"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/12/2019

Jurisprudência 2019 (135)


Assistente;
legitimidade para recorrer*


1. O sumário de RP 22/5/2019 (1152/15.0T8VFR.P1) é o seguinte:

I - O direito de recorrer é apenas atribuído, em princípio, a quem for parte e lhe advier um prejuízo directo e efectivo da decisão, ou seja, se dela resultar um prejuízo actual e positivo, no sentido de impor responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses juridicamente tutelados.

II - Assim, o interveniente acessório, para além da situação especial prevista no artigo 329.º do CPCivil (quando o assistido for revel), só tem legitimidade para interpor recurso quando demonstre que a decisão o prejudicou directa e efectivamente, situação que não se verifica quando pretenda apenas interpor da decisão final em que o chamante, como réu, é condenado no pedido indemnizatório formulado pelo autor.

III - É que a intervenção acessória visa apenas impor ao chamado os efeitos do caso julgado da acção, de modo a que não seja possível (nem necessário), que na subsequente acção de regresso que vier a ser proposta pelo réu contra o chamado se voltem a discutir as questões já decididas no anterior processo enquanto elemento condicionante ou prejudicial da existência do direito de regresso ou indemnização, ou seja, os pressupostos concernentes à existência e ao conteúdo do direito à indemnização da titularidade do autor.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

[...] no Ac. STJ de 15.12.2011 [Proc. n.º 767/06.2TVYNG.P1.S1, relator Fonseca Ramos, acessível em www.dgsi.pt.] refere-se que: “O prejuízo que é pressuposto da legitimidade ad recursum de terceiros prejudicados pela decisão, é um prejuízo real, directo, efectivo, não meramente um prejuízo ou dano colateral, reflexo. Se a decisão não causa um prejuízo directo, se não se repercute de forma nuclear, afectando o património físico ou moral do recorrente, mas antes de modo reflexo lhe puder causar dano, esse terceiro não pode recorrer da decisão por falta de legitimidade.” [Neste sentido, cfr. ainda Ac. STJ de 07.12.1993, BMJ 432, pág. 298, no qual se refere “Pelo art. 680.°, do Código de Processo Civil, o direito de recorrer é atribuído apenas, em princípio, a quem for “parte principal na causa” (n.º 1), mas, a título excepcional, é reconhecido também às “pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão…, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias” (n. °2). Este prejuízo, para poder classificar-se de directo e imediato, tem de resultar da própria decisão e de ser actual e positivo, no sentido de impor responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses juridicamente tutelados, isto é, tem de ser real e jurídico.”]

No caso em apreço, o recorrente E… figura no presente processo exclusivamente na veste de parte acessória, na sequência da suscitação do seu chamamento por parte da Ré D…, S.A..

Efectivamente, preceitua a este respeito o artigo 321.º do CPCivil que:

1 - O réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.

2 - A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento.

Conforme refere Lopes do Rego [In Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 252 e ss..], na base da configuração do incidente intervenção acessória provocada “está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexo com a controvertida e - invocada pelo réu como causa do chamamento - é a de mero auxiliar da defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal” [...].

Mas, sendo tal a ideia - continua o mesmo A. - “não deve ser tratado como parte principal”, o seu papel e estatuto reconduzem-se, pois, ao de auxiliar na defesa, visando com a sua actuação processual-não obstar à própria condenação, reconhecidamente impossível-mas produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto do réu-chamante”.

A este respeito, escreveu também Salvador da Costa [In Os Incidentes da Instância-3ª edição-, pág. 127 e ss..]: “Esta solução legal é inspirada, face ao interesse indirecto ou reflexo, na improcedência da pretensão ao autor, pela ideia de a posição processual que deve corresponder ao titular de uma acção de regresso, meramente conexa com a relação jurídica material controvertida objecto da causa principal, é a de mero auxiliar na defesa, em termos de acautelamento da eventualidade da hipótese de no futuro contra ele ser intentada, por quem foi réu na acção anterior, acção de regresso para efectivação do respectivo direito”.

E, não deixou de fazer notar que “o fundamento básico da intervenção acessória provocada é a acção de regresso da titularidade do réu contra terceiro, destinada a permitir-lhe a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda", sendo certo que "o chamado não influencia a relação jurídica processual desenvolvida entre o autor e o chamante" e, daí que "nela não pode haver sentença de condenação”.

Portanto, o efeito do chamamento é apenas fazer com que a sentença proferida constitua caso julgado quanto ao chamado, relativamente às questões de que depende o direito de regresso do autor do chamamento sendo que, apenas em ulterior acção de regresso, proposta pela Ré seguradora contra o chamado, uma vez satisfeita a indemnização ao lesado, haverá que averiguar e decidir se esse direito existe ou não.

A decisão sobre a efectiva titularidade do direito de regresso não cabe no âmbito da relação jurídica controvertida nesta causa e antes diz respeito a outra relação jurídica conexa com ela, cuja apreciação exige a instauração de uma ulterior acção de regresso contra o terceiro chamado, onde se decidirá sobre a existência ou inexistência desse direito.

