"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/06/2019

Jurisprudência 2019 (33)


Ineptidão da petição inicial;
momento do conhecimento*

 
1. O sumário de RG 7/2/2019 (82/10.7TBPTL.B.G1) é o seguinte:

I. Face ao preceituado no art. 200º, nº 1, do CPC a nulidade principal prevista no art. 186º do CPC, é apreciada no despacho saneador, se o não tiver sido antes - podendo conhecer-se dela até à sentença final, se o processo não comportar despacho saneador.

II. Assim, a nulidade por ineptidão da petição inicial está irremediavelmente precludida no momento em que é proferida sentença em 1ª instância, não podendo, consequentemente, ter-se por verificada, mesmo por impulso oficioso do Tribunal, apenas na fase de recurso.

III. Tendo no caso dos autos sido proferido despacho saneador, no qual não houve pronúncia expressa sobre a ineptidão da p. inicial, o seu conhecimento em momento processual posterior está vedado a este Tribunal da Relação, devendo essa nulidade julgar-se sanada e apreciar-se do mérito da causa, não existindo qualquer outra questão que a tal obste.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Entendendo a ora relatora ser inepta a petição inicial, quanto aos pedidos formulados sob as als. a) e b), por manifesta contradição entre estes e a causa de pedir, o que levaria à procedência de tal excepção ou eventual improcedência dos pedidos em causa (visto o disposto pelo art. 200º nº 2 do CPC), com o consequente conhecimento dos pedidos deduzidos em c), uma vez que o processo dispõe dos elementos necessários a tal, foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos dispostos pelo art. 665º nº 3 do CPC. [...]

A primeira questão a resolver aqui, consiste em saber se, a petição inicial é inepta no que se refere ao pedido principal e ao primeiro pedido subsidiário, por manifesta contradição entre esses pedidos e a causa de pedir, e as consequências de tal.

O pedido principal deduzido pelo autor consiste no seguinte: 

a) emendar-se a partilha, mantendo-se a adjudicação da verba n.º (…) à ré e condenando-se esta última a pagar ao autor € 38.600,00, acrescidos de juros moratórios, contados à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, correspondentes ao valor do prédio identificado no precedente art. 5.º deste articulado, deduzido do valor das benfeitorias nele implantadas, ou outro valor que ao mesmo vier a ser atribuído nos presentes autos.

E o primeiro pedido subsidiário deduzido pelo autor, tem o seguinte teor:

b) subsidiariamente, e para o caso de assim se não entender, deve emendar-se a partilha, mantendo-se a adjudicação da verba n.º (…) à ré e condenando-se esta última a pagar ao autor € 19.300, acrescidos de juros moratórios, contados à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, correspondentes a metade do valor do prédio identificado no precedente art. 5.º deste articulado, deduzido das benfeitorias nele implantadas, sem benfeitorias, ou outro valor que ao mesmo vier a ser atribuído nos presentes autos.

Vejamos.

Temos que o autor fundamenta os seus pedidos nos seguintes factos, que resultaram provados:

- autor e ré casaram um com o outro em 7 de … de …, tendo tal casamento sido dissolvido por divórcio decretado em 15 de Outubro de 2010, na sequência do qual se tramitou processo de inventário. 
 
- neste foi relacionado pela ré, então C.C., como verba nº (…) o prédio urbano composto de habitação ... no lugar de (…), Arcozelo, (…), inscrito na matriz sob o artigo (…) e descrito na conservatória com o n.(…) freguesia de Arcozelo. 
 
- na sequência de reclamação do autor, então interessado, foi decidido, quanto à verba nº (…), remeter os interessados para os meios comuns, permanecendo entretanto a verba na relação.
 
- prosseguindo o inventário, na conferência - datada de 18 de Dezembro de 2013 - a verba nº (…) veio a ser adjudicada à C.C., agora ré. Esta licitou a verba nº (…) pelo valor de € 60.000 e veio a depositar a metade (os restantes 600 euros correspondem ao valor de outras verbas licitadas pela ré -7, 11, 13, 14) correspondente às tornas em 6 de Junho de 2014, tendo sido a partilha homologada por sentença - transitada - de 27 de Outubro desse ano e efectuada de seguida a transferência do valor das tornas para o autor.
 
- o autor instaurou a correspondente acção, visando a declaração de que o prédio constante da verba nº (…) era próprio dele e não bem comum. 
 
- nessa acção instaurada pelo autor, foi proferida decisão em 24 de Junho de 2016, transitada, que declarou o prédio bem próprio do autor, ter a ré direito, tão-somente, à meação nas benfeitorias construídas sobre o dito prédio e determinou a exclusão do mesmo da relação, passando a relacionar-se a benfeitoria consistente na construção de uma casa de habitação.

