Sociedade; dissolução administrativa;
liquidação judicial; necessidade
1. O sumário de STJ 18/1/2018 (2153/13.9TYLSB.L1.S2) é o seguinte:
I - Concluindo-se que a via administrativa para a dissolução de sociedades (o RJPADLEC) não permite acautelar cabalmente legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida, não pode o aplicador do direito resignar-se à conclusão de que o sistema não confere expressamente legitimidade aos credores para promoverem a partilha por via judicial.
II - A existência de imóveis (que têm como proprietária uma sociedade dissolvida administrativamente), que não foram objeto de liquidação nem de partilha (porque esta fase não existiu), mas que continuam a gerar passivo (dívidas ao condomínio) não se encontra expressamente prevista nos arts. 163.º e 164.º do CSC.
III - Não sendo os ex-sócios diretamente demandáveis pelo pagamento das dívidas ao condomínio, (porque nada receberam da sociedade), há que apurar como pode o património da extinta sociedade responder por aquelas dívidas.
IV - Do ponto de vista da correta ordenação da titularidade dos bens, não é admissível que imóveis urbanos, concretamente frações autónomas, não tenham um dono que possa ser responsabilizado pelas dívidas inerentes ao seu específico estatuto imobiliário. Pelo facto de se encontrarem em propriedade horizontal, os imóveis (propriedade da dissolvida sociedade) continuarão, necessariamente, a gerar as dívidas correspondentes às despesas do condomínio.
V - Constatando-se a abertura do sistema à via judicial, feita pelo n.º 2 do art. 165.º do CSC, deverá concluir-se que essa via se manterá igualmente aberta quando esteja em causa a reclamada tutela de interesses materialmente idênticos. As hipóteses previstas no art. 165.º do CSC (respeitantes ao destino dos bens das sociedades inválidas) e a hipótese do caso sub judice (insuficiência normativa do procedimento administrativo de dissolução) respeitam a problemas valorativamente equiparáveis, pelo que se justifica a convocação da solução jurídica que conduza aos mesmos efeitos práticos.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
Pelo facto de se encontrarem em propriedade horizontal, os imóveis (propriedade da dissolvida sociedade) continuarão, necessariamente, a gerar as dívidas correspondentes às despesas do condomínio (para além de eventuais despesas extraordinárias respeitantes às partes comuns).
Não podendo a entidade titular desses bens ser judicialmente demandada, por não ter personalidade judiciária (já que se encontra extinta), tais bens ficariam assim “isentos” de poderem responder pelas próprias dívidas que continuam a gerar.
Sem serem objeto de liquidação e partilha, aquelas frações ficariam numa sui generis situação de quase “património de ninguém”, próximo de uma res nullius.
9. Tornando-se necessário proceder à liquidação da sociedade e consequente partilha do seu património, importa não apenas construir o percurso metodológico da pertinente solução de direito substantivo, mas também justificar a via processual que conduzirá à sua realização prática.
Demonstrada a existência de uma lacuna legal [...], cabe indagar, no quadro metodológico do art.10º do CC, se na previsão normativa do art.165º do CSC se encontra uma solução teleologicamente adaptável à necessidade de solução do caso decidendo.
O art.165º, n.1 do CSC prevê a hipótese de o contrato de sociedade ser declarado nulo ou anulado e impõe aos sócios a obrigação de procederem à liquidação do ente societário que, assim, fica sem personalidade jurídica e judiciária.
Esta obrigação de liquidação, a cargo dos sócios, é, em certa medida, equivalente à obrigação que o art.146º do CSC impõe aos sócios de procederem à liquidação quando a sociedade é dissolvida.
Todavia, caso a sociedade seja dissolvida, sem que os sócios procedam à respetiva liquidação, o art.146º não prevê expressamente a possibilidade de os credores requererem a liquidação judicial [...].
