Matéria de facto;
omissão de pronúncia; anulação da decisão
1. O sumário de RP 10/1/2019 (1070/12.4TBVLG.P1) é o seguinte:
Não constando da decisão da matéria de facto, nem como provado, nem como não provado, um facto essencial alegado pela parte e, não tendo o mesmo sido introduzido pelo tribunal em sede de julgamento, de modo a permitir às partes o contraditório e a apresentação de prova, não pode este Tribunal da Relação substituir-se à 1.ª instância na ampliação da matéria de facto provada, sob pena de limitação daqueles direitos, antes se impondo a anulação da decisão, por necessidade de ampliação da matéria de facto.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Vem o Recorrente pôr em causa a valorização conferida pelo tribunal a quo à perícia realizada pelo IML que concluiu que a incapacidade de que ficou a padecer em consequência do sinistro é inferior a 50%, invocando o resultado das juntas médicas a que foi submetido e a posição de peritos médicos revelada nos autos.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Vem o Recorrente pôr em causa a valorização conferida pelo tribunal a quo à perícia realizada pelo IML que concluiu que a incapacidade de que ficou a padecer em consequência do sinistro é inferior a 50%, invocando o resultado das juntas médicas a que foi submetido e a posição de peritos médicos revelada nos autos.
A determinação da incapacidade de que o A. ficou a padecer é absolutamente relevante para se determinar se o sinistro por ele sofrido é susceptível de se integrar na previsão do contrato de seguro celebrado, que tem como pressuposto do pagamento da indemnização a verificação de uma incapacidade da pessoa segura igual ou superior a 50%. É ao A. que compete a prova de tal facto, por se tratar de um elemento constitutivo do direito que o mesmo pretende fazer valer nestes autos, nos termos disposto no art.º 342.º n.º 1 do C.Civil.
Como se viu, no caso a incapacidade deve ser determinada nos termos da tabela nacional de incapacidades.
Na sentença proferida refere-se a respeito desta questão: “… a incapacidade atribuída ao Autor, à luz de qualquer uma daquelas tabelas, é sempre inferior a 50%, não tendo enquadramento contratual. Isso mesmo resulta, de forma inequívoca e objectiva, do relatório pericial efectuado pelo INML, instituto com competência exclusiva para realizar as perícias médico-legais, de acordo com o disposto no art. 467º nº 3 e Lei nº 45/2004 de 19/8 (neste sentido AC RP de 24/10/2016, Proc. nº 30789/15.6T8PRT-A.P1), segundo o qual, a invalidez permanente de que o Autor ficou a padecer depois do acidente relatado nos autos, é de 20% segundo a Tabela de Desvalorizações anexa ao contrato de seguro em apreço (ver fls. 309v), ou de 30,93% no máximo, segundo a TNI (ver fls. 320 e 340). Isto é, independentemente da Tabela a que se recorra para calcular o grau de invalidez permanente de que ficou o Autor afectado depois da queda que sofreu e lhe determinou fractura transtrocantérica da perna direita, nunca a mesma atinge 50%, não sendo suficiente para accionar o seguro de acidentes pessoais contratado com a Ré.”
Verifica-se, no entanto, que a sentença recorrida retira esta conclusão, sem que da decisão sobre a matéria de facto constem os factos necessários a suportá-la, no que se refere ao grau de invalidez calculada de acordo com a tabela nacional de incapacidades.
Na verdade, dos factos provados (ponto 26) apenas decorre que a queda que o A. sofreu causou-lhe lesões que lhe produziram uma incapacidade permanente inferior a 50% nos termos da tabela de desvalorizações anexa ao contrato seguro. Não temos na decisão de facto, nem como facto provado, nem como facto não provado, qualquer facto que incida sobre a desvalorização ou incapacidade sofrida pelo A. avaliada de acordo com a tabela nacional de incapacidades, susceptível de suportar uma decisão no sentido de que a incapacidade que para o A. resultou do sinistro é inferior a 50%, como conclui a sentença recorrida.