O efeito de caso julgado que a sentença eventualmente produzir relativamente ao chamado reduz-se à impossibilidade de este alegar, na acção de indemnização, que o réu foi negligente na defesa oposta ao autor mesmo que o réu tenha confessado o pedido ou deixado passar em julgado a sentença da primeira instância.

Do que fica dito resulta, pois, que o papel do chamado E… como interveniente acessório era, por força do preceituado no artigo 321.º, de mero auxiliar na defesa da Ré Seguradora, cingindo-se a sua participação processual à discussão das questões com repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento cabendo-lhe, nas fases subsequentes à respectiva citação, o estatuto de assistente, definido pelo artigo 326.º CPCivil, aplicável ex vi artigo 323.º, nº 1 do mesmo diploma legal.

Ora, ao assistente não cabe o direito de recorrer pelo assistido, salvo na específica situação de substituição processual (quando o assistido for revel) prevista no artigo 329.º do CPCivil.

Com efeito, não defendendo o interveniente acessório um direito próprio, mas limitando-se a auxiliar a parte principal, que é quem é condenada na acção, se decair, apesar de gozarem dos mesmos direitos e estarem sujeitos aos mesmos deveres que a parte principal, a sua actividade está subordinada à da parte auxiliada, não podendo praticar actos que esta tenha perdido o direito de praticar nem assumir atitude que esteja em oposição com a do assistido, sendo que, se houver divergência insanável entre a parte principal e o assistente, prevalece a vontade daquela (cfr. artigo 328.º, nº 2 do CPCivil).

Como assim, o interveniente acessório, para além da situação especial prevista no citado artigo 329.º, só tem legitimidade para interpor recurso quando demonstre que a decisão o prejudicou directa e efectivamente nos termos que supra se deixaram referidos.

Este prejuízo directo exigido pela lei tem subjacente a ideia de que a decisão visa directamente o recorrente, afastando as situações em que o prejuízo, ainda que efectivo, é indirecto, reflexo ou mediato.

A opção do legislador foi no sentido de evitar a interposição de recursos em casos de prejuízo “eventual, longínquo, incerto, apenas provável ou possível”. [Cfr. BMJ, Vol. 123º. Pág. 132.]

O direito de recorrer é, assim, apenas atribuído, em princípio, a quem for parte e, o referido prejuízo, para poder classificar-se de directo e imediato, tem de resultar da própria decisão e de ser actual e positivo, no sentido de impor responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses juridicamente tutelados, isto é, tem de ser real e jurídico.

Acontece que, no caso sub judice, a sentença proferida não impõe ao interveniente E…, como é bom de ver, quaisquer responsabilidades, nem implica a aludida imediata afectação de direitos ou interesses do mesmo, desconhecendo-se, até, se a acção relativa ao eventual direito de regresso vai, ou não, ser proposta.

Sendo-o, porém e como ficou dito, só aí se decidirá sobre a existência ou inexistência desse direito.

Destarte, não é admissível a autónoma interposição de um recurso próprio pelo chamado E…, por o mesmo não beneficiar obviamente do estatuto de parte principal e a decisão do litígio não ter incidência directa no seu interesse e na sua esfera jurídica, apenas podendo relevar, de modo estritamente reflexo e indirecto, no âmbito de uma futura e eventual acção de regresso. [Cfr. neste sentido Ac. do STJ de 25/03/2010 in www.dgsi.pt]

Bom, dir-se-á se “o chamado interveniente acessório assume o estatuto de alguém que, auxiliando a defesa do chamante, se defende a si próprio; tem todo o interesse jurídico em que a chamante obtenha ganho de causa, para frustrar o direito de regresso invocado como fundamento do chamamento (…) não fazendo por isso qualquer sentido que, estendendo-se à interveniente acessória os efeitos do caso julgado da sentença que condenou a ré (parte principal) não possa dela recorrer quem, como a chamada, é directa e efectivamente prejudicada com aquela decisão”. [Cfr. neste sentido Ac. do STJ de 13/11/07 in Col. Jur. III/142 e ainda o do mesmo tribunal o Ac. de 17/04/2008 in www.dgsi,pt.]

Salvo o devido respeito, não se acompanha este entendimento.

Importa, desde logo, assinalar que os efeitos do caso julgado, tal como acima se referiu, apenas se estendem ao chamado no que concerne às questões de que depende o direito de regresso.

Na verdade, o caso julgado apenas torna assentes os pressupostos do direito de regresso relativamente às questões já decididas no anterior processo que, por respeitarem à relação jurídica existente entre o autor e o réu, condicionam a relação (dependente) entre este e o chamado, ficando em aberto para a acção de indemnização a discussão sobre todos os outros pontos de que depende o direito de regresso.