Esta possibilidade é, porém, prevista pelo n.2 do art.165º do CSC (caso o contrato de sociedade seja declarado nulo ou anulado). Dispõe esta norma:
“Nos casos previstos o número anterior qualquer sócio, credor da sociedade ou credor de sócio de responsabilidade ilimitada pode requerer a liquidação judicial, antes de ter sido iniciada a liquidação pelos sócios, ou a continuação judicial da liquidação iniciada, se esta não tiver terminado no prazo legal”.
10. Existirá alguma razão para que aos credores de uma sociedade nula ou anulada seja conferido o direito de requerer a liquidação judicial dessa sociedade e idêntico direito não ser conferido aos credores de uma sociedade dissolvida?
Vejamos qual a finalidade da fase da liquidação, tanto após a dissolução da sociedade como após a declaração de nulidade ou anulação do contrato de sociedade.
Nas palavras de Raúl Ventura: “a fase da liquidação e o respetivo processo não são exclusivos da dissolução da sociedade, ou, por outras palavras, a dissolução da sociedade não é necessariamente o único facto que justifica o seguimento de uma fase de liquidação. A liquidação pretende atingir determinados fins: assegurar a satisfação dos credores antes de o ativo social ser partilhado pelos sócios; preparar a partilha pela redução do ativo a bens o mais possível partilháveis em condições de igualdade para os sócios. Sempre que tais fins existam, a liquidação deve ser ordenada pelo legislador e esse é o caso das sociedades nulas ou anuladas” [Dissolução e liquidação de sociedades – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, (reimpressão, 1999), pág. 496].
Não seria razoável pressupor que o legislador tivesse querido tratar de forma diferente credores da sociedade que apresentam interesses essencialmente idênticos, no que respeita à promoção da fase da liquidação.
Ao prever que a liquidação seja promovida oficiosamente pelo serviço de registo competente (art.146º, n.6 do CSC), quando a dissolução da sociedade ocorre por via oficiosa, o legislador terá, certamente, pressuposto que por essa via (mais expedita do que a via judicial [Como afirma Paulo Olavo Cunha: “A intenção do legislador, ao introduzir o regime de dissolução e liquidação administrativas, na linha da desjudicialização do Direito Societário, é perfeitamente compreensível, uma vez que, como regra, não se pode dizer que os sócios beneficiem da liquidação judicial, nem sequer os credores – desde que o ativo seja suficiente para satisfazer o passivo – porque a liquidação judicial é sempre naturalmente mais demorada do que a extrajudicial”; Direito das Sociedades Comerciais, 6ª ed. (2016), pág 1051]) se encontrariam as soluções adequadas à satisfação dos legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida.
Concluindo-se que a via administrativa (o RJPADLEC) não permite acautelar cabalmente legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida, não pode o aplicador do direito resignar-se à conclusão de que o sistema não confere legitimidade aos credores para promoverem a partilha por via judicial [...].
Constatando-se a abertura do sistema à via judicial, feita pelo n.2 do art.165º do CSC, deverá concluir-se que essa via se manterá igualmente aberta quando esteja em causa a reclamada tutela de interesses materialmente idênticos, como se verifica no caso concreto.
A identidade problemático-valorativa entre a hipótese prevista no art.165º, n.2 do CSC e a questão decidenda autoriza, no quadro do art.10º do CC, a analogia legis ou “judicativo-decisória” (nas palavras de António Castanheira Neves [Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais; Coimbra Editora (1993), pág. 245]) que permite eleger esse dispositivo legal como critério de realização material do direito do caso concreto.
Efetivamente, as hipóteses previstas no art.165ºdo CSC (respeitantes ao destino dos bens das sociedades inválidas) e a hipótese do caso sub judice (insuficiência normativa do procedimento administrativo de dissolução) respeitam a problemas valorativamente equiparáveis, pelo que se justifica a convocação da solução jurídica que conduza aos mesmos efeitos práticos [ Na perspetiva de uma integração intrassistemática; José Oliveira Ascensão; O Direito – Introdução e Teoria Geral (13º ed.), pág.445 e seguintes].
