Atualiza o valor da unidade de referência constante da tabela anexa à Portaria n.º 1386/2004, de 10 de novembro, na sua redação atual
"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
30/06/2020
Legislação (196)
Bibliografia (920)
-- Miguel Teixeira de Sousa / Carlos Lopes do Rego / António Abrantes Geraldes / Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil (Almedina: Coimbra 2020)
Jurisprudência 2020 (20)
Pluralidade subjectiva subsidiária;
ineptidão parcial da petição inicial
I. O sumário de RL 4/2/2020 (13977/17.8T8LSB.L1-7) é o seguinte:
1. A pluralidade subjectiva subsidiária prevista no art. 39º do CPC tem de ser alegada na petição inicial, concretizando-se os factos que se subsumem à dúvida fundamentada e finalizando com o pedido formulado de acordo com essa dúvida;
2. A mera apresentação de contestação não basta para fundamentar a aplicação do art. 186º, nº 3 do CPC, sendo também necessário que se perceba que o R. interpretou convenientemente a petição inicial e a pretensão do A.;
3. Quando o pedido deduzido não seja inteligível existe uma situação de ineptidão da petição inicial por falta de pedido, nos termos do art. 186º, n.º 2, al. a), 1 ª parte, do CPC, a qual não é suprível através do convite ao aperfeiçoamento previsto no art. 590º do CPC.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Pretende a apelante a procedência do presente recurso, defendendo que a ineptidão da petição inicial é uma nulidade sanável, nos termos do disposto no art. 193º, 3 do CPC, ocorrendo a respectiva sanação com a prática de actos processuais da R. ou das RR., a saber, a apresentação de contestação; arguição da ineptidão; verificação que a R., ou as RR., interpretaram convenientemente a PI e audição do A., condições estas que, cumulativamente, se verificam nos presentes autos.
Mais defende que, mesmo que não se entendesse assim, a nulidade em causa era sanável, devendo existir um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.
Nos presentes autos, a A. peticiona a anulação de negócio celebrado entre o A. e R. por erro na base do negócio, condenando-se o R. na devolução de € 80 000,00, e juros, ou, se assim não se entender, a pagar ao A. uma indemnização no valor de € 80 000,00, acrescido de juros, com fundamento em incumprimento dos deveres a que o R. estava obrigado, conforme os arts. 304.º, 304.º-A, 311.º, 312.º, 312.º-B, 312-C a 312.º-G, 314.º, ss, todos do CVM; ou, caso assim não se entenda, que se resolva o contrato celebrado por alteração superveniente das circunstâncias, condenando-se o R. à devolução de € 80 000,00, acrescido de juros.
Entendeu a sentença recorrida que “se a pretensão era deduzir pedido diverso ou o mesmo pedido contra R. subsidiário, sempre seria dever da Autora identificar qual o R. a título principal e qual o subsidiário, o que não é feito em sede de petição inicial.
Considerando a causa de pedir formulada pela Autora e o pedido, tem de concluir-se não ser possível saber qual dos RR é responsável pela restituição da quantia monetária peticionada, nem qual deles é responsável pelo cumprimento do contrato celebrado.
De tudo o que se deixou exposto, há-de concluir-se que, quer o pedido, quer a causa de pedir são, afinal, ininteligíveis, o que gera a ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no art.º 186º, nº2, al.ª a) do CPC. (…)
No caso concreto, não estamos perante uma deficiência na indicação de factos, mas antes perante uma ausência de alegação dos mesmos que compromete o conhecimento do mérito da causa.
Afigura-se que a única decisão processualmente correcta é a de concluir pela ineptidão da petição inicial (sem convite ao aperfeiçoamento).
Em face do exposto, o Tribunal julga procedente a excepção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial e, consequentemente, absolvem-se os RR. da instância. (arts.186º, nº2, al.ª a), 278º, nº1, al.ª b), 576º, nº2 e 577º, al.ª b) do CPC)”. [...]
Tal como referido na sentença recorrida, a A. propôs a presente acção contra dois RR., mantendo essa intenção em todo o processo e em todas as suas intervenções processuais, embora refira no início da petição inicial ter tido conhecimento da compra e venda de activos e passivos ocorrida entre os RR. e termine o seu pedido com a menção a um único R..
Nos termos do pedido principal deduzido, pretende a A. a anulação de um negócio celebrado entre A. e R. por erro na base do negócio, levando essa anulação à condenação do R. à devolução de € 80 000,00 e juros, mais resultando da petição inicial que este negócio é a subscrição das obrigações com a descrição PT 2016 6,25%, alegando a A. no art. 16º que foi o R. o responsável pela intermediação da subscrição dos indicados títulos.
Na tese da A., explanada na petição inicial, os factos por si alegados levam à responsabilização do R. por violação dos seus deveres de intermediação na sua actividade financeira, assim levando à devolução do dinheiro por si investido no negócio de subscrição de obrigações em causa nos autos.
Todavia, não está alegada a existência de um qualquer contrato celebrado com o R. Bankinter no âmbito da intermediação financeira.
Por esse motivo, a sentença recorrida concluiu pela impossibilidade de determinar a quem se dirigem os pedidos, o que redunda numa situação de inintigibilidade do pedido.
