"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/06/2019

Jurisprudência 2019 (30)


Defesa do réu;
preclusão*


1. O sumário de STJ 12/2/2019 (654/13.8TBPTL.G1.S1) é o seguinte:

I - A autoridade do caso julgado, enquanto efeito do caso julgado, assenta na indiscutibilidade de uma questão já previamente decidida, prescindindo, para a sua concitação, dos pressupostos de que depende a procedência da excepção dilatória do caso julgado.

II - O caso julgado abarca as questões expressamente mencionadas no dispositivo e aquelas que, embora aí não incluídas, integraram a precedente motivação como premissas necessárias das determinações contidas no segmento decisório.

III - Tendo, em acção anterior e definitivamente julgada, se decidido pela absolvição do pedido formulado pelo recorrente com base na ponderação de que a mora debitória em que os recorridos se acham incursos não obviava à celebração do contrato prometido, é de concluir que tal consideração constitui um pressuposto indispensável da decisão final, integrando-se assim no caso julgado formado naquela lide.

IV - O efeito preclusivo derivado da norma contida no art. 611.º do CPC pressupõe que, em alguma medida, o autor tenha obtido ganho de causa, só se assim se justificando que seja inviável ao réu aduzir, numa nova acção, factos que poderia ter alegado na primeira acção.

V - Tendo as instâncias considerado um quadro factual em parte diverso daquele que foi fixado na precedente causa e, com base nesse acervo, considerado que a conduta do recorrente era determinante da mora dos recorridos, é de concluir que não se verifica a ofensa do caso julgado invocada como fundamento de admissão da revista.

2. [Comentário] a) O acórdão -- não muito claro nem no sumário, nem no seu próprio texto para um estranho ao processo -- apreciou, se bem se percebe, a seguinte situação:

-- A propôs uma acção (acção n.º 1195/07.8TBPTL) contra RR, pedindo, em suma, a resolução de um contrato-promessa e respectivas consequências legais; esta acção foi julgada improcedente;

-- Depois disso, o mesmo A propôs uma nova acção contra os mesmos RR, na qual, em suma, voltava a pedir a resolução do mesmo contrato promessa e respectivas consequências legais;

-- Segundo o próprio relato do STJ, as decisões proferidas nos dois processos divergem quanto ao seguinte:

"12. [...] Diverge-se [...] quanto a considerar [...] quem [é] o efectivo responsável pela não obtenção de tal documento, que o mesmo é dizer, quem dos contraentes, mor dessa impeditiva omissão, incorreu em mora.

Nas sobreditas decisões proferidas na acção n.º 1195/07.8TBPTL, tal mora verificou-se por parte dos RR., ao passo que nas dos presentes autos esse anómalo e culposo comportamento teve lugar de banda do próprio A..

13. Parece assim de considerar, em coro com o aqui A./Recorrente, que nestas decisões em último referidas – as prolatadas neste processo -, verificou-se a ofensa do caso julgado formado em tal acção n.º 1195/07.8TBPTL, surgindo os fundamentos expressos em uma e outra das decisões editadas nesta – em especial no terminante acórdão - , diametralmente contrariados pelos insertos no acórdão aqui recorrendo";

-- Posto isto, o STJ passou a analisar se o disposto no art. 611.º CPC, obsta a que, na segunda acção, os RR possam invocar fundamentos que não invocaram na primeira acção e que justificaram a acima referida divergência quanto à parte à qual era imputável a mora na celebração do contrato definitivo;

-- Respondendo a este problema, o STJ defendeu o seguinte:

"[...] em nosso modesto entender, tal efeito preclusivo da invocação de factos anteriores ao encerramento da discussão na primeira acção, afectando o réu, apenas cobra verificação no caso de o desfecho de tal acção não constituir para o autor/demandante um rotundo insucesso, ou seja, ter o mesmo logrado obter, em alguma medida, ganho de causa.

De outro modo, nada justifica – mormente os direitos [que direitos?] do autor - que na nova acção o réu, reiteradamente demandado, não possa aduzir em sua defesa factos que, conquanto o pudessem ter sido, não foram carreados nem apreciados naquela primeiramente intentada."

b) (i) A estruturação do acórdão não é muito clara, razão pela qual se admite que possa não se ter percebido algum aspecto essencial. 

No entanto, há uma primeira pergunta que deve ser feita: tendo o mesmo A proposto contra os mesmos RR duas acções em que, em substância, pede o mesmo, não haveria que analisar a verificação da excepção de caso julgado? 

O acórdão afasta, em termos muito sumários, a necessidade de analisar a ocorrência daquela excepção, porque considera que o fundamento invocado pelo Recorrente para fundamentar a revista excepcional -- a ofensa de caso julgado (art, 629.º, n.º 2, al. a), CPC) -- só tem a ver com a autoridade de caso julgado.

Mesmo que possa ser isto que resulte das alegações do Recorrente, a verdade é que o STJ não está vinculado a não considerar a verificação da excepção de caso julgado. Sendo assim, ter-se-ia exigido, perante a similitude (se não identidade) das duas acções, uma justificação muito mais circunstanciada.

(ii) Admita-se, todavia, que não se verifica a excepção de caso julgado. Isso só pode ocorrer, atendendo à identidade dos pedidos deduzidos em ambas as acções e das respectivas partes, se as causas de pedir forem distintas. Perante causas de pedir distintas, é claro que são possíveis defesas distintas dos RR em cada uma das acções. Quer dizer: nesta hipótese, não se coloca o problema de saber se a defesa dos RR está limitada por alguma preclusão decorrente da defesa que apresentaram na primeira acção.

Efectivamente, o problema suscitado pelo STJ -- o da preclusão dos fundamentos de defesa invocados pelos RR na segunda acção -- só se poderia colocar se as causas de pedir fossem idênticas. Mas então, nessa hipótese, ocorreria a excepção de caso julgado.

c) Em suma, talvez se possa concluir o seguinte:

-- Se as causas de pedir invocadas em ambas as acções são as mesmas, então ocorre a excepção de caso julgado e o problema suscitado pelo STJ nem se pode colocar;

-- Se as causas de pedir alegadas em ambas as acções são distintas, então a defesa dos RR na segunda acção pode não coincidir com a defesa apresentada na primeira acção, pelo que, também nesta hipótese, o problema suscitado pelo STJ não se pode colocar. 

d) A latere do acima referido, refere-se uma outra questão.

No acórdão afirma-se o seguinte: "A autoridade de caso julgado – “auctoritas rei judicatae” - , por sua vez, pressupõe a decisão de certa questão, que não pode voltar a ser discutida – efeito vinculativo - sendo generalizado entendimento [..] não ser necessário, para que a sua operância ocorra, a coexistência dessas três identidades exigidas para a “exceptio. 

É verdade que o STJ tem vindo a defender esta solução, mas ela está longe de ser admissível quando se dispensa a identidade de partes nas duas acções. Ao contrário do que se tem vindo a entender, o caso julgado entre dois interessados nunca pode ser constitutivo de quaisquer deveres de terceiros. Há aqui uma notória violação do direito ao contraditório (ou da proibição da indefesa), dado que ao terceiro é imposto um dever sem que ele tenha tido a oportunidade de se pronunciar em juízo.

Fica para uma próxima oportunidade o desenvolvimento desta questão.

MTS