Despacho saneador; recurso;
caso julgado
1. O sumário de STJ 19/2/2019 (3503/16.1T8VIS-A.C1.S1) é o seguinte:
I - O despacho saneador em que se decidiu a excepção da inexequibilidade do título executivo deve ser impugnado em recurso de apelação autónoma e não no recurso da apelação final, por decidir do mérito da causa, quer se entenda que se trata de uma questão processual, quer de uma questão de direito material subjacente à emissão do título.
II - Decidida no despacho saneador, transitado em julgado, a questão da inexequibilidade do título, não pode a mesma questão voltar a ser discutida em sede de sentença final, por força do caso julgado formado.
III - Pode servir de base à execução um cheque não só enquanto título de crédito em sentido próprio, mas também como mero quirógrafo, quando, neste caso, forem alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.
IV - A nulidade do mútuo por inobservância da forma legalmente prescrita não retira a exequibilidade ao cheque que o titula.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Tendo os embargos sido deduzidos a 6 de Fevereiro de 2017 [...], aos recursos interpostos das decisões neles proferidas aplica-se o Código de Processo Civil (CPC) aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (cfr. art.ºs 6.º, n.º 4 e 8.º, ambos deste diploma), e, concretamente, o regime estabelecido para os recursos no processo de declaração (cfr. art.º 852.º do CPC).
A decisão sobre a excepção de inexequibilidade do título executivo foi proferida no despacho saneador dos embargos e o embargante impugnou-a no recurso de apelação sobre a sentença final [...].
O recurso do despacho saneador que “sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa”, deve ser interposto por via de apelação autónoma imediata (art.º 644.º, n.º 1, al. b), do CPC). Apenas nos casos de não decidir do mérito da causa e de absolver o réu ou algum dos réus da instância (e não se reconduzir a algum dos casos previstos no n.º 2 do mesmo preceito), deve ser interposto por via de apelação interposta da decisão final (art.º 644.º, n.º 3, do CPC).
Os embargados defenderam, na resposta ao recurso de apelação, que aquela decisão, proferida no despacho saneador, tinha conhecido do mérito da causa dos embargos, e que, não tendo sido interposta apelação autónoma, a decisão havia transitado em julgado ao tempo em que foi interposta apelação final.
Contrariamente, o Tribunal da Relação decidiu que “a decisão respetiva no saneador não transitou em julgado. Não sendo caso que caiba nos nº 1 e 2 do art. 644º do Código de Processo Civil (CPC), tendo os embargos prosseguido para o conhecimento do mérito, aquela decisão é impugnada no recurso da decisão final, como o foi”.
Apreciando:
Depreende-se da fundamentação sumária extractada que o acórdão recorrido entendeu não constituir o mérito da causa dos embargos a questão relativa à inexequibilidade do título.
Porém, a nosso ver, erradamente. Expliquemos.
Na interpretação do que vem a ser o mérito da causa, deparamo-nos desde logo com a seguinte dificuldade: “ao invés do que dispunha o art. 691.º, n.º 2, do CPC 1961 (anterior à reforma de 2007), o CPC de 2013 não contém qualquer norma que delimite o conceito de decisão que incide sobre o “mérito da causa”, o qual é decisivo não apenas para a aferição da admissibilidade do recurso de apelação, como ainda para efeitos de admissibilidade do recurso de revista, nos termos do art. 671.º, n.º 1” – Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, págs. 205 e 206.
Acrescenta este autor que “Na falta dessa definição, revela-se importante a intervenção do elemento histórico para concluir que conhece do mérito da causa o despacho saneador (mesmo sem pôr termo ao processo, nos termos da al. a),) que julga procedente ou improcedente algum ou alguns dos pedidos relativamente a algum ou alguns dos pedidos relativamente a todos ou a algum dos réus ou julga procedente ou improcedente alguma excepção peremptória, como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou a anulabilidade”.