Da leitura da petição inicial resulta que, de facto, assim é, na medida em que, nesta peça processual não resulta, com clareza, contra qual dos RR. é dirigida a pretensão de ressarcimento do crédito invocado, nomeadamente por se tratarem de duas entidades bancárias distintas, cuja responsabilização terá de ser claramente diferenciada.
Refira-se que não tem aplicação ao caso dos autos o disposto no art. 39º do CPC, tal como parece defender a A. nas suas alegações (embora tal não tenha sido vertido de forma cabal para as conclusões), por não estar em causa qualquer dúvida sobre o sujeito da relação material controvertida.
Nos termos do art. 39º do CPC há lugar à dedução de um mesmo pedido por autor ou contra réu diverso do que aquele que demanda ou é demandado a título principal, nos casos em que exista dúvida fundada sobre os sujeitos que são titulares da relação material controvertida.
Como se refere no Ac. TRE, de 07-06-2018, proc. 2279/15.4T8EVR-A.E1, relator Tomé de Carvalho, “haverá litisconsórcio subsidiário quando o mesmo pedido é deduzido por ou contra uma parte a título principal e por ou contra outra a título subsidiário. Na opinião de Remédio Marques «trata-se de situações em que, por um lado, (1) o credor da pretensão ignora, sem culpa, a que título ou em que qualidade o devedor interveio no acto ou no facto que serve de causa de pedir; e, por outro, de eventualidades em que o (2) o credor da pretensão ignora se é titular activo dela ou se é o único titular activo» (…) A este respeito, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre afiançam que «na base do litisconsórcio subsidiário pode estar a necessidade de apurar quem disparou o tiro ou atropelou o autor (dúvida sobre factos, se o autor ou o réu principal interveio em certo contrato em nome próprio ou em nome alheio (dúvida sobre factos ou sobre a interpretação da norma aplicável) ou se a cessão de crédito do autor principal em data em que ainda não se constituíra» ”.
Diz a apelante, que “pretendeu deduzir, a título principal, os pedidos contra a R. Barclays, por ser aquela que terá praticado os atos que sustentam o pedido. Pretendendo deduzir, a título subsidiário, os pedidos contra a R. C, atenta a dúvida fundamentada vertida no art. 4º da PI, e que é um requisito legal, conforme previsão no art. 39º CPC”.
Ora, não tendo a apelante alegado a existência da pluralidade subjectiva subsidiária prevista no art. 39º do CPC, nem tendo invocado as razões dessa pluralidade e os fundamentos de responsabilização de ambos os RR., não s epode concluir nesse sentido.
Por outro lado, a dúvida fundamentada não resulta dos factos alegados, mas sim da alegação efectuada pela A., que refere o contrato de compra e venda de activos e passivos ocorrida entre ambos os RR., situando-o no tempo, sem que avance quaisquer factos relativos a essa dúvida ou a reflicta no pedido deduzindo a sua pretensão contra ambos os RR. ao abrigo do disposto no art. 39º do CPC.
Acresce que não pode a apelante recorrer a este mecanismo processual apenas em sede de recurso, sem possibilitar a discussão sobre a sua admissibilidade processual, nem sobre a existência dos seus pressupostos no caso concreto.
Considerando que a causa de pedir é, juntamente com o pedido, um dos elementos fundamentais da petição inicial, nos termos do art. 552º, nº 1, als. d) e e) do CPC, não tendo a A. alegado os factos constitutivos essenciais do direito por si alegado, formulando de forma clara a sua pretensão, verifica-se uma situação de ininteligibilidade da causa de pedir, tal como decidido em primeira instância.
Aqui chegados, e atendendo às questões a decidir tal como as mesmas resultam das conclusões formulados, importa averiguar se ocorreu a sanação desta nulidade, nos termos alegados pela A., e se, não tendo ocorrido, deveria ou não ter existido um convite do tribunal com vista ao aperfeiçoamento da petição inicial.
No que se refere à sanação da nulidade invocada, defende a A. que as RR. interpretaram convenientemente a petição inicial, tendo contestado de forma abundante, alegando o referido vício.
Nos termos do art. 186º, nº 3 do CPC, “Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
Há que relembrar que a A., apesar de notificada para se pronunciar sobre as excepções deduzidas, nada fez ou requereu, não permitindo ao tribunal perceber o alcance do pedido e dissipar as dúvidas dele resultantes, em particular quanto à responsabilização do R. C e a aplicação aos autos do disposto no art. 39º do CPC.
Com efeito, e indo de encontro ao já antes decidido no processo supra citado, “não basta a existência de uma contestação, ainda que apresentando factos ou impugnando a versão dada pelo A., ou até requerendo a intervenção de terceiros, para se concluir pela sanação pretendida. Ao invés, ouvido o A. e analisada a petição inicial e a resposta à contestação subsequente é que se poderá apurar se o R. percebeu bem ou não a petição inicial e, consequentemente, concluir pela sanação do aludido vício”.
Donde, sendo impossível concluir que os RR. apreenderam tudo aquilo que vem espelhado na contestação, não se mostra possível recorrer ao citado art. 186º, nº 3, e consequentemente, dizer que o vício em causa se mostra sanado, nomeadamente quanto ao R. C.
