 2, do CC."
[MTS]