"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/06/2019

Jurisprudência 2019 (37)

 
Execução para entrega de coisa;
habitação principal do executado

 
1. O sumário de 24/1/2019 (3308/04.2TVPRT-C.P1) é o seguinte:
 
Tendo a Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o RAU, estendido expressamente ao executado cuja casa de habitação principal seja vendida na execução apenas algumas das normas de protecção com que visou a protecção do arrendatário, em situação similar (n.ºs 3 a 6 do artigo 930.º-B do CPC – actual artigo 863º -, ex vi nº 6 do artigo 930º - actual artigo 861º - do mesmo código), não colhe a interpretação extensiva do preceito do artigo 861º, nº 6, do Código de Processo Civil, no sentido de abranger a totalidade desse regime de protecção, nomeadamente a norma que prevê a possibilidade de o arrendatário requerer o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação (artigo 930º-C do CPC – actual artigo 864º).
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"Sustenta o recorrente que se deve interpretar extensivamente o preceito do artigo 864º do Código de Processo Civil, no sentido de que o regime do diferimento da desocupação de imóvel seja também aplicável sempre que na execução se venda a casa de habitação principal do executado e não só quando se trate de imóvel arrendado, assim se ampliando o alcance da remissão do preceito do nº 6 do artigo 861º do mesmo código.
 
No artigo 11º do Código Civil, é admitida expressamente a interpretação extensiva das normas, maxime no que concerne às normas excepcionais.
 
Como refere Francisco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, 3ª Edição, pág. 150, “a interpretação extensiva (…) destina-se a corrigir uma formulação estreita de mais”. Reportando a figura aos casos em que “o legislador, exprimindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa espécie, quando quer aludir ao género, ou formula para um caso singular um conceito que deve valer para toda uma categoria”. É, desse modo, de interpretar um preceito extensivamente quando o legislador dixit minus quam voluit, ao não enunciar exaustivamente os casos (espécies) que caberiam na universalidade (género) que pretendeu abranger. Explicitando Cabral de Moncada, in Lições de Direito Civil, 1931-1932, 1º Vol, pág 157), que, “sendo essa a ratio legis, o princípio superior e geral de direito que a inspira, resultaria absurdo ou injusto não estender a sua aplicação a um caso que, embora não abrangido na letra, contudo está manifestamente abrangido no espírito da lei”.
 
No presente caso, a argumentação do recorrente para estribar a interpretação que propugna é parca, cingindo-se a uma ambígua e vaga alusão ao espírito da lei e ao pretendido pelo legislador.
 
Sondemos, pois, os desígnios deste, por referência às normas cujo sentido se pretende apurar.
 
A Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o RAU, alterou também o Código Civil e o Código de Processo Civil, num esforço de harmonização que passou pela supressão, alteração ou introdução de normas nestes diplomas.
 
Assim, no seu artigo 5º, introduziu uma série de novos artigos no Código de Processo Civil (artigos 930º-A a 930º-E), regulando as especialidades atinentes à “execução para entrega de coisa imóvel arrendada”, epígrafe do artigo 930º-A, cujo teor se transcreve - «a execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente subtítulo, com as alterações constantes dos artigos 930.º-B a 930.º-E». Aos quais correspondem os actuais artigos 862º a 866º do Novo Código de Processo Civil.
 
O legislador não esqueceu a eventual similitude das posições do arrendatário e do executado proprietário do imóvel que nele tenha a sua habitação, no artigo 4º daquele diploma acrescentando um nº 6 ao artigo 930º (actual artigo 861º) do Código de Processo Civil, estendendo àquele parte do regime de protecção do arrendatário – «tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 6 do artigo 930.º-B (actual artigo 863º), e caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes».
 
Ou seja, o legislador apercebeu-se perfeitamente da possível afinidade e similitude das situações do arrendatário e do executado proprietário do imóvel, delimitando o regime que entendia dever aplicar-se a este, parte do qual por remissão para preceitos que regulam os direitos do arrendatário.
 
Não colhe, desse modo, a pretensão do recorrente quanto à interpretação extensiva do conjunto de preceitos que visam proteger o arrendatário. Na verdade, o legislador tomou expressa posição quanto àqueles que pretendia estender ao executado proprietário do imóvel com casa de habitação neste. Neles não incluindo o do artigo 930º-C (864º do Novo Código de Processo Civil).
 
No mais, apenas cumpre constatar, na esteira da senhora juiz a quo, que a aplicação do disposto no artigo 863º, nºs 3 e 5, do Código de Processo Civil pressuporia tramitação que não ocorreu. Aliás, as maleitas reportadas pelo executado não permitem sequer configurar a situação visada naqueles preceitos."
 
[MTS]