"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/06/2019

Jurisprudência 2019 (32)


Cônjuge do executado; citação;
embargos de terceiro*

1. O sumário de RG 7/2/2019 (1740/10.1JAPRT-E. G1) é o seguinte: 

I. O cônjuge do executado só pode embargar de terceiro em defesa dos seus direitos relativos aos bens comuns indevidamente atingidos pelo acto de penhora (art. 343º do CPC), quando assuma a posição de terceiro em relação à acção executiva e alegue, de uma forma concretizada, o fundamento pelo qual a penhora efectivada deve ser considerada indevida.

II. Citado o cônjuge do executado para a execução, nos termos dos artºs. 740º e 786º, nº 1, al. a) do CPC, ainda que indevidamente, fica na posição de parte, pelo que nesta situação não pode, em princípio, embargar de terceiro.

III. Os Embargos já serão, no entanto, admissíveis quando, por haver bens próprios do executado, não esteja verificado o condicionalismo em que actua a responsabilidade subsidiária (desde que essa situação seja alegada), bem como quando não tenha sido feita a citação do cônjuge nos termos do art. 740º, nº 1 do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispõe o art. 342º, nº 1, do CPC que “se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

Por sua vez, estabelece o art. 345º do mesmo Código que “sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante”.

Destas duas disposições resulta que o terceiro embargante tem de demonstrar a existência do seu direito ofendido pelo acto judicial de apreensão ou entrega de bens e a ocorrência dessa ofensa. [...]

Quando o embargante se limita a declarar que é proprietário ou possuidor dos bens penhorados, sem especificar em que condições se tornou seu dono ou possuidor, então apenas está a expressar afirmações, no mínimo, de carácter conclusivo.

E, como é sabido, conclusões (ou juízos conclusivos) não são factos: trata-se de matéria equiparável a matéria de direito, pelo que trata-se de alegações que são insusceptíveis de preencher a causa de pedir da pretensão que se pretende deduzir.

Ora, no caso concreto, com bem refere o Tribunal Recorrido, a petição de embargos de terceiro aqui em discussão mostra-se efectivamente omissa na descrição de factos, de onde, pela respectiva prova, se pudesse inferir a propriedade (ou a posse) da Embargante, relativamente aos bens penhorados e a alegada ofensa a qualquer dos seus direitos alegadamente violados.

No caso concreto, em especial, exigia-se ainda que a Embargante cumprisse o ónus de alegar e comprovar a natureza, própria ou comum, do bem penhorado e o fundamento pelo qual entenderia que a penhora teria sido indevidamente ordenada e concretizada.

Alegações que não foram efectuadas pela Embargante/Recorrente na petição inicial (já que o único fundamento invocado respeitará à alegada arguição da nulidade da citação).

Mas não é só por aqui que a decisão recorrida se deve manter integralmente.

No caso concreto, estamos, como já se viu, perante uma situação especial, pois que a Embargante assume a qualidade de (ex.-) cônjuge do executado, tendo sido penhorados bens comuns que eram do casal – o que já se mostra decidido na sentença proferida nos autos de Embargos de terceiro apenso B) (...).

Ora, nestes casos em que os bens, que constituem objecto dos Embargos de terceiro (e da penhora), são comuns, um dos pressupostos dos embargos de terceiro é (para além da alegação de que o Embargante não é parte na lide executiva) o não ter sido citado nos autos de execução para requerer a separação de bens, nos termos do nº 1 do artigo 740.º do CPC.

Na verdade, o art. 343º do CPC exige determinados pressupostos para conferir legitimidade ao cônjuge do executado para deduzir embargos de terceiro

Com efeito, pode-se ler no citado dispositivo legal que: “O cônjuge que tenha a posição de terceiro pode, sem autorização do outro, defender por meio de embargos os direitos relativamente aos bens próprios e aos bens comuns que hajam sido indevidamente atingidos pela diligência prevista no artigo anterior” [...].

Porém, este preceito tem de ser lido no contexto mais alargado do regime processual previsto para o cônjuge do executado – e para essa leitura revestem especial relevância o disposto nos artºs. 740º e 787º do CPC.

O nº 1 da primeira dessas disposições legais rege do seguinte modo: “Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns”.

E a segunda dessas disposições legais, sob a epígrafe “estatuto processual do cônjuge do executado”, na sequência da previsão do art. 786º, nº 1, al. a), do CPC (que consagra a citação do cônjuge do executado para a execução “quando se verifique o caso previsto no nº 1 do art. 740º”), estabelece, no seu nº 1, que “O cônjuge do executado, citado nos termos da primeira parte da alínea a) do nº 1 do artigo anterior, é admitido a deduzir, no prazo de 20 dias, oposição à penhora e a exercer, nas fases da execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual confere ao executado, podendo cumular eventuais fundamentos de oposição à execução”, acrescentando, no seu nº 2, que “Nos casos especialmente regulados nos artigos 740.º a 742.º, é o cônjuge do executado admitido a exercer as faculdades aí previstas”.

