"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/06/2019

Jurisprudência 2019 (44)


Matéria de facto;
apreciação; decisão


1. O sumário de STJ 26/2/2019 (1316/14.4TBVNG-A.P1.S2) é o seguinte:

I. A fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.

II. A exigência de fundamentação das respostas negativas aos quesitos constituiu inovação na revisão do Código de Processo Civil de 1995/96: não era requisito no Código de Processo Civil de 1939 e só passou a sê-lo, quanto aos factos provados no Código de Processo Civil de 1961, mantendo-se até ao DL. 329-A/95, de 12.12, o dever, quanto aos factos julgados provados, de especificar os fundamentos decisivos para a formação da convicção do Tribunal.

III. A formulação constante da sentença recorrida, que o Acórdão recorrido “validou”, reportada ao dever de fundamentação constante do art. 704º, nº4, do Código de Processo Civil: “Foram considerados como factos não provados: todos os demais alegados que contrariam ou excedem os acima expostos [os 28 indicados como provados], nomeadamente os alegados em 6° a 11°, 58° a 77° da petição de embargos”, é complexa, obscura, não permitindo a imediata e exigível compreensão e apreensão dos factos que a sentença considerou não provados, pois implica uma indagação analítica e especiosa sobre quais são os factos não provados, com referência à formulação “todos os demais alegados que contrariem ou acima expostos, nomeadamente os alegados nos arts. 6º a 11º, 58º a 77º da petição dos embargos”.

IV. Tal indicação implica que os destinatários imediatos da sentença indaguem, através da apreciação da petição dos embargos, que, no caso, comporta 102 artigos, que factos (o conceito, consabidamente, não é unívoco), quais os factos que “contrariam ou excedam os expostos”.

V. A necessidade imposta pela decisão, no que respeita ao apuramento cristalino do completo elenco dos factos não provados, para lá de ser totalmente omissa a fundamentação quanto a eles, consubstancia nulidade, nos termos dos arts. 607º, nº4, e 615º, nº1, als. c) e d) do Código de Processo Civil.

VI. Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável, pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.

VII. Uma deficiente ou obscura alusão aos factos provados ou não provados pode comprometer o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contender com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada como direito fundamental no art. 20º da Constituição da República.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Está em causa a aplicação/interpretação do art. 607º, do Código de Processo Civil, que versa sobre a elaboração da sentença. Não existe, no vigente Código, peça autónoma onde o Juiz, antes da sentença, declara quais os factos provados e não provados após o julgamento, com as respostas aos quesitos, despacho que continha a fundamentação, podendo até ser reclamado.

As Reformas do Código de Processo Civil, visando a simplificação e a celeridade, acabaram com velhas peças processuais, ou fórmulas como a “especificação e o questionário” impuseram, inovadoramente, que na sentença se identifiquem as partes e o objecto do litígio, enunciando-se, de seguida, as questões que cumpre solucionar. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. (nºs 3 e 4).

O nº4 do art.607º do Código de Processo Civil, que está em causa, impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare:

“Quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”

O dever de fundamentação das decisões, na sua vertente endoprocessual e extra-processual, decorre do art. 208º, nº1, da Constituição da República, sendo da maior relevância não só para que possa ser exercido controlo no julgamento da matéria de facto, como na decisão de direito.

A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.

A exigência de fundamentação das respostas negativas aos quesitos constituiu inovação na revisão do Código de Processo Civil de 1995/96: não era requisito no Código de Processo Civil de 1939 e só passou a sê-lo, quanto aos factos provados no Código de Processo Civil de 1961, mantendo-se até ao DL. 329-A/95, de 12.12, o dever, quanto aos factos julgados provados, de especificar os fundamentos decisivos para a formação da sua convicção. [...]

Na audiência prévia foi elaborado o despacho saneador e, a fls. 130, foi indicado como “Objecto do litígio: “o montante da quantia exequenda; a natureza e extensão da responsabilidade dos embargantes; e a validade das cláusulas contratuais”. E como temas de prova – “1. A disponibilização à mutuária dos valores invocados no requerimento executivo para além das quantias indicadas como disponibilizadas nos títulos executivos; 2. A comunicação e explicação das cláusulas contratuais aos embargantes”.

A amplitude e complexidade dos temas de prova e do objecto do litígio, sempre tornaria complexa a tarefa do julgador de indicar com precisão que factos foram submetidos a julgamento e quais as razões (fundamentação) pelas quais se consideraram não provados os quantos que a convicção probatória adquiriu.

Dir-se-ia que a tarefa estaria mais facilitada na velha lógica “cada facto um quesito”, nos remotos tempos da tão criticada e longamente vigente peça “questionário”, depois “base instrutória” que, em articulação com a “especificação” espelhava, em regra, todos e cada um dos factos sujeitos a julgamento, uma valia não despicienda.

No “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, de Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, pág. 717, em comentário ao art.607º lê-se, além do mais:

“A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.”

A formulação constante da sentença recorrida reportada ao dever de fundamentação constante do art. 704º, nº4, do Código de Processo Civil: “Foram considerados como factos não provados: todos os demais alegados que contrariam ou excedem os acima expostos [os 28 indicados como provados], nomeadamente os alegados em 6° a 11°, 58° a 77° da petição de embargos” é complexa, obscura, não permitindo a imediata exigível compreensão e apreensão dos factos que a sentença considerou não provados, pois implica uma indagação analítica e especiosa sobre quais são os factos não provados, com referência à formulação complexa “todos os demais alegados que contrariem ou acima expostos, nomeadamente os alegados nos arts. 6º a 11º, 58º a 77º da petição dos embargos”.

Tal indicação implica que os destinatários da sentença indaguem através de apreciação da petição dos embargos, que comporta 102 artigos, que factos (o conceito, consabidamente, não é unívoco) “contrariam ou excedam os expostos, sendo que importaria ao intérprete saber quais os que contrariavam ou excediam “os acima expostos”.

A necessidade imposta pela decisão, no que respeita ao apuramento cristalino do completo elenco dos factos não provados, para lá de ser totalmente omissa a fundamentação quanto a eles, consubstancia nulidade nos termos dos arts. 607º, nº4, e 615º, nº1, als. c) e d) do Código de Processo Civil.

Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.

Com o devido respeito, não pode este Tribunal reconhecer ao Acórdão recorrido tais requisitos de clareza e precisão na indicação da matéria de facto não provada, para lá da omissão de fundamentação dessa decisão, pelo que enferma de nulidade, nos termos do art. 615º, nº1, b) e c), 684º, nº2, do Código de Processo Civil e, como tal, não pode manter-se sendo anulado."

[MTS]