No que diz respeito à prolação de despacho de aperfeiçoamento, ao abrigo do disposto no art. 590º, nº 4 do CPC, importa referir que a decisão sobre tal questão depende do vício existente. [...]
Relativamente a esta questão, defendeu o tribunal recorrido a impossibilidade de convidar a A. a suprir as falhas apontadas.
Haverá, antes de mais, que salientar que o raciocínio do tribunal recorrido é perfeitamente exacto para situações de total inexistência de factos.
Tal como se pode ler no Ac. TRL de 07-11-2019, relator Manuel Rodrigues, proc. 14013/17.0T8LSB.L1, no qual está também em causa uma situação como a dos autos, e no qual se decidiu que a petição inicial é inepta apenas quanto ao R. C, que assim deverá ser absolvido da instância, prosseguindo os autos quanto ao R. B, “O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essências e estruturantes da causa de pedir.
Tal convite, destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada.
As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC)”. [...]
Entendendo, como se explanou, que está em causa a ausência total de indicação de pedido quanto ao R. B, ter-se-á de concluir pela impossibilidade de convite ao aperfeiçoamento, nos termos expostos.
Porém, verificando-se que essa deficiência não existe quanto ao R. Barclays, ter-se-á de determinar o prosseguimento dos autos, já que não está em causa a ininteligibilidade do pedido contra este deduzido, o qual é claro, no contexto dos factos alegados, não cumprindo aqui analisar a qualificação jurídica efectuada.
Do que se vem de expor, resulta que a presente apelação terá de ser julgada parcialmente procedente, determinando-se que os autos prossigam quanto ao R. Barclays, com a análise das excepções deduzidas e eventual suprimento, e estabilização da instância relativamente aos pedidos de intervenção deduzidos, mas mantendo-se a decisão em causa no que tange ao R. C, assim não se tornando necessário apreciar o pedido deste nos termos do art. 665º, nº 2 do CPC."
[MTS]
29/06/2020
Jurisprudência 2020 (19)
Acompanhamento de maior;
pressupostos; requisitos
1. O sumário de RL 4/2/2020 (3974/17.9T8FNC.L1-7) é o seguinte:
I - A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições: - uma positiva (princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e uma das medidas enumeradas no Art.º 145, n.º 2 do C.C., sendo que na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento; - uma negativa (princípio de subsidiariedade): a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência, nomeadamente de âmbito familiar (Art. 140.º, n.º 2, C.C.), não devendo o tribunal decretar essa medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
II - A regra geral é de reconhecer a capacidade da pessoa humana para exercer de forma livre os seus direitos pessoais (Art. 147.º n.º 2 do C.C.), sendo as restrições ou limitações ao seu exercício a exceção, que sempre deverá ser bem fundamentada.
I - A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições: - uma positiva (princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e uma das medidas enumeradas no Art.º 145, n.º 2 do C.C., sendo que na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento; - uma negativa (princípio de subsidiariedade): a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência, nomeadamente de âmbito familiar (Art. 140.º, n.º 2, C.C.), não devendo o tribunal decretar essa medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
II - A regra geral é de reconhecer a capacidade da pessoa humana para exercer de forma livre os seus direitos pessoais (Art. 147.º n.º 2 do C.C.), sendo as restrições ou limitações ao seu exercício a exceção, que sempre deverá ser bem fundamentada.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2. Da adequação das medidas de acompanhamento de maior constantes da sentença recorrida.
A presente ação tinha por finalidade inicial a declaração de interdição da Requerida, por anomalia psíquica e a instauração da tutela, nos termos do Art. 141.º e 152.º a 156.º do C.C., instituto que foi revogado pela Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto, que criou o regime do maior acompanhado.
A Lei n.º 49/2018, que entrou em vigor em fevereiro de 2019 (Art. 25.º), alterou não apenas o Código Civil e o Código de Processo Civil, mas dezassete outros diplomas que se reportavam a pessoas na situação de interditas ou inabilitadas, tendo imediata aplicação aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, devendo os juízes utilizar os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes (Art. 26.º n.ºs 1 e 2).
Conforme refere Pinto Monteiro, a pergunta agora já não é “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”, mas “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que ela exerça a sua capacidade jurídica?”. Parte-se de uma ideia de capacidade, para dotar a pessoa dos instrumentos necessários para a sua tutela nos casos pontuais — e sempre tendo em conta as particularidades de cada atuação ou domínio de atuação — em que dela careça. A solução já não é generalizante, procurando, pelo contrário, preservar até ao limite a possibilidade de atuação autónoma do sujeito. No fundo, pretende-se proteger sem incapacitar» (Mafalda Miranda Barbosa in “Maiores Acompanhados: da Incapacidade à Capacidade?”, ROA, Ano 78, jan./jun. 2018, pág. 236, a obra que cita de A. Pinto Monteiro é O Código Civil Português entre o elogio do passado e um olhar sobre o futuro).
