"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/06/2023

Jurisprudência 2022 (203)


Providência cautelar; caducidade;
execução contra requerente*


1. O sumário de RC 11/10/2022 (1230/21.7T8CVL.1.C1) é o seguinte:

I - No âmbito de procedimento cautelar, a caducidade da providência, a que alude o art.º 373.º do NCPCiv., com extinção do procedimento ou levantamento da providência (se já decretada), visa sancionar o comportamento do requerente, por inércia sua (conduta negligente) ou por inexistência do direito que pretende fazer valer, e não a parte requerida.

II - Se, decretada a providência requerida sem audiência da contraparte, esta veio deduzir oposição subsequente, em resultado do que a providência foi reduzida, com condenação, transitada em julgado, da requerente em obrigação de restituição do que recebeu em excesso, após o que foi levantada a providência, por caducidade decorrente da não propositura da ação principal pela requerente, tal caducidade (em desfavor da requerente) em nada obsta àquela condenação a restituir.

III - A caducidade também em nada compromete a ocorrida atividade processual no âmbito dos autos de procedimento cautelar e respetiva condenação em custas, com trânsito em julgado, incluindo as custas de parte e inerente responsabilidade.

IV - Por isso, a extinção do procedimento cautelar ou o levantamento da providência decretada, por caducidade a que alude o art.º 373.º, n.º 1, al.ª a), do ), do NCPCiv., não determinam a extinção, por falta de título executivo, da execução movida por aquela requerida, fundada na dita condenação, para entrega de coisa certa (a coisa objeto da obrigação de restituição) e para pagamento de quantia certa (dívida de custas de parte).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. - Da (in)existência de título executivo e decorrente extinção da ação executiva para entrega de coisa certa

A Recorrente, fundada em sentença de procedimento cautelar que havia sido instaurado pela contraparte, intentou, por sua vez, execução com dupla finalidade: entrega de coisa certa (44.741 kgs. de aço) e pagamento de quantia certa (€ 918,00 a título de custas de parte, por via da operada condenação em custas do procedimento cautelar).

Quanto à primeira daquelas finalidades – a que agora importa [...] –, é líquido que, julgada procedente, num primeiro momento (anteriormente à observância do princípio do contraditório), a providência cautelar, veio depois, ouvida a Requerida (a aqui Exequente/Apelante), a ser julgada parcialmente procedente a oposição desta, com revogação parcial da providência ordenada, e consequente levantamento parcial da mesma no que respeita ao aço, condenando-se a Requerente (aqui Executada/Apelada) a restituir à Requerida os mencionados 44.741 kgs. de aço.

É esta, pois, a condenação que a Apelante pretende ver executada, na vertente de execução para entrega de coisa certa.

Todavia, como se constatou, esbarrou com a decisão recorrida, a qual considerou que nos autos de providência cautelar foi, entretanto, proferida decisão, já transitada em julgado, a declarar caducada a providencia cautelar, ao abrigo do disposto no art.º 373.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv., com o consequente levantamento da providência e a extinção do procedimento cautelar, por não ter sido intentada a ação principal.

Por isso, na perspetiva de tal decisão recorrida, tendo o procedimento cautelar, pela sua natureza, uma feição provisória, apenas suprindo temporariamente a falta da providência final, a caducidade da providência cautelar decretada e o respetivo levantamento determinam para a presente execução a ausência de título executivo.

Ora, é certo que a Apelante não põe em causa que tenha ocorrido tal decisão transitada de caducidade da providencia cautelar, com o decorrente levantamento da providência decretada, por não ter sido intentada a ação principal, nos termos do disposto no art.º 373.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv..

O que a Recorrente não aceita é que, no que lhe concerne – enquanto parte requerida na dita providência –, a decisão de redução, após exercício do contraditório, do âmbito da providência inicialmente decretada, com obrigação de restituição (a seu favor), esteja também sujeita a uma esfera de provisoriedade inerente ao procedimento cautelar declarado caduco.

Quer dizer, enquanto a providência decretada a favor da parte requerente do procedimento cautelar estaria sujeita a caducidade, por essa parte não ter intentado a ação principal – como dito expressamente na al.ª a) do n.º 1 do aludido art.º 373.º, a sanção da caducidade ocorre se o requerente não propuser aquela ação principal –, o mesmo não ocorreria com a ulterior decisão (inversa) de redução, a favor da Requerida, do âmbito da providência já decretada.