Os embargos de executado visam, na sua procedência, a extinção, total ou parcial, da execução (art.º 732.º, n.º 4, do CPC), pelo que o pedido a formular pelo embargante é o da extinção da execução, como o foi no caso em concreto.
Ao julgar o pedido de extinção da execução, o tribunal atém-se aos fundamentos esgrimidos pelo embargante que, no caso de a execução ter por base um título que não uma sentença, podem ser tanto os especificados no art.º 729.º do CPC como os invocados em processo de declaração (art.º 731.º do CPC).
Dentre eles, contam-se os relativos à relação de direito processual e os relativos à relação de direito material, justificativa da emissão do título dado à execução, entre as partes.
À luz, pois, da finalidade e do pedido dos embargos de executado, insere-se no mérito da causa, rectius, no mérito da causa dos embargos, todo o fundamento que, independentemente da sua natureza, substantivo ou processual, tem potencialidade abstracta para, a ser julgado procedente, fazer extinguir a execução.
Seguindo este entendimento, a invalidade ou inexequibilidade do título executivo, que compromete a manutenção e determina a extinção da acção executiva, insere-se no mérito da causa (art.ºs 703.º e 729.º, n.º 1, al. a), ambos do CPC).
Donde, o despacho saneador que decidiu tal questão devia ter sido impugnado em recurso de apelação autónoma e não em recurso de apelação final.
Ao ser impugnado no recurso da decisão final, o recurso do despacho saneador que decidiu aquela questão é intempestivo, estando vedado ao tribunal recorrido conhecer, nessa parte, do recurso, incumbindo logo ao relator verificar essa circunstância obstativa do seu conhecimento (art.ºs 644.º, n.º 1, al. b), 652.º, n.º 1, al. b) e 655.º, todos do CPC).
Impõe-se, assim, revogar o acórdão recorrido na parte em que conheceu de tal questão, repristinando a decisão da 1.ª instância.
A idêntica solução se chega no caso de se considerar que outro deve ser – o que não se concede, sob pena de a causa de embargos não ter mérito na hipótese em que vêm deduzidas apenas, por exemplo, excepções dilatórias, o que não faz qualquer sentido – o critério para aferir as questões relativas ao mérito da causa, qual seja respeitarem unicamente à relação subjacente ou de direito material justificativa da emissão do título.
Neste caso, não se pode deixar de relembrar que, no requerimento executivo, os exequentes alegaram serem portadores de um cheque emitido pelo executado para garantia do pagamento de vários mútuos celebrados entre as partes no valor total de 50.000 euros e que a execução era fundada nesse título ao abrigo do disposto no art.º 703.º, n.º 1, al. c), do CPC.
Perante tal alegação, o embargante, sob o título da questão “Inexistência ou inexequibilidade do cheque, enquanto título executivo, como mero quirógrafo, enquanto documento particular assinado pelo devedor”, defendeu expressamente que:
Ao julgar o pedido de extinção da execução, o tribunal atém-se aos fundamentos esgrimidos pelo embargante que, no caso de a execução ter por base um título que não uma sentença, podem ser tanto os especificados no art.º 729.º do CPC como os invocados em processo de declaração (art.º 731.º do CPC).
Dentre eles, contam-se os relativos à relação de direito processual e os relativos à relação de direito material, justificativa da emissão do título dado à execução, entre as partes.
À luz, pois, da finalidade e do pedido dos embargos de executado, insere-se no mérito da causa, rectius, no mérito da causa dos embargos, todo o fundamento que, independentemente da sua natureza, substantivo ou processual, tem potencialidade abstracta para, a ser julgado procedente, fazer extinguir a execução.
Seguindo este entendimento, a invalidade ou inexequibilidade do título executivo, que compromete a manutenção e determina a extinção da acção executiva, insere-se no mérito da causa (art.ºs 703.º e 729.º, n.º 1, al. a), ambos do CPC).
Donde, o despacho saneador que decidiu tal questão devia ter sido impugnado em recurso de apelação autónoma e não em recurso de apelação final.