11. Admitindo-se, deste modo, o acesso dos credores à via judicial para promoverem a liquidação da extinta sociedade, algumas questões processuais, complementarmente, se levantam: saber qual o processo próprio; e se a ação pode correr no juízo de comércio [...].
O vigente Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.41/2013) não contém previsão legal equivalente ao anterior art.1122º (do CPC de 1995) [...]. Todavia, o facto de ter desaparecido o processo especial de liquidação judicial de sociedades não significa que, face ao peticionado pela Autora, a liquidação não possa continuar a ocorrer por via judicial, aplicando-se o processo comum (art.546º, n. 2 do CPC) e observando-se a pertinente adequação formal, como resulta do art.547º do CPC [Vd. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 468].
Quanto à competência do juízo de comércio para conhecer desta ação, ela é expressamente prevista pelo art.128º da Lei n.62/2013 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), o qual estabelece, no seu n.1. Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: e) As ações de liquidação judicial de sociedades.
12. Por outro lado, importa ainda considerar a questão da legitimidade dos sujeitos para aquela ação.
Quanto à legitimidade ativa, nos termos do art.165º, n.2, ela pertence a quem tiver a qualidade de credor da sociedade. Ora, como resulta da factualidade provada, o Autor-Condomínio é credor dos montantes correspondentes às quotizações não pagas, entre 2010 e 2013 (aprovados em assembleia de condóminos), respeitantes às frações de que a extinta sociedade é proprietária [...]. Por outro lado, tratando-se de uma ação que se inscreve nos poderes do administrador [Nos termos dos artigos 1436º e 1437º do Código Civil], o condomínio goza da extensão da personalidade judiciária prevista no art.12º, al. e) do CPC.
Quanto à legitimidade passiva dos RR, dado que a sociedade devedora se encontra extinta e, portanto, destituída de personalidade judiciária, a ação destinada à liquidação e partilha do património da sociedade não poderia ser proposta contra esta dissolvida entidade.
Encontra-se prevista, no art.162º do CSC, a legitimidade sucedânea dos sócios para assumirem a posição processual da sociedade quando esta seja extinta na pendência de uma ação. Por outro lado, ao admitir que os credores da sociedade possam requerer a liquidação de um ente que foi declarado nulo ou anulado, nos termos do art.165º, n.2, o legislador pressupôs, certamente, que essa ação seria contra os sócios (e não contra um ente carecido de capacidade judiciária).
Do mesmo modo, convocando-se a aplicação analógica deste do art.165º, n.2 do CSC (nos termos suprajustificados), na hipótese de dissolução de uma sociedade sem fase de liquidação, também a legitimidade passiva deverá caber aos sócios da dissolvida sociedade.
Acresce que o processo de liquidação e partilha do património da sociedade afeta interesses dos sócios, pois serão eles os destinatários do património sobejante após a partilha.
Conclui-se, assim, que no caso sub judice não existia fundamento para a absolvição da instância, com base em ilegitimidade dos RR.
13. Em síntese, conclui-se que na decisão recorrida existiu errada interpretação e aplicação da lei. Assim, não foi, nomeadamente, feita correta interpretação e aplicação do artigo 163º do CSC (pois não tendo existido liquidação e partilha não é possível exigir aos sócios o pagamento de passivo superveniente); nem do art.165º, n.2 do mesmo diploma (pois a ordem jurídica tem de reconhecer aos credores de uma sociedade extinta sem liquidação, mas com património, o direito de se fazerem pagar pelo património não liquidado).
Conclui-se, assim, que não existe uma “impossibilidade originária da lide”, contrariamente ao que se entendeu no acórdão recorrido, o qual confirmou a decisão da primeira instância que, com tal fundamento, absolveu os RR da instância."
[MTS]