O Prof. António Pinto Monteiro (in RLJ, Ano 148, n.º 4013, Secção de Legislação, “Das incapacidades ao maior acompanhado”, a pág. 72 e segs) refere que: «(…) a Lei n.º 49/2018 veio dar resposta positiva às preocupações que se faziam sentir no campo das incapacidades das pessoas com deficiência, com a consagração deste novo regime jurídico do maior acompanhado. A Lei acolheu a mudança de paradigma já há muito anunciada, afastando-se do modelo de tomada de decisões por substituição e abraçando o modelo do acompanhamento, pela tomada de decisões com recurso à assistência e apoio. “Proteger sem incapacitar”, recorde-se, é a palavra de ordem do novo modelo. Mas fê-lo com realismo, permitindo o recurso à representação legal quando, excecionalmente, não houver alternativa credível, no interesse do necessitado e por decisão judicial. Temos hoje, pois, em vez do modelo do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, de substituição, temos hoje, dizia, um regime que segue um modelo flexível e monista, de acompanhamento ou apoio, casuístico e reversível, que respeita na medida do possível a vontade das pessoas e o seu poder de autodeterminação. É claro que o sucesso, na prática, deste novo modelo vai depender, em grande medida, dos tribunais, pela responsabilidade acrescida que o novo regime lhes atribui, na definição - e revisão – das medidas adequadas a cada deficiente, a cada situação! É esta mais uma tarefa que a lei confia aos tribunais, no desempenho da nobre missão de servir a vida!»
O mesmo autor escreve ainda (a fls. 80 da citada R.L.J) que: «Optou o legislador, como se vê, por uma formulação ampla, afastando-se claramente da posição fechada relativa aos fundamentos da interdição e da inabilitação. Um ponto muito importante que neste contexto importa sublinhar é o de que na atual formulação ampla que permite o recurso às medidas de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes». E ainda (a fls. 72 e 73) que: «É claro que há razões de fundo, razões que estiveram presentes na tomada de posição de várias instâncias internacionais, no sentido de valorizar os direitos das pessoas deficientes, da sua dignidade e autonomia. Para lá dos avanços da ciência médica, também de um ponto de vista social foram vários os apelos – entre nós e por esse mundo fora - a uma nova compreensão dos problemas das pessoas com deficiências físicas ou mentais, ou com quaisquer outras limitações que afetem a sua capacidade jurídica. Essa tomada de consciência deu corpo a um movimento internacional de peso. A este respeito, impõe-se mencionar a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 56/2009, de 7 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 71/2009, de 30 de Julho), bem como o respetivo Protocolo Adicional, adotado pelas Nações Unidas na mesma data de 30 de Março de 2007 (e aprovado pela Resolução da AR nº 57/2009, tendo sido ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 72/2009, de 30 de Julho).»
Miguel Teixeira de Sousa (fls 51 da apresentação realizada no CEJ, em 11/12/2018, no âmbito da ação de formação “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado” - O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspetos Processuais), refere que: «A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
- Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no Art.º 145, n.º 2 do C.C.; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
- Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (Art. 140.º, n.º 2, C.C.), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.».
Assim, atualmente, o Art. 138 do CC, com redação da Lei 49/2018, é epigrafado “Acompanhamento” e estabelece que: «o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código». [...]
No pedido final formulado nas alegações de recurso foram diretamente postas em causa as medidas constantes dos pontos 1.9 a 1.12 da parte dispositiva da sentença recorrida.
No ponto 1.9 foi condicionado o exercício de direitos pessoais, nos termos do Art. 5.º n.º 3 da Lei de Saúde Mental (Lei 36/98 de 24/7).
No ponto 1.10 foi condicionado o exercício de providência referidas no Art. 13.º da mesma Lei de Saúde Mental.
No ponto 1.11 limitou-se o exercício do direito de aceitar ou rejeitar liberalidades a favor da beneficiária.
No ponto 1.12 autorizou-se o internamento da beneficiária na Casa de Saúde Câmara Pestana, no Funchal, que é o local onde reside.
Está em causa o Art. 147.º n.º 1 do C.C. que [...] estabelece que a regra geral é do livre exercício dos direitos pessoais pelo maior acompanhado, fazendo no n.º 2 uma enumeração não exaustiva desse tipo de direitos.
Começando pelo ponto 1.9 da sentença recorrida, temos de referir que a sentença não estabeleceu uma limitação genérica para o exercício de todos e quaisquer direitos pessoais da beneficiária do regime de acompanhamento. A sentença só restringiu os direitos pessoais mencionados no Art. 5.º n.º 3 da Lei 36/98 de 24/7.
Estabelece essa norma que:
«3 - Os direitos referidos nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 são exercidos pelos representantes legais quando os doentes sejam menores de 14 anos ou maiores acompanhados e a sentença de acompanhamento não faculte o exercício direto de direitos pessoais».
Por seu turno, nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 estão previstos os seguintes direitos aos utentes dos serviços de saúde mental:
«c) Decidir receber ou recusar as intervenções diagnósticas e terapêuticas propostas, salvo quando for caso de internamento compulsivo ou em situações de urgência em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio ou para terceiros;«d) Não ser submetido a electroconvulsivoterapia sem o seu prévio consentimento escrito;«e) Aceitar ou recusar, nos termos da legislação em vigor, a participação em investigações, ensaios clínicos ou atividades de formação».
