"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/06/2019

Jurisprudência 2019 (31)


Recurso de revista;
admissibilidade


1. O sumário de STJ 12/2/2009 (763/15.9T8LSB.L1-B.S2) é o seguinte:

I - O acórdão da Relação que julga verificada uma nulidade processual ocorrida em momento antecedente à declaração da deserção e determina o prosseguimento dos autos não constitui uma decisão final nem versou sobre uma decisão interlocutória, não sendo, como tal, enquadrável na previsão do n.º 1 e do n.º 2 do art. 671.º do CPC.

II - A admissão da revista com fundamento em oposição de julgados pressupõe, fora do contexto delineado no n.º 2 do art. 671.º do CPC, que o acórdão da Relação conheça do mérito da causa ou ponha termo ao processo.

III - A conveniência na resolução de conflitos jurisprudenciais ao nível da Relação não justifica que, ao arrepio do quadro legal vigente, se crie uma nova via recursória.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"É sabido que, após a reforma do processo civil encetada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o objecto do recurso de revista passou a ter como ponto referencial o acórdão recorrido.

Como se lê nos dois primeiros números que compõem o art. 671.º, a revista somente pode incidir sobre “acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”, ou sobre “acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual.”.

No caso ora em análise, deflui da leitura da parte motivatória do aresto recorrido e do respectivo dispositivo que a anulação do despacho apelado que aí foi decretada se filiou na consideração de que a 1.ª Instância incorreu em nulidade processual susceptível de influir no exame e apreciação da causa.

Assim, como parece ser transversal às posições expostas pelos Recorrentes, o Acórdão impugnado não ingressou na resolução do diferendo subjacente à relação material litigada. Desta sorte, é de concluir, pois, que esse aresto não conheceu do mérito da causa, presente o constante da 1.ª parte do n.º 1, do art. 671.º.

Por outro lado, o dito Acórdão ora sob censura não colocou também termo ao processo, nem decretou a absolvição ou a extinção da instância [...]. A consideração do efeito processual prático emergente do respectivo dispositivo – o prosseguimento dos autos – evidencia, se porventura mister, tal conclusão [...].

Em suma, a circunstância de não estarmos perante uma decisão final obvia, de todo, à admissibilidade das revistas interpostas ao abrigo do n.º 1, do art. 671.º [...].

Resta então determinar se terá cabimento a respectiva admissão à luz da previsão do n.º 2 desse mesmo preceito.

Cabe notar que, em regra, os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1.ª instância não são recorríveis – só o sendo nos casos excepcionais aí referenciados –, porquanto o legislador parte do pressuposto da suficiência do duplo grau de jurisdição para a resolução das inerentes questões [...].

Ora, o Acórdão recorrido – relembre-se
recaiu sobre uma decisão da 1.ª Instância que declarou a instância deserta e a sua consequente extinção. Trata-se, pois, de uma decisão que seria apta a colocar termo à instância alínea c) do artigo 277.º‑ e, logo, merecedora do qualificativo de final.

É, pois, ajustado obtemperar que não nos deparamos com um aresto que haja apreciado uma decisão de cariz meramente interlocutório e incidente sobre a relação processual, i.e. susceptível de constituir caso julgado formal [...].

Daí que, a despeito de se reconhecer que o Acórdão recorrido abordou e decidiu uma questão adjectiva, não seja possível, com a devida propriedade, considerar aquele douto aresto passível de ser integrado na previsão do n.º 2, do art. 671.º [...][...]. Aliás, sem quebra do nexo entre pensamento legislativo e o texto legal – em flagrante colisão, pois, com o prescrito no n.º 2, do art. 9.º, do Cód. Civil
, não se vê como se possa considerar que “não teria fundamento algum” [...] a solução legislativa vinda de enunciar.

A argumentação subsequentemente desenvolvida pelas Recorrentes no seu antecedente requerimento parece, salvo o muito respeito, olvidar que o Acórdão recorrido se limitou a reconhecer o cometimento, pela 1.ª Instância, de uma nulidade processual, o que é significativamente diverso de conhecer o mérito do recurso de uma decisão prolatada pelo 1.º grau.