Como a Apelante expressamente refere, a sua perspetiva é a de que, embora a decisão de decretamento da providência tenha natureza provisória, ainda que dotada de executoriedade, tal caráter provisório se cinge «ao que foi decretado pela providência cautelar» (conclusões 21 e 22), e não à inversa redução do âmbito da providência anteriormente decretada (conclusões 23 e segs.).

Daí que não colham, como tem de entender-se, as considerações da Apelada em contrário (tecidas no acervo de conclusões da contra-alegação), na parte em que fundadas na não impugnação da decisão de caducidade e levantamento da providência.

Com efeito, a ora Apelante conformou-se e continua a conformar-se com essa decisão de caducidade, sendo que o levantamento da providência respeita, logicamente, à providência que foi decretada a favor da Requerente (a aqui Apelada).

Isto é, na lógica da ora Recorrente o que caducou foi a matéria de condenação, que sobre si recaiu (enquanto ali demandada), a permitir que a Requerente do procedimento cautelar retirasse da obra «os equipamentos, utensílios e materiais elencados no ponto 11) da matéria de facto provada».

O que a Apelante discute não é, pois, a decisão, enquanto tal, de caducidade e levantamento da providência decretada a favor da parte requerente do procedimento cautelar, por tal Requerente não ter intentado a ação principal, mas o âmbito de aplicação – já em termos interpretativos – dessa dimensão de caducidade (e levantamento), considerando que não atinge a determinada redução da providência a favor da Requerida (por excesso dessa providência inicialmente decretada).

Donde que não possa dar-se razão à Apelada quando esgrime que a discordância da Recorrente se reporta à decisão de caducidade e levantamento da providência decretada, a qual não deveria ter deixado transitar em julgado, termos em que também não pode colher a invocação de ser abusivo e contraditório vir agora pugnar contra a extinção da execução por falta de título executivo.

Com efeito, trata-se aqui de planos diferentes e inconfundíveis, posto a Recorrente se conformar com aquela decisão de caducidade e levantamento da providência decretada, apenas entendendo, sem contradição, no plano interpretativo, que tal dimensão de caducidade apenas se aplica à decisão que decretou (afirmativamente/positivamente) a providência (a favor da respetiva parte requerente), e não, pois, à oposta decisão posterior de redução (levantamento parcial) do âmbito da providência antes decretada (agora já a favor da contraparte/requerida).

Posto isto, vejamos, então, quem tem razão.

É bem claro que o preceito do art.º 373.º do NCPCiv., referente à caducidade da providência, visa sancionar comportamentos do requerente do procedimento cautelar, em vez de comportamentos da contraparte (requerido), estabelecendo, por isso, que o procedimento cautelar (intentado, logicamente, pelo requerente contra o requerido) se extingue ou, se já decretada a providência (a favor do requerente), esta caduca, sendo levantada, em determinados casos de inércia do requerente ou de improcedência da sua pretensão.

Assim ocorre no caso de omissão pelo requerente de propositura tempestiva da ação principal [al.ª a do n.º 1 do dito art.º 373.º], tal como no caso de negligência do requerente em promover o andamento dessa ação principal [al.ª b) do mesmo normativo], ou no caso de improcedência de tal ação principal [al.ª c)], no caso de absolvição da instância, desde que o requerente não proponha nova ação em tempo [al.ª d)] e, por fim, em caso de extinção do direito que o requerente pretende acautelar [al.ª e)].

Por isso é que, em observância do princípio do contraditório, não será de decidir a extinção do procedimento ou o levantamento da providência sem prévia audição do requerente do procedimento (n.º 3 do aludido art.º 373.º), posto tratar-se de matéria que o prejudica (e, assim, beneficia a contraparte).

Em suma, a dita caducidade da providência surge sempre como decisão desfavorável ao requerente, tendo implícita uma penalização ao mesmo, seja por comportamento negligente (em termos processuais), seja por improcedência do seu direito/pretensão.

E o resultado de tal caducidade também é sempre desfavorável ao requerente, ocasionando a extinção do procedimento cautelar por si intentado (o qual não vinga) ou o levantamento da providência, se já decretada esta.

Assim sendo, a caducidade da providência constitui um desfecho que favorece a parte requerida e desfavorece o requerente, tanto mais que determina – insiste-se – o levantamento da providência, se já decretada esta, como ocorreu in casu.

Quer dizer, no caso dos autos, a providência decretada – com a amplitude resultante da redução do âmbito inicial ([---) –, por via da inércia da Requerente (que não intentou a ação principal), foi objeto de levantamento, tornando-se, assim, insubsistente, em desfavor da Requerente (e em favor da Requerida).