Dos factos provados resulta que a Requerida padece de esquizofrenia paranoide e apresenta delírio, o que assume gravidade tal que a incapacita de governar a sua pessoa e bens, ainda que tenha suficiente autonomia para os seus cuidados de higiene, andando sem apoio, falando de forma percetível e com perfeita noção do tempo e do espaço. No entanto, como não se indicia que possam estar sequer em causa a possibilidade de alguma das intervenções ou terapêuticas a que se reporta o Art. 5.º n.º 3 da Lei de Saúde Mental, não vemos que faça sequer sentido essa limitação seja estabelecida, sem prejuízo da reavaliação da situação nos termos do Art. 155.º do C.C..
Passando ao ponto 1.10, uma vez mais a limitação estabelecida na sentença recorrida reporta-se apenas às providências referidas no Art. 13.º da Lei de Saúde Mental, que trata da matéria da legitimidade para requerer o internamento compulsivo.
Decorre desse preceito que:
«1- Tem legitimidade para requerer o internamento compulsivo o representante legal do menor, o acompanhante de maior quando o próprio não possa, pela sentença, exercer direitos pessoais, qualquer pessoa com legitimidade para requerer a instauração do acompanhamento, as autoridades de saúde pública e o Ministério Público.«2 - Sempre que algum médico verifique no exercício das suas funções uma anomalia psíquica com os efeitos previstos no artigo 12.º pode comunicá-la à autoridade de saúde pública competente para os efeitos do disposto no número anterior.«3 - Se a verificação ocorrer no decurso de um internamento voluntário, tem também legitimidade para requerer o internamento compulsivo o diretor clínico do estabelecimento.»
Quanto a este aspeto, da matéria de facto só decorre que a Requerida está a residir numa Casa de Saúde e sofre duma doença do foro psiquiátrico. Não resulta daqui que tenha havido, ou sequer se coloque a questão, do internamento compulsivo. Não está também evidenciada uma ausência total de consciência por parte da Requerida que não lhe permita exercer esse direito, sendo que se algum dia a questão se colocar de forma premente, perante uma situação de saúde mental mais grave, a Lei de Saúde Mental estabelece um naipe de soluções suficientemente amplo que salvaguardará o caso. Pelo que, também este ponto 1.10 deverá ser excluído.
Diretamente relacionado com esta última situação está o ponto 1.12 da sentença recorrida, que se refere à autorização dada pelo tribunal para o internamento, tendo em atenção o disposto no Art. 148.º do C.C.. A questão coloca-se precisamente nos mesmos termos da anterior. Não decorre dos autos a necessidade premente do internamento. O que decorre dos autos é apenas que a mesma se encontra numa “Casa de Saúde”, onde reside.
Se a Requerida reside na “Casa de Saúde”, trata-se de situação voluntária que não exige autorização do tribunal. Mas se a questão do internamento se vier a colocar, poderá ser oportunamente decidida, nos termos do n.º 2 do Art. 148.º do C.C..
Passando ao ponto 1.11, refere-se o mesmo à limitação da capacidade para aceitar ou rejeitar liberalidades, nos termos do Art. 4.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 272/2001 de 13/10.
Estabelece esse preceito que:
«1- São da competência do Ministério Público as decisões relativas a pedidos de notificação do representante legal para providenciar acerca da aceitação ou rejeição de liberalidades a favor de incapaz menor ou de maior acompanhado que, nos termos da sentença de acompanhamento, não o possa fazer pessoal e livremente.»
Quanto a esta matéria o único facto relevante é o constante do ponto 4 dos factos provados. Resulta desse ponto que a Requerida sofre de patologia tal, de caráter permanente e de tal modo grave que a torna incapaz de governar os seus bens. O que, a nosso ver, é insuficiente para se estabelecer a limitação mencionada no ponto 1.11.
Mas para além do pedido constante do final das alegações de recurso, o Ministério Público, aqui Recorrente, pôs ainda em causa as limitações constantes dos pontos 1.7 e 1.8 da sentença recorrida, sobre as quais incide grande parte das conclusões do recurso.
No 1.7 a sentença recorrida impede a Requerida de casar, considerando que a doença mental verificada constituiria impedimento dirimente, nos termos do Art. 1601.º al. b) do C.C.. Já no ponto 1.8 impede a Requerida da atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou morte, fundados em união de facto.
Sucede que, apenas a “demência notória”, que não se demonstra ser ainda o caso, constitui impedimento dirimente absoluto para casar, nos termos do Art. 1601.º al. b) do C.C..
Repita-se, só excecionalmente, com fundamentação relevante, ponderando o supremo interesse do acompanhado, se poderá coartar por decisão judicial o exercício de direitos pessoais. Entre esses direitos pessoais estão precisamente os de casar, constituir família ou viver em união de facto (Art. 147.º n.º 2 do C.C.). Para além de que são direitos fundamentais que assistem a todos os cidadãos, com tutela constitucional nos Art.s 36.º n.º 1 e 67.º da nossa Constituição.
Em suma, concordando nesse aspeto com as conclusões das alegações de recurso, fundamentalmente julgamos que a matéria de facto provada é insuficiente para justificar a subsistência dos pontos 1.7 a 1.12 da sentença, que assim deve ser alterada nessa parte, eliminando-se essa parte dispositiva da decisão recorrida."