O cerne da presente decisão não é, pois, como apontam as Recorrentes, a dissonância entre as decisões prolatadas nos autos, mas antes a consideração do distinto conteúdo [e efeito prático] daquelas e a inerente repercussão sobre a admissibilidade da revista. Com efeito, nas hipóteses configuradas naquele requerimento [a confirmação do decidido pela 1.ª Instância ou ainda o caso de, na 1.ª Instância, se ter desatendido a pretensão de ser declarada a deserção da instância], sempre seria inquestionável, em face do n.º 1 ou do n.º 2 do art. 671.º, a admissão da revista por parte de quem tivesse efectivamente ficado vencido.

Por isso, a adopção deste entendimento não infringe o princípio da igualdade de armas ou o direito a um processo equitativo. Não se trata, como se vê, de situações equiparáveis, e que, por isso, sejam ou devam ser merecedoras de tratamento similar.

Acrescente-se que os princípios constitucionais do direito a um processo equitativo e da igualdade das partes não implicam a recorribilidade de todas as decisões para o Supremo Tribunal de Justiça [...], tanto mais que as normas processuais civis sindicadas encerram em si vias suficientemente adequadas a efectivar o direito ao recurso.

Na conformidade do exposto, resulta, pois, que o aresto ora em crise não é passível de impugnação mediante recurso de revista.

E como assim, quadra-se despiciendo apurar se se verificam as contradições decisórias invocadas pelos Recorrentes para sustentar a admissibilidade das respectivas revistas.

É que apenas teria sentido e utilidade fazê-lo se, previamente, se concluísse que o acórdão recorrido era enquadrável na previsão do n.º 2 do artigo 671.º Repare-se que a admissão da revista “continuada” tem, como primeiro pressuposto, que o acórdão recorrido incida sobre decisão interlocutória de conteúdo adjectivo [...].

Só após ser ultrapassado esse crivo fará, logicamente, sentido indagar se o fundamento da impugnação dirigida a este Supremo integra alguma das previsões do n.º 2, do art. 629.º – entre os quais se conta a contradição entre acórdãos da Relação – ou se, como aventam alguns dos Recorrentes, o Acórdão recorrido se encontra em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por este Supremo Tribunal de Justiça.

Importa, por seu turno, precisar que a referência à previsão da alínea d), do n.º 2, do art. 629.º [... ] deve ser entendida no contexto da sustentação da admissão da revista ao abrigo do n.º 2, do art. 671.º – i.e. por efeito da remissão operada pela alínea a) deste preceito –, o que já vimos não ser o caso. [...]

As diversas alíneas que integram o predito n.º 2 do art 629.º, têm em vista situações em que o legislador considerou que devia haver lugar a recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência.

A previsão da alínea d) reporta-se, em especial, aos casos em que se configure existir uma oposição de julgados entre dois acórdãos da Relação
o acórdão recorrido e um outro acórdão, dito fundamento , sendo claro o desígnio legislativo em viabilizar a resolução de conflitos de jurisprudência ocorridos entre acórdãos das Relações que nunca poderiam ser apreciados pelo Supremo Tribunal de Justiça por não ser admissível a revista [...].

Estes requisitos devem, porém, ser entendidos em consonância com o que é o objecto do recurso de revista, nos termos definidos pelo n.º 1. do art. 671.º.

Equivale isto a dizer que, não obstante se poderem verificar os requisitos de que depende a admissão do recurso nos termos da alínea d), do n.º 2, do art. 629.º, apenas será de admitir a revista se o acórdão recorrido constituir, nos termos daquele preceito, uma decisão final. É o que se depreende, claramente, da previsão a alínea a), do n.º 2, do mesmo preceito, ao aludir, precisamente, aos casos em que o recurso é sempre admissível.

Assim, e em síntese, somos a entender que, fora do contexto do recurso de decisões interlocutórias – que, repisa-se, não é, pelos motivos antes expostos, o caso dos autos – a admissão do recurso de revista ao abrigo do omnicitado n.º 2, do art. 629.º, pressupõe, necessariamente, que o acórdão recorrido constitua uma decisão que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância ou pondo-lhe término, que o mesmo é dizer, uma decisão final [...].