Efetivamente, só caberia à Requerida propor ação em caso de decisão de inversão do contencioso (cfr. art.º 371.º do NCPCiv.), o que não ocorreu na situação retratada nos autos ([Cfr., sobre a matéria, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, ps. 51 e segs. e 66 e segs., bem como Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 436 e seg. e 440 e seg..]).

No quadro normativo do art.º 373.º do NCPCiv. nunca cabe à parte requerida intentar a ação principal, o que constitui tarefa exclusiva da parte requerente, sob pena de extinção do procedimento por si intentado ou levantamento da providência decretada a seu favor.

A determinada redução (em benefício da parte requerida), após contraditório, do âmbito da providência inicialmente decretada, não pode ficar condicionada à instauração da ação principal pelo requerente, nem caduca por força da inércia deste, caso em que se estaria, se assim pode exprimir-se, a «beneficiar o infrator», nem fica sujeita à instauração de qualquer ação pelo requerido, uma vez que não ocorreu inversão do contencioso.

Como limitação ao inicialmente decretado, a redução da providência orienta-se em favor da parte requerida (por força das razões que fez vingar após a sua defesa, no exercício do contraditório), tal como a favorece a caducidade da providência, seja por extinção do procedimento, seja por levantamento da providência já decretada.

Em qualquer desses casos, a parte desfavorecida (por conduta que lhe é imputável) é a requerente da providência, não podendo um comportamento negligente desta levar a uma desvantagem para a contraparte (e a uma vantagem para si própria), o que viria completamente ao arrepio da intenção da lei, uma vez que a delineada caducidade da providência visa sancionar – e nunca premiar – a parte requerente do procedimento cautelar.

Por isso, a decisão de redução do âmbito da providência cautelar (inicialmente decretada e, depois, restringida), quadro em que se insere a condenação da Requerente em (obrigação de) restituição (em favor da Requerida), não está sujeita à caducidade da providência, não podendo penalizar a parte requerida (e beneficiar a parte que a lei pretende ver penalizada).

Se a providência inicialmente decretada se vem a mostrar excessiva, com decorrente obrigação para a Requerente de restituição do que recebeu em excesso, por não lhe ser devido, tal reposição do devido (até com condenação a respeito na decisão do procedimento cautelar) não pode ficar na dependência de uma ação a intentar por quem se viu despojado indevidamente do que lhe pertencia, militando a favor da parte requerida (e em desfavor da requerente) a ulterior decisão de caducidade da providência, com levantamento da providência decretada.

Em suma, a decisão de caducidade da providência não pode penalizar a parte requerida, num caso em que não houve inversão do contencioso, militando a redução do âmbito da providência cautelar, com condenação em restituição que impende sobre a Requerente, no mesmo sentido do decretado levantamento da providência por caducidade.

Termos em que, ressalvado sempre o devido respeito pela posição do Tribunal a quo (e da Requerente/Apelada), não é o levantamento da providência, por caducidade, idóneo a penalizar a Requerida, subsistindo por isso a condenação cautelar da Requerente, no quadro da redução da providência, em obrigação de restituição.

Assim sendo, em tal condenação pode a Requerida fundar a ação executiva para entrega de coisa certa (a coisa objeto daquela obrigação de restituição), ao que não obsta a natureza cautelar dos autos, como enfatizado na decisão em crise ([Nesta é referido, sem impugnação nesta parte, que não se discute, «ab initio, o reconhecimento da verificação de título executivo para a instauração da presente ação executiva, reclamando-se, da executada, a restituição de 44,741KG (quarenta e quatro mil, setecentos e quarenta e um quilogramas) do aço referido em 11) da matéria de facto indiciariamente provada», admitindo-se, assim, «a executoriedade de uma decisão transitada em julgado, proferida numa providência cautelar».]) e indiscutido pelas partes no recurso, uma vez que a Recorrida se limita a reafirmar a argumentação da decisão em crise, insistindo em que da caducidade do procedimento cautelar decorre a extinção da execução por condenação no âmbito daquele."

*3. [Comentário] A RC decidiu bem.

Como é evidente -- e o bom senso impõe --, a caducidade da providência cautelar pela circunstância de a Requerente não ter proposto atempadamente a acção principal (art. 373.º, n.º 1, al. a), CPC) não pode ter nenhuma influência numa execução proposta pela Requerida contra aquela Requerente. De outro modo, a Requerente beneficiaria, ela própria, da falta de cumprimento de um ónus que lhe competia observar.

Também como é indiscutível, ter-se-ia de entender o contrário se a execução tivesse sido proposta pela Requerente e se a providência tivesse caducado pela falta de propositura da acção principal por aquela Requerente.

MTS