É verdade que na sentença se refere que é essa a conclusão a que chega a perícia realizada pelo IML, à qual é conferida especial credibilidade, mas não podem confundir-se os factos com os meios de prova que se destinam a comprová-los. A perícia do IML é apenas um meio de prova, tal como as juntas médicas realizadas, os pareceres dos peritos médicos ou os documentos e depoimentos prestados no processo.
Uma coisa diferente dos elementos probatórios é o facto concreto que tem de resultar precisamente da avaliação conjugada que o tribunal faz desses diversos elementos, nem sempre coincidentes, para considerar um facto provado ou não provado – no caso o facto que tem de ser apurado e que é essencial para a decisão da causa é a incapacidade permanente que resultou para o A. da queda ocorrida, calculada de acordo com a tabela nacional de incapacidades.
Quer da motivação apresentada para a resposta à matéria de facto, quer da fundamentação jurídica, decorre que o tribunal recorrido teve como pressuposto da decisão da causa, que a incapacidade do A. calculada de acordo com a tabela nacional de incapacidades é inferior a 50% considerando a perícia realizada pelo IML, contudo essa matéria não se encontra vertida na decisão de facto – nem nos factos provados, nem nos factos não provados encontramos qualquer facto relativo à incapacidade do A. calculada de acordo com tal tabela, sendo que o relevante não é apenas saber o que é referido pela perícia do IML (que é um meio de prova) mas antes o facto que a mesmo se destina a apurar.
Desta falta resulta aliás a dificuldade que é manifesto que o A. teve no presente recurso, por querer contrariar um facto que o tribunal de 1ª instância teve como pressuposto da decisão da causa, sem que o mesmo constasse da decisão de facto, não lhe permitindo por isso a devida impugnação nos termos do art.º 640.º do C.P.C..
Constata-se que a falta de tal facto terá resultado da circunstância do mesmo não ter sido integrado na base instrutória à qual o tribunal respondeu, embora tenha sido um facto invocado pelo A. na sua petição inicial, onde no art.º 18.º o mesmo alega que as deficiências descriminadas no art.º 17.º lhe conferem uma incapacidade de 65% de acordo com a TNI aprovada pelo Decreto-Lei 352/2007 de 23 de Outubro.
Uma vez que se tratou de matéria de facto não levada à base instrutória, e não tendo a mesma sido introduzida pelo tribunal em sede de julgamento, de modo a permitir às partes o contraditório e a apresentação de prova, como é seu direito, reconhecido no art.º 3.º n.º 3 do C.P.C., afigura-se que este tribunal não pode substituir-se ao tribunal de 1ª instância na ampliação da matéria de facto provada, não obstante os elementos probatórios constantes dos autos, sob pena de limitação daqueles direitos, impondo-se por isso a anulação da decisão proferida por necessidade de ampliação da matéria de facto, nos termos do art.º 662.º n.º 2 al. c) do C.P.C..
Afigura-se assim necessária a ampliação da matéria de facto, de modo a podermos ter uma resposta à questão de saber qual a incapacidade que resultou para o A. das lesões decorrentes da queda ocorrida, designadamente se a mesma foi superior a 50% de acordo com a tabela nacional das incapacidades.
Em conclusão, torna-se indispensável a anulação da decisão para a ampliação da matéria de facto de modo a que o tribunal de 1ª instância responda à seguinte matéria alegada e constitutiva do direito do A., essencial à decisão da causa:
“Do evento descrito 1) resultou para o A. uma incapacidade permanente superior a 50% calculada de acordo com a tabela nacional das incapacidades?”
A anulação da decisão proferida em razão da indispensável ampliação da matéria de facto, não prejudica a restante parte da decisão não viciada, sem prejuízo do disposto no art.º 662.º n.º 3 al. c) do C.P.C."
[MTS]