[MTS]
O regime da dispensa do remanescente da taxa de justiça é inconstitucional?
26/06/2020
Jurisprudência 2020 (18)
Competência internacional;
princípio da coincidência*
1. O sumário de RL 6/2/2020 (25.579/16.1T8LSB-A.L1-6) é o seguinte:
I–Em matéria relativa à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial coexistem, actualmente, na nossa ordem jurídica, dois regimes gerais de aferição da competência internacional: (i) o regime emanado do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e (ii) o regime interno estabelecido nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil.
II–O regime interno de competência internacional só será aplicável se o não for o regime comunitário, que é de fonte normativa hierarquicamente superior, face ao primado do direito europeu (cf. artigos 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e 1.ª parte do art.º 59.º do CPC).
III–Nos termos do artigo 6.º, se o réu não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.
IV–Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar uma acção proposta por um cidadão de dupla nacionalidade brasileira e italiana contra uma sociedade comercial sediada nos Estados Unidos da América, contanto que esta sociedade tenha em Portugal uma sucursal, agencia, filial, delegação ou representação, por se verificar a coincidência entre a competência internacional e a competência interna, estabelecida no artigo 62.º, alínea a), por referência ao artigo 81.º, n.º 2, 2.ª parte, ambos do CPC.
IV–A falta de notificação do autor para se pronunciar sobre sua condenação oficiosa como litigante de má-fé configura uma nulidade principal, que pode ser invocada em qualquer estado do processo, desde que não sanada, sendo cognoscível até ao trânsito em julgado da sentença – artigos 187.º, alínea a), 188.º, n.º 1, alínea a), 189.º “a contrario”, 198.º, n.º 2 e 200.º, n.º 1, do CPC (Sumário elaborado pelo Relator)
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Nos termos do artigo 4.º do Regulamento n.º 1215/2012, em regra as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente de a sua nacionalidade corresponder ou não à do Estado-Membro do domicílio. Nos termos do artigo 6.º, se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro. Daqui resulta que o Regulamento é aplicável sempre que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro, não sendo necessário que o demandado tenha a nacionalidade desse Estado-Membro ou de qualquer outro Estado-Membro.
Temos, assim, que o regulamento estabelece, como critério geral de competência, o do domicílio do réu.
Nos termos do artigo 62.º, n.º 1, do Regulamento n.º 121/2012, para se determinar se o réu tem ou não domicílio no Estado-Membro da União Europeia onde a acção foi proposta, o juiz deve aplicar a lei interna desse Estado-Membro. No tocante às sociedades, às outras pessoas colectivas ou às associações de pessoas singulares, estas consideram-se domiciliadas no lugar onde tiverem a sua sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal (art.º 63.º, n.º 1). O critério adoptado no art.º 63.º, n.º 1 do Regulamento é, aliás, coincidente, com o critério adoptado pelos artigos 159.º do Cód. Civil e pelo art.º 12.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais.
Ora, atendendo a estas regras, tem de se concluir que a Ré Google Inc. tem domicílio na Califórnia, Estados Unidos da América, por ser este, inquestionavelmente, o local da sua sede, e que não se mostra preenchido o terceiro requisito de aplicabilidade do Regulamento n.º 1215/2012.
Conclui-se, assim, que o Regulamento n.º 1215/2012 não é aqui aplicável.
Assim, não estando a acção sujeita ao regime comunitário, resta aferir da competência internacional dos Tribunais Portugueses em função das normas do Código de Processo Civil que regem sobre esta matéria.
Como decorre desde logo do art.º 59.º do CPC importa levar em conta o art.º 62.º do mesmo diploma legal que vem elencar os factores relevantes para a atribuição de competência aos tribunais portugueses.
E foi precisamente no disposto na al. a) do artigo 62º do CPC[...], que corresponde ao anterior art.º 65.º, que o Tribunal a quo se baseou para justificar o seu entendimento (e respectiva decisão) no sentido da incompetência dos tribunais portugueses.
O artigo 62.º do CPC, com o proémio «Factores de atribuição da competência internacional», dispõe:
“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a)- Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;b)- Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;c)- Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
Na sentença recorrida discorreu-se o seguinte:
“Assim e de acordo com o disposto no art.65º do CPC, os tribunais portugueses serão competentes internacionalmente se ocorrerem uma das 3 situações aí previstas.
A prevista na al. a) remete para as regras de competência em razão do território o tribunal. É o chamado critério de coincidência. Se de acordo com as regras previstas nos art.70º e seguintes do CPC, o tribunal competente é o de um lugar situado em Portugal, então existirá coincidência e os tribunais portugueses serão internacionalmente incompetentes.
Ora, no caso dos autos, estamos perante uma acção especial, que visa o decretamento de uma providência adequada a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e directa à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar os efeitos de ofensa já cometida – art.878º do CPC. Não existe nenhum critério específico para este tipo de acções, sendo certo que não estamos perante nenhum procedimento cautelar seguido de uma acção declarativa em que seja pedida indemnização por responsabilidade civil extracontratual (por aplicação da regra do art.71º, nº2 ex vi do art.78º, nº1, al.c) do CPC, seria competente o tribunal onde o facto ilícito ocorreu) pelo que, de acordo com a regra geral, competente seria o do domicílio do Réu – art.80.º, nº1 do CPC.