Assim, em regra, na nova acção de indemnização em que figure como réu o chamado à intervenção, fica este vinculado ao conteúdo da respectiva sentença como prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido (e só), tendo a faculdade de ali impugnar os referidos factos e o direito, alegando que o réu (autor na acção de regresso) na acção anterior o impediu de fazer uso de alegações ou de meios de prova influentes na decisão final, ou que desconhecia a existência de alegações ou provas susceptíveis de influir naquela decisão, e que o réu (autor na acção de regresso) as não usou intencionalmente.

Como refere Lebre de Freitas [In CPC Anotado, Vol. I. pags. 590 e 591] “Esta circunscrição do âmbito objectivo do caso julgado no âmbito da causa prejudicial (relativamente ao direito de regresso) constituída pelo primeiro processo mantém-se inteiramente: para a acção de indemnização fica em aberto a discussão sobre todos os outros pontos de que depende o direito de regresso; assentes ficam só os pressupostos desse direito que, por respeitarem à relação jurídica existente entre o autor e o réu, condicionam a relação (dependente) entre este e o chamado”.

Acresce que, não vemos como se possa dizer que o chamado é directa e efectivamente prejudicado com decisão proferida na acção em que o incidente foi suscitado.

Porventura o chamado é condenado nessa acção?

E no caso concreto, a sentença proferida impôs ao interveniente E… quaisquer responsabilidades ou implicou de imediato a afectação de direitos ou interesses do mesmo?

É que a pergunta que se impõe não é: tem o interveniente interesse directo e efectivo na não condenação da parte que provocou a sua intervenção?

Na verdade não é na resposta a esta pergunta que se filia a facti species do nº 2 do artigo 631.º do CPCivil.

A legitimidade para a interpor o recurso, nos termos da citada norma, advém de alguém ter sido directa e efectivamente prejudicado pela decisão nos termos que noutro passo se deixaram referidos, coisa que não acontece com o chamado.

É claro que ele tem interesse na não condenação da parte que provocou a sua intervenção, pois que, se assim for, evidentemente que nunca poderá ser demandado em acção de regresso.

Todavia, daí não se segue que ele fique, apenas por essa circunstância, com legitimidade para recorrer.

Diferente entendimento é desvirtuar a ratio legis que presidiu à citada norma e que, segundo cremos, terá sido no sentido de evitar a interposição de recursos em casos de prejuízo eventual reflexo, longínquo, incerto, apenas provável ou possível.

É claro que isso não invalida que durante a tramitação processual da lide não possam surgir situações em que o chamado seja directamente visado por determinada decisão, caso em que, como se torna evidente, poderá dela recorrer (cfr. o já citado artigo 631.º nº 2 do CPCivil).

É que se assim não for, então, qualquer terceiro que por via indirecta ou reflexa possa vir a ser, em qualquer momento, afectado por uma qualquer decisão terá sempre legitimidade para dela recorrer."

*III. [Comentário] a) O decidido no acórdão da RP é, salvo o devido respeito, dificilmente compatível com o que resulta, em termos práticos, do disposto no art. 321.º CPC quanto ao valor de caso julgado da sentença quanto ao assistente.

Com efeito, esse preceito determina que, com as excepções previstas nas suas alíneas, "a sentença proferida na causa constitui caso julgado em relação ao assistente, que é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido".

Tendo isto presente, a pergunta que se impõe é a seguinte: perante a vinculação do assistente aos factos e ao direito estabelecidos na sentença proferida na acção de indemnização em que interveio o assistente, quais as hipóteses de esta parte acessória conseguir provar que a indemnização não pode ser aquela que consta da respectiva decisão ou que nem sequer existe esse direito à indemnização?

A experiência comum não pode deixar de conduzir a esta resposta: essas hipóteses são mínimas (para não dizer que são inexistentes). Se estão fixados os factos que conduziram a uma indemnização, é crível que se possa vir a entender que afinal a indemnização é algo de substancialmente menor ou que, afinal, nem sequer existe?

Acresce que coarctar a faculdade de o assistente interpor recurso da decisão condenatória proferida na acção de indemnização torna este assistente "refém" do comportamento do demandado condenado. Sabendo esta parte que, na posterior acção de regresso, o assistente dificilmente consegue opor-se ao montante da indemnização e ao próprio direito à indemnização, o demandado condenado pode não encontrar um incentivo suficiente para interpor recurso da decisão condenatória. 

Os efeitos desta situação só podem ser afastados através da atribuição de legitimidade para recorrer à parte acessória.

b) Em conclusão: 

-- Na acção de regresso proposta pelo (anterior) demandado condenado contra o (anterior) assistente, pode, efectivamente, discutir-se o direito de regresso daquele contra este, mas dificilmente o montante da indemnização e, menos ainda, o próprio direito à indemnização;

-- Isto constitui um desincentivo para a interposição de recurso pelo próprio demandado condenado (parte assistida);

-- Sendo assim, deve reconhecer-se legitimidade ao assistente para interpor recurso da decisão condenatória do demandado.

MTS