Ora, face ao que foi pedido e decidido nessa acção, parece que todos os intervenientes processuais, com excepção da ré, se esqueceram da existência de tal processo anteriormente instaurado pelo autor, e do que aí foi pedido e decidido.

Com efeito, tendo as partes sido remetidas para os meios comuns no âmbito do processo de inventário para separação de meações, a fim de discutir o direito de propriedade sobre o prédio onde foi erigida a construção, o autor veio a intentar a acção em causa.

E nesse processo, por decisão transitada em julgado, face aos pedidos deduzidos pelo autor, foi decidido que o prédio em causa é bem próprio do autor; ter a ré direito, tão-somente, à meação nas benfeitorias construídas sobre o dito prédio; foi determinada a exclusão do mesmo da relação de bens apresentada no processo de inventário; passando a relacionar-se a benfeitoria consistente na construção de uma casa de habitação. [...]

Ou seja, a sentença que foi proferida no âmbito do processo identificado em f) e h) dos factos provados, é a que pode servir de suporte a uma emenda à partilha.

E essa emenda à partilha, que o autor agora pretende através desta acção, terá de ser feita de acordo com o que aí se decidiu, e já não de acordo com aquilo que o autor entende agora, pois que aquilo que o autor pretende agora está em manifesta contradição com aquilo que antes pediu.

Importa esclarecer que, da factualidade dada como assente, resulta que, com o trânsito da decisão que remeteu os interessados para os meios comuns, se constituiu caso julgado formal, quer quanto à remessa dos interessados para os meios comuns, para aí se definir a questão da propriedade do bem relacionado sob a verba nº 13, quer quanto a dever este bem permanecer relacionado no inventário.

Daqui podem retirar-se duas conclusões: 

- A primeira, é a de que, sob pena de violação do referido caso julgado, a questão da definição, em definitivo, do titular do direito de propriedade do bem relacionado não pode ser resolvida nos autos de inventário, nem em acção, apensa ou não a estes, que não tenha como escopo a definição dessa titularidade. 
 
- A segunda é a de que, em princípio, a decisão que determina que o bem em causa permaneça relacionado implica que, sem violação do caso julgado que se constituiu relativamente a ela, não se possa decidir a exclusão desse bem do inventário, a não ser que essa exclusão seja motivada pela decisão proferida nos meios comuns para onde tenham sido remetidos os interessados e que haja reconhecido, em termos definitivos, que o direito de propriedade desse bem, cuja indevida relacionação se invocou, pertence em exclusivo a quem isso reclamou, assim se demonstrando não fazer parte do acervo de bens a partilhar. (Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 09/11/2007).

Acresce que a inclusão, na partilha, de um bem, relativamente à titularidade do qual as partes foram remetidas para os meios comuns, tendo o Tribunal, no entanto, determinado, concomitantemente, nos termos do artº 1350º, nº 1, do CPC, que esse bem permanecesse relacionado, estando em consonância com essa decidida permanência, não contraria o caso julgado dessa decisão, na parte em que determinou que a apontada titularidade fosse discutida nos meios comuns, já que não implica o conhecimento dessa titularidade. 

No caso dos autos, tendo as partes sido remetidas para os meios comuns no âmbito do processo de inventário para separação de meações, a fim de discutir o direito de propriedade sobre o prédio onde foi erigida a construção, o autor veio a intentar a acção em causa.

E nesse processo, por decisão transitada em julgado, face aos pedidos deduzidos pelo autor, foi decidido que o prédio em causa é bem próprio do autor; ter a ré direito, tão-somente, à meação nas benfeitorias construídas sobre o dito prédio; foi determinada a exclusão do mesmo da relação de bens apresentada no processo de inventário; passando a relacionar-se a benfeitoria consistente na construção de uma casa de habitação.

Tal sentença, que foi favorável ao autor, é que pode servir de suporte à emenda da partilha agora pretendida.

E essa emenda à partilha, que o autor agora pretende através desta acção, como já se disse, terá de ser feita de acordo com o que aí se decidiu, e já não de acordo com aquilo que o autor entende agora, pois que aquilo que o autor pretende agora está em manifesta contradição com aquilo que antes pediu.

Temos assim que a causa de pedir nos presentes autos aponta para um efeito oposto ao efeito pretendido pelo autor, o que gera a contradição entre o pedido principal e o primeiro pedido subsidiário com a causa de pedir (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. I, 3ª ed., págs. 352 a 361), e nessa medida a ineptidão da petição inicial, nessa parte.

Contudo, a nulidade daí decorrente, não pode este Tribunal declará-la, sequer oficiosamente.