Perante estes dispositivos legais, não restam dúvidas que, citado o cônjuge do executado, no momento e com as garantias a que se refere o art. 740º do CPC, pode ele requerer a separação de bens, em processo de inventário, ou juntar aos autos certidão comprovativa da pendência de processo de separação de bens já instaurado.

E se não o fizer, a execução poderá prosseguir sobre os bens comuns.

Daí que se entenda que “requisito essencial para a subsunção a este preceito processual (art. 343º do CPC) é que o cônjuge do executado ainda não tenha sido citado (mormente para o efeito previsto na primeira parte da al. a) do nº1 do art. 786º do CPC), uma vez que, nessa hipótese, o cônjuge já não tem a qualidade de terceiro” [Virgínio Ribeiro/Sérgio Rebelo, in “A acção executiva anotada e comentada”, pág. 89].

Nessa medida, tendo o cônjuge do executado sido citado nesses termos, já não tem legitimidade para deduzir os Embargos com aquele fundamento [...].

Na verdade, só caso tenha sido omitida a aludida citação a que se reporta o n.º 1 do art. 740º do CPC, na execução movida apenas contra um dos cônjuges, é que pode o outro deduzir embargos de terceiro para defender o seu direito relativo aos bens comuns penhorados.

Assim, a citação do cônjuge do executado para a acção executiva confere-lhe a posição de parte [...] (ou retira-lhe a qualidade de terceiro), impedindo-o de embargar de terceiro.

Destas considerações decorre, assim, que o cônjuge do executado só pode embargar em defesa dos seus direitos relativos aos bens comuns indevidamente atingidos pelo acto de penhora, quando assuma a posição de terceiro em relação à acção executiva (ou seja, não seja parte).

“Por isso movida uma acção executiva apenas contra um dos cônjuges para pagamento de dívida própria, na qual sejam penhorados bens comuns, pode o outro cuja citação a que se reporta o nº1 do art. 740º do CPC haja sido omitida pelo agente de execução, deduzir embargos de terceiro, a fim de defender o seu direito à meação sobre eles…

Citado o cônjuge do executado para a execução, nos termos do art. 786º, nº 1, al. a) do CPC, ainda que indevidamente, fica na posição de parte, pelo que não pode embargar de terceiro” [Salvador da Costa, in “Incidentes de Instância”, pág. 180].

Em conclusão, “… pelo art. 343º do CPC (só) o cônjuge que seja terceiro – i. e., não seja parte na acção, como executado ou como cônjuge citado ao abrigo dos artºs. 786º, nº 1 e 740º, nº 1 - tem legitimidade singular – e por isso, não carece de autorização do outro – para se defender por meio de embargos de diligência indevidamente delimitada pelo art. 342º do CPC…” [Rui Pinto, in “Manual da acção executiva e Despejo”, pág. 788].

Nesta conformidade, “tratando-se de bens comuns em dois casos não pode o cônjuge do executado embargar: a) quando tenha sido citado nos termos do art. 740º, nº 1 do CPC e o executado não tenha bens próprios; b) quando a penhora incida sobre bens levados para o casal pelo executado ou por ele posteriormente adquiridos a título gratuito e/ou sobre rendimentos de uns e outros desses bens, ou sobre bens sub-rogados no lugar deles, ou ainda sobre o produto do trabalho e os direitos de autor do executado, dado que estes bens, ainda que comuns, respondem ao mesmo tempo que os bens próprios (art. 1696, nº 2 do CC). Mas os Embargos já são admissíveis quando, por haver bens próprios do executado, não esteja verificado o condicionalismo em que actua a responsabilidade subsidiária, bem como quando não tenha sido feita a citação do cônjuge nos termos do art. 740º, nº 1 do CPC” [Lebre de Freitas, In “A Acção executiva – à luz do CPC de 2013”, 6ª edição, pág. 335 e 336].

Nesta sequência, forçoso é concluir que, perante a circunstância de a embargante ter sido citada na execução nos termos do art. 740º do CPC, não podia a mesma ver aqui reconhecida a qualidade de terceiro para efeitos de dedução do incidente de embargos previsto nos artºs. 342º e seguintes do CPC, pelo que só por esse facto os Embargos deduzidos teriam também que improceder."

*3. [Comentário] A RG decidiu bem, se, como se julga ter sucedido, o ex-cônjuge tiver sido devidamente citado nos termos do art. 740.º, n.º 1, CPC e indevidamente citado segundo o disposto no art. 786.º, n.º 1, al. a), CPC.

Salvo o devido respeito, se o ex-cônjuge tivesse só sido indevidamente citado nos termos do art. 786.º, n.º 1, al. a), CPC, poderia embargar de terceiro, dado que então não teria sido citado de acordo com o art. 740.º, n.º 1, CPC, que é a única situação que impede que, quando tenham sido penhorados bens comuns, o cônjuge do executado possa embargar de terceiro.

O problema não respeitaria então à nulidade da citação realizada segundo o estabelecido no art. 786.º, n.º 1, a), CPC, mas antes à falta da citação que é imposta pelo art. 740.º, n.º 1, CPC.

MTS