Livrança; relação cartular; relação subjacente;
ónus da prova; non liquet*
1. O sumário de RP 10/1/2019 (21800/16.4T8PRT-A.P1) é o seguinte:
I – O avalista de uma livrança em branco que interveio no pacto de preenchimento e mesmo no contrato que constitui a relação subjacente encontra-se no domínio das relações imediatas, e pode opor ao portador do título a excepção do preenchimento abusivo.
II – Se a defesa do executado se situa no domínio do direito cartular é-lhe lícito invocar a prescrição do direito cartular do portador do título, mas se a sua defesa se situa no domínio da relação subjacente, a prescrição que pode arguir é a direito de crédito subjacente.
III – Da circunstância de um facto não se ter provado, não é legítimo retirar a prova do facto inverso, contrário ou menor, devendo a decisão ser proferida como se esse facto não tivesse sido sequer alegado, aplicando-lhe as regras do ónus da prova.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
I – O avalista de uma livrança em branco que interveio no pacto de preenchimento e mesmo no contrato que constitui a relação subjacente encontra-se no domínio das relações imediatas, e pode opor ao portador do título a excepção do preenchimento abusivo.
II – Se a defesa do executado se situa no domínio do direito cartular é-lhe lícito invocar a prescrição do direito cartular do portador do título, mas se a sua defesa se situa no domínio da relação subjacente, a prescrição que pode arguir é a direito de crédito subjacente.
III – Da circunstância de um facto não se ter provado, não é legítimo retirar a prova do facto inverso, contrário ou menor, devendo a decisão ser proferida como se esse facto não tivesse sido sequer alegado, aplicando-lhe as regras do ónus da prova.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Antes de entrar propriamente na análise das questões jurídicas suscitadas pelo recorrente é necessário fazer uma precisão para evitar equívocos que perpassam pelas alegações de recurso.
A aplicação de normas jurídicas exige a prévia determinação dos factos que integram a respectiva previsão, já que só respeitando os factos que integram a previsão da norma se faz a correcta aplicação do direito, ou seja, das normas legais que associam a determinado facto ou factos consequências jurídicas específicas. A determinação dos factos que constituem a previsão da norma é, num primeiro momento, uma tarefa de apuramento, entre todos os factos que podiam ter lugar, aqueles que efectivamente ocorreram, na medida em que a norma jurídica regula factos e não hipóteses, eventos e não meras suposições.
Por esse motivo, a fundamentação de facto de uma decisão é constituída exclusivamente pelos factos provados. Apenas podem servir de fundamento à decisão os factos que o tribunal julgou provados, os factos em relação aos quais o tribunal, enquanto órgão jurisdicional cuja primeira tarefa é ajuizar os meios de prova e através deles apurar os factos que ocorreram, formula soberanamente um juízo de afirmação de correspondência com a realidade ontológica.
Os factos em relação aos quais o tribunal entendeu não ter sido produzida prova bastante para poderem ser julgados provados não podem servir de sustentáculo à aplicação de qualquer norma jurídica. Se não se sabe sequer se o facto ocorreu não pode obviamente decretar-se a consequência jurídica que o legislador definiu para o caso de o facto ser real.
Daí que em relação aos factos de que não se fez prova tudo se passe como se esse facto não tivesse sido sequer alegado, não podendo fazer-se a partir dele qualquer extrapolação factual ou retirar-se dele qualquer consequência jurídica, com excepção da imposta pelas regras do ónus da prova. Não pode, por exemplo, fazer-se qualquer interpretação à contrario dos factos não provados, retirar-se da não prova de determinado facto a prova do facto contrário, oposto ou menor. Também não se pode, a partir de factos não provados, fazer-se qualquer dedução baseada em regras de experiência ou presunções, as quais apenas podem recair sobre os factos provados.
Coisa diferente consiste em saber qual a parte que estava onerada com o dever de fazer a prova de determinado facto. Essa determinação é importante porque se um determinado facto não tiver sido julgado provado o tribunal deve decidir contra a parte que tinha o ónus de o provar, conforme resulta dos artigos 346.º do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil que contém a chamada regra de julgamento. Só que nessa situação, para fundamentar a decisão o tribunal não retira da não prova do facto a prova do facto oposto ou inverso. Da circunstância de o facto não ter sido julgado provado, o julgador apenas retira a improcedência da pretensão da parte que o devia ter provado para demonstração dos pressupostos do instituto jurídico em que alicerçou a sua pretensão.