Ora, o tribunal do domicílio do R não é português.
A este respeito, cumpre desde já salientar que, para efeitos de aplicação do princípio da coincidência, as restantes regras de recurso previstas no n.º 2 e 3 do art.80º não contam, pois esta pressupõe sempre que o tribunal português já é competente internacionalmente e limitam-se a arranjar, dentro do território português, um tribunal territorialmente competente, nem que seja o de Lisboa.
Afastamos, assim, a al.a).
No que concerne à al.b), o facto que serve de causa de pedir à acção teria de ter sido praticado em território português ou alguns dos factos que a integram, o que não é o caso, pois o A, nem sequer no que concerne aos danos, alega qualquer facto que tenha ocorrido em Portugal.
Por fim, quanto à al.c), que apela ao princípio da necessidade e que acaba por ser uma válvula de escape que visa assegurar o direito de acesso ao direito constitucionalmente garantido a todos os cidadãos, exige-se dois requisitos cumulativos:
–que o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em tribunal português (porque, por exemplo, da conjugação das regras de competência internacional dos vários países, o litígio ficaria sem tribunal competente para o apreciar) ou se verifique grande dificuldade para o A na propositura de acção no estrangeiro (uma situação de guerra, de corte de relações diplomáticas ou uma oneração excessiva do autor para se deslocar à jurisdição competente);
–desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
Vejamos, então se se verifica esta situação:
Por força dos documentos que foram juntos, verifica-se que nada obsta, como não obstou, que o A demandasse a R. nos tribunais brasileiros ou nos tribunais americanos, ou mesmo nos tribunais italianos, pois estas três jurisdições têm elementos de conexão com a causa de pedir da presente acção e com as partes envolvidas.
Assim, falece desde já o 1º requisito, pois não se verifica nem é alegada qualquer dificuldade em propor a acção em qualquer destes tribunais.
Por outro lado, existindo conexão com aquelas jurisdições, há que saber se existe alguma conexão com a portuguesa e, quanto a esta do que é alegado resulta que:
–no âmbito do seu doutoramento que ocorreu entre Maio de 2010 e Junho de 2013, o Autor esteve em 3 países, sendo que em Portugal esteve desde Fevereiro de 2012 a Fevereiro de 2013; - o A tem residência em Portugal como resulta de uma declaração e atestado que consta de fls.51 e 52.
Em nenhum outro momento da sua petição, o A faz referência a este país ou a factos neste ocorridos.
Assim, a questão resumir-se-ia em saber se o A tem domicílio em Portugal.
“Domicílio”, conforme resulta do disposto no art.82º do CC, é o lugar onde uma pessoa tem a sua residência habitual, o que o A alega mas não demonstra claramente.”
*
Excluída a possibilidade de a acção estar compreendida em alguma das situações de competência exclusiva dos tribunais nacionais previstas no artigo 63.º do Código de Processo Civil, resta a possibilidade de se verificar o preenchimento de algum dos factores de atribuição de competência internacional previstos no artigo 62.º do mesmo diploma.
Esses factores são, como se refere na decisão recorrida, os seguintes: a acção poder ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa [alínea a)]; ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram [alínea b)]; o direito invocado não poder tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real [alínea c)].
O último dos factores não foi sequer alegado, pelo que não cabe aqui apreciar. O segundo factor “ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram” também não se verifica, pois a crer na alegação do Autor e Recorrente a prática dos factos danosos, isto é, das ameaças contra a sua integridade física e das ofensas contra os seus direitos de personalidade, designadamente contra o seu bom nome, ocorreu no Japão, país onde reside presumível autor do blog/página web difamante, um tal DA...., (artigos 8.º e segs. da PI). Foi essa circunstância, aliás, que levou o Autor a apresentar a competente queixa-crime contra aquele no Japão (cfr. artigo 62.º da PI).
Resta, assim, verificar se ocorre o primeiro facto de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, segundo o regime estabelecido no CPC, ou seja, se acção poder ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.
A lei interna elege o artigo 81.º, n.º 2, do CPC como regra geral para as pessoas colectivas e sociedades, norma especial, que prevalece sobre a regra geral plasmada no art.º 80.º do CPC para as pessoas singulares, erradamente aplicada pelo Tribunal a quo.
À luz do n.º 2 do artigo 81.º do CPC, “Se o réu for [outra] pessoa colectiva ou uma sociedade, é demandado no tribunal da sede da administração principal ou da sede da sucursal, agência, filial, delegação ou representação, conforme a acção seja dirigida contra aquela ou contra estas; mas a acção contra pessoas colectivas ou sociedades estrangeiras, que tenham sucursal, agência, filial, delegação ou representação em Portugal pode ser proposta no tribunal da sede destas, ainda que seja pedida a citação da administração principal.”