Ao ser impugnado no recurso da decisão final, o recurso do despacho saneador que decidiu aquela questão é intempestivo, estando vedado ao tribunal recorrido conhecer, nessa parte, do recurso, incumbindo logo ao relator verificar essa circunstância obstativa do seu conhecimento (art.ºs 644.º, n.º 1, al. b), 652.º, n.º 1, al. b) e 655.º, todos do CPC).
Impõe-se, assim, revogar o acórdão recorrido na parte em que conheceu de tal questão, repristinando a decisão da 1.ª instância.
A idêntica solução se chega no caso de se considerar que outro deve ser – o que não se concede, sob pena de a causa de embargos não ter mérito na hipótese em que vêm deduzidas apenas, por exemplo, excepções dilatórias, o que não faz qualquer sentido – o critério para aferir as questões relativas ao mérito da causa, qual seja respeitarem unicamente à relação subjacente ou de direito material justificativa da emissão do título.
Neste caso, não se pode deixar de relembrar que, no requerimento executivo, os exequentes alegaram serem portadores de um cheque emitido pelo executado para garantia do pagamento de vários mútuos celebrados entre as partes no valor total de 50.000 euros e que a execução era fundada nesse título ao abrigo do disposto no art.º 703.º, n.º 1, al. c), do CPC.
Perante tal alegação, o embargante, sob o título da questão “Inexistência ou inexequibilidade do cheque, enquanto título executivo, como mero quirógrafo, enquanto documento particular assinado pelo devedor”, defendeu expressamente que:
1. O título executivo dado à execução era um cheque-quirógrafo e por isso os exequentes alegaram no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, como exigido pelo disposto no art.º 703.º, n.º 1, al. c), segunda parte, do CPC (art.ºs 1.º a 3.º da petição de embargos);
2. A causa da obrigação consubstanciada no cheque dado à execução era um mútuo no valor de 50.000 euros (art.º 5.º da petição de embargos);
3. À data da emissão do cheque, o mútuo de 50.000 euros exigia escritura pública ou documento particular, o que não foi observado e determina a invalidade do negócio (art.ºs 7.º a 10.º da petição de embargos);
4. A invalidade do negócio afecta a validade e exequibilidade do cheque (art.ºs 10.º a 25.º da petição de embargos).
Como se pode ver, os factos constitutivos da inexequibilidade do título situam-se, estritamente, na relação contratual de mútuo estabelecida entre as partes, alegada pelos exequentes e contraditada pelo embargante quanto à sua validade formal, fundamento contaminador da validade e exequibilidade do cheque oferecido como título executivo.
Assim vistas as coisas, o fundamento é a invalidade formal da relação subjacente; o efeito é a invalidade e inexequibilidade do título executivo.
Não há, pois, como defender que a questão não tem a ver com o mérito da causa, se restritivamente entendida como a relação substantiva de natureza contratual recortada pela causa de pedir alegada no requerimento executivo.
Portanto, e em suma, ao estribar a inexequibilidade do título na nulidade formal da relação subjacente, está-se no domínio do mérito da causa, seja qual for o sentido que se lhe dê: se entendido como a questão ou questões cuja procedência determina a extinção da execução, pedido e fim dos embargos, então a inexequibilidade do título tem esse alcance e configura mérito da causa; se entendido como questão ou questões que não se ficam pela mera relação processual mas que colhem o seu verdadeiro fundamento na relação substantiva de direito material emergente (relação cambiária ou cartular) ou subjacente à emissão do título (relação subjacente ou de valuta), então a nulidade formal do mútuo como fundamento da invalidade do cheque emitido em garantia, como título de crédito e como título executivo, configura, igualmente, o mérito da causa, para efeito de sobre o despacho saneador que a conheceu dever recair recurso de apelação autónoma e não recurso de apelação final.