De facto, resulta dos artºs. 196º, 197º nº 1, 198º nº 1 e 200º nº 2 do CPC, que tal nulidade:

● pode ser invocada pelo interessado [na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto] só até à contestação ou nesse articulado;
 
● e pode ser oficiosamente conhecida pelo Tribunal no despacho saneador ou, não o havendo, até à sentença final.

Ultrapassadas estas fases, aquela nulidade não pode ser invocada nem conhecida/declarada (cfr. Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, 1982, pg. 233 e Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 1999, pg. 357). 

No caso dos autos, a ré/apelada não arguiu a nulidade da p. i., por ineptidão, nem até à contestação, nem em tal articulado. O Tribunal «a quo» também não a declarou no despacho saneador. Depois destes momentos processuais ficou precludida a possibilidade de a mesma ser oficiosamente declarada pelo Tribunal (quer pelo de 1ª instância, quer por esta Relação).

Com efeito, como se escreveu no Ac. do STJ de 26-03-2015, disponível em www.dgsi.pt: “Efectivamente, face ao preceituado no art. 200º, nº1, do CPC a referida nulidade principal, prevista no art. 186º do CPC, é apreciada no despacho saneador, se o não tiver sido antes - podendo conhecer-se dela até à sentença final, se o processo não comportar despacho saneador.

Resulta, pois, claramente deste preceito legal – que reproduz inteiramente o regime que já constava do anterior art. 206º do velho CPC – que a nulidade por ineptidão da petição inicial está irremediavelmente precludida no momento em que é proferida sentença em 1ª instância, não podendo, consequentemente, ter-se por verificada, mesmo por impulso oficioso do Tribunal, apenas na fase de recurso”.

E no Ac. da RC de 08-09-2015, disponível em www.dgsi.pt: “A ineptidão da p. inicial determina a nulidade de todo o processo (art.º 186º, n.º 1, do Novo C. P. Civil), configurando uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (art.º 577º, b) e 578º do mesmo diploma legal). 

No entanto, pese embora a lei prescreva que o conhecimento desta nulidade é oficioso, quanto à ineptidão da p. inicial, conforme decorre claramente do art.º 200º, n.º 2, do Novo C. P. Civil (tal como já resultava do anterior 206º, n.º 2, do C.P.C. de 1961), impõe como limite temporal para o seu conhecimento o despacho saneador, quando o haja, ou a sentença final caso não tenha havido lugar àquele”.

A ser assim, como efectivamente nos parece que é, tendo no caso dos autos sido proferido despacho saneador, no qual não houve pronúncia expressa sobre a ineptidão da p. inicial, o seu conhecimento em momento processual posterior está vedado a este Tribunal da Relação, devendo essa nulidade julgar-se sanada e apreciar-se do mérito da causa, não existindo qualquer outra questão que a tal obste (neste sentido Ac. da RC de 08-09-2015, acima citado).

Assim, considerando o acima exposto, e visto que o autor não logrou alegar e provar elementos factuais constitutivos de que dependia o reconhecimento do direito por ele invocado, quer no que toca ao pedido principal, quer no que toca ao primeiro pedido subsidiário, tais pedidos teriam que ser julgados improcedentes.

Com efeito, como se disse já, a factualidade invocada pelo autor, como fundamento da acção, é contraditória com os pedidos por ele deduzidos (principal e primeiro subsidiário), nunca podendo levar à procedência dos mesmos.

Face a tal, manifesto é que a presente apelação não pode proceder, pois que, nunca poderia ser julgado procedente, como pretende o autor/recorrente, o pedido principal por si deduzido.
"

*3. [Comentário] O caso sub iudice poderia ter merecido um outro enquadramento processual. Infelizmente, esquece-se com frequência que, de acordo com o disposto no art. 580.º, n.º 2, CPC, a excepção de caso julgado visa evitar não apenas repetições de decisões, mas também contradições entre decisões. Ora, verificando-se que o que o autor pretende obter nesta acção é algo que é contraditório com o que ficou decidido, entre as mesmas partes, numa acção anterior, está preenchida a condição para a verificação da excepção de caso julgado.

Se não fosse também esse o âmbito de aplicação da excepção de caso julgado, a parte demandada numa acção nunca teria a garantia de que não poderia vir a ser novamente demandada numa segunda acção para a obtenção de um resultado incompatível com aquele que foi definido na primeira. Suponha-se o seguinte caso: um autor propõe uma acção em que pede o reconhecimento de que é usufrutuário de um prédio; é reconhecido como tal; sem que, entretanto, tenha surgido nenhum facto superveniente, o mesmo autor resolve propor uma outra acção contra o mesmo réu pedindo, agora, o seu reconhecimento como proprietário. Pergunta-se: o que pode obstar a esta estratégia processual e à admissibilidade desta segunda acção? Resposta: a excepção de caso julgado.   

MTS