"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/06/2019

Jurisprudência 2019 (41)


Banco; medida se resolução;
sucessão*

1. O sumário de RP 15/1/2019 (113/10.0TYVNG-ED.P1) é o seguinte:

I - O Banco de Portugal dispõe do poder de transferência de direitos e obrigações de uma instituição de crédito, produzindo a decisão de transferência efeitos independentemente de qualquer disposição legal ou contratual em contrário (arts. 139.º, 140.º, e 145.º-O do RGICSF).

II - A substituição processual ocorrida por efeito directo de uma deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal que opere a dita transferência não carece de ser promovida através de incidente de habilitação de cessionário ou outro nos termos do artigo 269.º, nº2, do CPC.

III - A medida de resolução desencadeada pelo Banco de Portugal de uma dada instituição bancária deve abranger, por via de regra, os activos e os débitos intervencionados, devendo obstar a que se opere uma cisão entre eles particularmente se os mesmos resultarem de um mesmo vínculo contratual.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I) Invoca o recorrente, nos termos do artigo 195.º do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE, a nulidade processual cometida por acção, consubstanciada na notificação do ora Recorrente para prestar depoimento enquanto parte, ou por omissão, consubstanciada na falta de habilitação do ora Requerente para intervir, sendo que tal irregularidade influiu na decisão da causa dado que o Banco B…, S.A. se viu coarctado no seu direito de discutir a sua legitimidade para os presentes autos.

O que decorre desta alegação será a invocação de que o apelante surge como parte na acção sem que, para tanto, tenha sido formal ou validamente demandado o que, no caso mais gravoso, configuraria uma falta de citação (artigo 188º do CPC).

Entendemos que, em substância, será outra a questão a dirimir conexionada com a operabilidade da substituição processual operada nos autos.

Decidido este dissídio, nuclear nos autos, seria contemplado o presente objecto recursal o qual não contende com a pretendida nulidade processual tanto mais que o recorrente tem vindo a litigar nos autos sem que seja coarctado o contraditório ou o seu interesse processual.

De todo modo, uma vez que o apelante foi convocado, mediante notificação recebida a 2 de Maio deste ano, para prestação de depoimento de parte, interveio na audiência de 15 de Maio de 2018 onde nada disse sobre a pretendida nulidade, a mesma deve considerar-se sanada.

Confirma-se, assim, a argumentação já expendida a esse propósito pelo tribunal “a quo” para a qual, no mais, se remete.

II) Entende ainda o apelante que a substituição processual operada nos autos configura uma situação revel aos princípios processuais e constitucionais, tais como o contraditório, a igualdade, a proporcionalidade, o direito a um processo equitativo e ainda a proibição da indefesa, previstos nos n.º 1 e 3 do artigo 3.º do C.P.C. e artigo 2.º e n.º 4 do art. 20.º da C.R.P.

Pretende-se assim a revogação do despacho recorrido, substituído por outro que ordene a notificação do ora recorrente para se pronunciar relativamente à pretensão aduzida no sentido de ser ordenada a sua substituição pelo Banco B…, S.A. nos termos do n.º 2 do artigo 269.º do C.P.C.

Esta questão tem vindo já a ser tratada pelos nossos tribunais superiores designadamente em arestos desta Relação do Porto. A substituição operada fundamentou-se, com as devidas adaptações, no preceituado no artigo 269 n.º 2 do CPC. Ora, tal solução de cuja bondade cuidaremos na alínea seguinte, não implica qualquer violação do princípio do contraditório, da igualdade, da proporcionalidade ou de um processo equitativo, antes decorrendo dos próprios termos da norma convocada (art. 269º, n.º 2 do CPC) em que a parte, “in casu” o recorrente, assume a posição antes detida pelo (anterior) sujeito processual; por assim ser, não terá que beneficiar “ex novo” dos direitos e faculdades de que esta última já antes exerceu no processo sem prejuízo da ponderação, a ser efectivada em momento processual próprio, daqueles argumentos que só à parte ora presente dizem respeito.

De outro modo, conceder-se-ia ao sucessor, chamado a assumir a posição processual do anterior Banco litigante, um tratamento excepcional, sem acolhimento legal (neste mesmo sentido, entre vários outros, leia-se Ac. da Relação de Guimarães de 5.11.2015, processo nº 1111/14.0TBBCL-A.G1 ou desta Relação de 16 de Novembro de 2015, processo 725/14.3TBLSD-A.P1).

Não se vê como, uma vez assentes os pressupostos substanciais da operada substituição legalmente consagrada, se possa invocar a violação dos princípios enunciados, improcedendo, também neste segmento, a presente apelação."

*[Comentário] a) Salvo o devido respeito, o recorrente e o acórdão padecem, ambos, de um equívoco quanto à caracterização da substituição processual.

Importa ter clareza nesta matéria. A confusão reside em entender que o disposto no art. 269.º, n.º 2, CPC conduz à substituição processual regulada no art. 263.º, n.º 1, CPC. Ora, não é assim pela razão seguinte:

-- O art. 269.º, n.º 2, CPC regula a situação em que a parte na causa se torna uma outra entidade por transformação ou fusão; portanto, antes a parte era A e agora, depois da transformação ou fusão, a parte é B; 

-- O art. 263.º, n.º 1, CPC regula a situação em que a parte C (transmitente ou cedente) está em juízo em substituição de D (adquirente ou cessionário); portanto, a substituição processual pressupõe sempre dois interessados: a parte substituta (C) e parte substituída (D).

Basta isto para se poder concluir que o disposto no art. 269.º, n.º 2, CPC nunca pode conduzir à substituição processual do art. 263.º, n.º 1, CPC pela simples razão de que o primeiro preceito regula uma situação em que há apenas uma parte (primeiro A e depois B) e o segundo preceito regula uma situação em que há duas partes em simultâneo (C, parte substituta, e D, parte substituída).

Aliás, é contraditória a afirmação de que, "como reiterado pela nossa jurisprudência, [...] esta substituição processual não carece de ser promovida através de incidente de habilitação de cessionário ou outro, pois ocorre por efeito directo da citada deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal (cf. artigo 269.º, nº 2, do CPC)". Há aqui uma confusão:

--  A substituição processual não pode ser promovida pelo efeito directo de nenhuma deliberação; a substituição processual só se verifica quando há uma parte substituta e uma parte substituída; a substituição processual não é a "saída" de uma parte e a "entrada" de outra em sua substituição, mas precisamente a situação que se verifica quando a parte substituta está em juízo e a parte substituída está fora dele;

-- Por isso, quando a parte substituída "entra" no juízo e a parte substituta "sai" dele, a substituição processual está terminada.

b) Em conclusão: 

-- A inclusão da transformação de um banco decorrente de uma medida de resolução no art. 269.º, n.º 2, CPC obsta à aplicação do mecanismo da substituição processual;

-- Por isso, se a parte convocada para depor entendia haver alguma nulidade processual, essa parte tinha o ónus de invocá-la após a notificação para o depoimento (art. 199.º, n.º 1, CPC); nesta parte o acórdão decidiu bem.

MTS