Em qualquer dos casos, é insusceptível de sindicância no recurso da decisão final – como erradamente o foi – pelo Tribunal da Relação.
Neste sentido já decidiu este Supremo Tribunal em caso idêntico, no acórdão de 03-02-2005, Revista n.º 4009/04, 7.ª Secção, Relator: Araújo de Barros, assim sumariado:
“I - O caso julgado visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada e não a repetição do juízo contido na sentença: não se pretende que os tribunais doravante confirmem ou ratifiquem o juízo contido na sentença transitada, sempre que a questão por ela julgada volte a ser posta, directa ou indirectamente, em juízo; o que essencialmente se exige, em nome do caso julgado, é que os tribunais respeitem ou acatem a decisão, não julgando a questão de novo.
II - Se no despacho saneador proferido em embargos de executado, que transitou em julgado por falta de impugnação, se decidiu que o título dado à execução era dotado de exequibilidade, ficou definitivamente assente a validade e exequibilidade do título que serviu de base à execução, não podendo o recorrente questionar no recurso de apelação, ainda que com diverso fundamento, a sua qualidade, validade e exequibilidade….”
Trata-se, portanto, de extrair o efeito positivo do caso julgado ou da verdadeira autoridade do caso julgado formado com o trânsito em julgado do despacho saneador, na parte em que decidiu a questão da exequibilidade do título.
Como se sabe, esta figura radica nos art.ºs 619.º, n.º 1, e 621.º, ambos do CPC, dispondo o primeiro que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”; e o segundo que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”
E tem a ver com a existência de relações de prejudicialidade entre objectos processuais.
A autoridade de caso julgado significa que, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, ou no próprio processo, quer surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.
Assim, em primeiro lugar, essa imutabilidade ou indiscutibilidade da decisão judicial definitiva impede que a questão que foi objecto da decisão proferida e inimpugnável (ou não tempestiva e adequadamente impugnada) possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação do tribunal.
“Quando se torna definitiva, por já não ser susceptível de reclamação nem de recurso ordinário, quer nenhuma impugnação tenha tido lugar nos prazos legais, quer se tenham esgotado os meios de impugnação efectivamente utilizados, transita em julgado (art. 628) e extingue a instância (art. 277-a). Forma-se então o caso julgado, só formal (com efeitos apenas no processo concreto) quando a sentença tenha sido de absolvição da instância e simultaneamente formal e material (com efeitos dentro e fora do processo) quanto tenha sido de mérito” [Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 748].
Como se sabe, esta figura radica nos art.ºs 619.º, n.º 1, e 621.º, ambos do CPC, dispondo o primeiro que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”; e o segundo que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”
E tem a ver com a existência de relações de prejudicialidade entre objectos processuais.
A autoridade de caso julgado significa que, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, ou no próprio processo, quer surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.
Assim, em primeiro lugar, essa imutabilidade ou indiscutibilidade da decisão judicial definitiva impede que a questão que foi objecto da decisão proferida e inimpugnável (ou não tempestiva e adequadamente impugnada) possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação do tribunal.
“Quando se torna definitiva, por já não ser susceptível de reclamação nem de recurso ordinário, quer nenhuma impugnação tenha tido lugar nos prazos legais, quer se tenham esgotado os meios de impugnação efectivamente utilizados, transita em julgado (art. 628) e extingue a instância (art. 277-a). Forma-se então o caso julgado, só formal (com efeitos apenas no processo concreto) quando a sentença tenha sido de absolvição da instância e simultaneamente formal e material (com efeitos dentro e fora do processo) quanto tenha sido de mérito” [Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 748].
É este o caso dos autos.
Tendo sido apreciada a questão da (in)exequibilidade do título, por decisão transitada em julgado, não podia a mesma voltar a ser discutida, neste processo, como foi."
Tendo sido apreciada a questão da (in)exequibilidade do título, por decisão transitada em julgado, não podia a mesma voltar a ser discutida, neste processo, como foi."
[MTS]