Ora, como se disse e se crê indisputável, o Acórdão recorrido não se consubstancia numa decisão final, pelo que, no seguimento do que expendemos, não é, em função da delimitação legal do objecto da revista, admissível a sua impugnação nesta sede.

Por outro lado, há que salientar que a previsão da alínea d), do n.º 2, do art. 629.º, pressupõe que a decisão sob censura seja irrecorrível por motivo estranho à conexão entre a alçada e o valor da causa, mormente por existir uma determinação legal que o impeça [...].

Ora, no caso, não existe qualquer norma legal que impeça a admissão deste recurso ordinário e, em abstracto, verificar-se-iam até os requisitos ou pressupostos gerais de admissibilidade, mormente o valor da causa, a sucumbência e a legitimidade.

Ao invés, o que se constata é que, como vem sendo exposto, a decisão recorrida não é idónea a integrar o objecto do recurso de revista, nesses termos em que este foi legalmente concebido e delimitado.

Não se vê que se possa, por seu turno, conceber tal delimitação como um impedimento legal à interposição de um recurso ordinário como parecem sustentar as Recorrentes. É que, por um lado, a definição do objecto da revista não é confundível com uma norma que expressamente vede a sua interposição e, por outro, seria um contra-senso[18]admitir que o legislador assim a encarava, pois a resolução de conflitos jurisprudenciais foi justamente configurada como um dos casos em que, verificados os demais pressupostos por ele estipulados, a revista seria, em tese, admissível.

Por outras palavras, e em suma, não se concebe que o legislador “deixe entrar” pela janela franqueada pela previsão da alínea d), do n.º 2, do art. 629.º, aquilo - entenda-se, revistas interpostas de acórdãos que não põem termo a processos nem versam sobre decisões interlocutórias ‑ a que, decididamente, se “fechou a porta” no n.º 1 e no n.º 2 do art. 671.º.

Por seu turno, a conveniência na resolução de invocados conflitos jurisprudenciais não justifica que, ao arrepio do enquadramento legislativamente delineado, se crie, por via da actuação da jurisprudência, uma nova via recursória, tanto mais que não se detecta qualquer omissão de regulamentação que demande a integração analógica doutamente preconizada pelo primeiro Recorrente. De resto, sendo a previsão da alínea b), do n.º 2, do art. 671.º, uma norma de cariz excepcional, a mesma não comportaria, em qualquer caso, aplicação analógica – art. 11.º do Código Civil.

Acrescente-se ainda que, neste Supremo Tribunal de Justiça, inexiste uma modalidade específica de distribuição [cfr. art. 215.º] que contemple a impugnação judicial de decisões da Relação exclusivamente fundada na oposição de julgados.

Como tal, independentemente da invocada verificação das aludidas contradições decisórias entre o Acórdão recorrido e outros arestos [...], crê-se que, também por este motivo, não se poderia fundar na alínea d), do n.º 2, do art. 629.º, a admissão das revistas."

*3. [Comentário] Cabem duas chamadas de atenção:

-- O STJ considera que, quanto ao acórdão recorrido da Relação, "não nos deparamos com um aresto que haja apreciado uma decisão de cariz meramente interlocutório e incidente sobre a relação processual, i.e. susceptível de constituir caso julgado formal"; salvo melhor opinião, o acórdão da Relação, ao concluir que houve uma nulidade processual e ao mandar continuar o processo, é uma decisão interlocutória e incidente sobre a relação processual;

-- Ao contrário do que se refere no acórdão, o n.º 2 (no seu todo) do art. 629.º CPC não é aplicável apenas a decisões finais, dado que a al. a) desse preceito tanto é aplicável, por exemplo, quando o tribunal a quo se considerou internacionalmente competente e determinou a continuação do processo, bem como quando esse tribunal se considerou internacionalmente incompetente e absolveu o réu da instância; mas, como o caso sub iudice nada tinha a ver com esta questão, a fórmula demasiado genérica que foi utilizada pelo STJ em nada contende com a sua decisão. 

Seja como for, o acórdão da Relação não é enquadrável nem no n.º 1, nem no n.º 2 do art. 671.º CPC, pelo que o STJ decidiu bem.

MTS