Fica assim justificado que da circunstância de ter sido julgado não provado que «a exequente enviou as cartas juntas a fls. 58 e de fls. 61 a 62, cujo teor aqui se dá por reproduzido, à sociedade D…, SA para a Rua …» e ainda que «a exequente enviou as cartas juntas de fls. 59 a 60, cujo teor aqui se dá por reproduzido, ao embargante para a Rua …., …, casa ..., Porto» não se poder retirar que (tenha sido julgado provado que) a exequente não efectuou as comunicações a que se destinavam essas cartas."
*3. [Comentário] a) Deixa-se apenas um apontamento sobre uma questão muito profunda e interessante.
Numa situação de non liquet, o art. 414.º CPC impõe que o tribunal ficcione o facto contrário do facto probando e decida em conformidade com este facto. Em concreto: se o autor afirmar "sou credor do réu" e a prova deste facto controvertido não for sequer realizada pelo autor ou for impugnada pelo réu, o tribunal ficciona o facto "o autor não é credor do réu" e decide com fundamento neste facto ficcionado. Neste sentido, é discutível a afirmação que consta do acórdão de que, numa situação de non liquet, "para fundamentar a decisão o tribunal não retira da não prova do facto a prova do facto oposto ou inverso". O que se deve afirmar é antes que, perante um non liquet, o tribunal tem de retirar da não prova do facto a prova do facto oposto ou inverso.
Aliás, o mesmo sucede quando, perante a prova do facto pela parte onerada, se verifica a impugnação desta prova através da prova do facto contrário pela outra parte. Por exemplo: o autor afirma "sou credor do réu" e este réu demonstra que já pagou a dívida. Também neste caso o tribunal decide com base no facto contrário do facto alegado pelo autor.
b) Em conclusão, as hipóteses são as seguintes:
-- A parte não fez sequer a prova do facto probando ou, porque se trata de uma prova bastante, a prova realizada pelo parte foi contrariada por contraprova da outra parte (cf. art. 346.º 1.ª parte CC); em qualquer destas hipóteses o facto controvertido continua a ser um facto duvidoso e, por isso, origina-se uma situação de non liquet; aplicando o disposto no art. 346.º 2.ª parte CC e no art. 414.º CPC, o tribunal ficciona o facto contrário do facto probando;
-- A parte fez prova do facto probando, mas, porque se trata de uma prova plena, a contraparte impugnou essa prova através da prova do facto contrário do facto probando (cf. art. 347.º CC); o tribunal decide com base neste facto contrário do facto probando.
Como se vê, em qualquer das situações, a decisão do tribunal apoia-se no facto contrário do facto probando. A única diferença é que, num caso, esse facto é um facto ficcionado e, no outro, é o facto provado.
c) O proferimento de uma decisão com base no facto contrário (ficcionado ou provado) do facto probando levanta uma questão muito interessante: qual é o fundamento jurídico para o proferimento pelo tribunal da correspondente decisão de improcedência? Poder-se-ia ser levado a pensar que esse fundamento seria a regra que se encontra no art. 346.º 2.ª parte CC ou no art. 414.º CPC, mas é fácil perceber que não pode ser assim: essa regra só resolve o problema no plano da matéria de facto e só impõe que o juiz ficcione o facto contrário do facto probando; depois desta ficção e com base no facto ficcionado, o juiz, agora já situado no plano da matéria de direito, ainda tem de proferir uma decisão de improcedência, ou seja, ainda tem de extrair uma consequência jurídica daquele facto.
O proferimento de uma decisão de procedência não levanta nenhum problema, dado que ela decorre da aplicação de uma regra jurídica segundo a qual, perante a verificação do facto que integra a sua previsão, se extrai ou se poduz a consequência jurídica que decorre da sua estatuição. Mas -- e esta é a questão interessante -- onde está a regra jurídica que determina que, perante o não preenchimento de uma certa previsão, não se pode extrair ou não se produz uma certa consequência jurídica? Por exemplo: é claro que quem tiver um título de aquisição da propriedade é reconhecido como proprietário; mas -- pode perguntar-se --, onde está a regra jurídica que determina que quem não possuir um desses títulos não é reconhecido como proprietário?
Repare-se que a consequência extraída da não verificação de uma previsão legal (por exemplo, o autor não é proprietário de x ou não é filho de y) tem exactamente o mesmo valor da consequência retirada da verificação de uma previsão legal (por exemplo, o autor é proprietário de x ou é filho de y). A consequência negativa (o "não é") não é um nihil no ordenamento jurídico, antes é algo que, tal como a consequência positiva (o "é"), tem relevância jurídica. Daí que, se nenhuma consequência positiva se produz sem um fundamento jurídico, também seja necessário encontrar um fundamento jurídico para a consequência negativa.
Neste contexto só importa enunciar o problema. Evidente é, no entanto, que o mesmo merece não só reflexão, mas também -- segundo se supõe -- solução.
MTS