Tendo a presente acção sido proposta em Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa contra uma sociedade comercial americana [Google Inc., com sede na Califórnia, EUA], com delegação ou representação em Portugal [a Google Portugal com sede na Av. da L... em Lisboa], só podemos concluir, neste caso, pelo competência internacional desse Tribunal para tramitar e julgar a acção, por se verificar a coincidência entre a competência internacional e a competência interna, estabelecida no artigo 62.º, alínea a), por referência ao artigo 81.º, n.º 2, 2.ª parte, ambos do CPC.
Logo, é de concluir, ainda que com fundamentos diferentes dos invocados pelo Recorrente, que o Tribunal a quo é foro internacionalmente competente para conhecer do litígio."
*3. [Comentário] O acórdão merece dois comentários:
1) A 1.ª instância entende que o Autor não demonstrou ter domicílio em Portugal e o acórdão afirma que o Autor tem "domicílio ocasional" em Portugal. Trata-se de um conceito com pouca precisão jurídica, porque o Autor só pode ter ou não ter domicílio em Portugal, o que, naturalmente, pode necessitar de ser demonstrado.
A importância desta circunstância reside em que a competência internacional dos tribunais portugueses depende de a causa apresentar uma conexão com a ordem jurídica portuguesa e com uma outra ordem jurídica. A conexão da causa com o ordenamento jurídico português pode ser efectuada através do domicílio do autor -- mas apenas, naturalmente, quando o autor tenha mesmo domicílio em Portugal.
Se não houver nenhuma conexão com a ordem jurídica portuguesa, não se pode sequer colocar o problema da competência internacional dos tribunais portugueses.
2) Estranha-se a facilidade com que a versão publicada do acórdão permite identificar o Autor. A circunstância de os links constantes do acórdão não estarem (aparentemente) activos não diminui a gravidade da situação.
MTS
25/06/2020
Paper (450)
-- Enoch, D., How to Theorize about Statistical Evidence (and Really, about Everything Else): A comment on Allen (SSRN 06.2020)
Jurisprudência 2020 (17)
Acção de anulação do testamento;
arrolamento
1. O sumário de RP 27/1/2020 (3504/19.8T8AVR-A.P1) é o seguinte:
I - Nos termos do art. 403º/2 CPC o arrolamento pode também ser declarado na dependência de ações que tenham por objeto a questão prévia da determinação de um estado, direito ou facto de cuja existência dependesse uma futura especificação, como seja a ação de anulação de testamento.
II - O pedido de anulação do testamento tem subjacente e está normalmente associado a discussão em torno do direito a determinados bens materiais.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Os apelantes insurgem-se contra o segmento do despacho que indeferiu liminarmente o requerimento de arrolamento, por se entender ser manifestamente improcedente tal pretensão, quando requerida como dependência de ação de anulação de testamento.
Argumentam os apelantes que na ação principal pretendem obter a anulação do testamento celebrado pelo pai da requerente e requerida e a devolução dos bens referenciados no testamento à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da mãe, constituindo o arrolamento a providência adequada para acautelar o efeito útil da ação, ou seja, evitar que os prédios objeto do legado desapareçam na pendência da ação.
A questão que se coloca consiste em saber se o pedido de arrolamento é manifestamente improcedente, quando requerido como incidente de ação de anulação de testamento.
Adiantando a solução, consideramos que a decisão recorrida merece censura, porque face ao disposto no art. 403º/2 CPC o procedimento cautelar de arrolamento constitui o procedimento próprio para acautelar o direito que se visa reconhecer na ação de anulação de testamento. O arrolamento é dependência da ação de anulação de testamento. [...]
Nos termos do art. 403ºCPC sob a epígrafe “Fundamento” prevê-se:
“1. Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.2. O arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”.
O arrolamento enquanto providência cautelar, visando a conservação de bens no património, funda-se na descrição de bens de forma a assegurar que os mesmos não possam ser objeto de extravio, ocultação ou dissipação.
O âmbito de previsão da providência generalizou-se ao longo dos tempos, como disso dá nota, o Professor ALBERTO DOS REIS. Inicialmente esteve previsto como ato preparatório do inventário e de abandono de bens e herança jacente. O Código de Processo Comercial veio permitir que se lançasse mão do arrolamento como ato preparatório ou incidente da ação de dissolução de sociedade. O Decreto 03.11.910 passou a prever que a mulher podia requerer o arrolamento em conexão com a ação de divórcio, regime que era extensivo à ação de separação de pessoas e bens.
O Código de Processo Civil de 1939 passou a admitir o arrolamento sempre que houvesse interesse na conservação dos bens. O Professor ALBERTO DOS REIS ensinava, então, que o interesse na conservação dos bens podia assumir dois aspetos:” ser consequência do direito aos bens, direito já existente e constituído ou ser o resultado de uma pretensão jurídica que carece de ser apreciada e julgada”[3].
O Código de Processo Civil de 1961 veio acolher tal interpretação, com a redação do art. 422º/2 CPC. As alterações introduzidas pelo DL 329-A/95 não visaram introduzir uma alteração substancial [JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, pag. 186.].
Presentemente e como se prevê no art. 403º/2 CPC, o arrolamento de bens é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.
A formulação genérica da lei aponta para ação em que esteja em causa – ou de cuja procedência possa resultar estar em causa – a determinação, para qualquer fim, dos bens de um património, geral, separado ou colectivo [JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, ob. cit., pag. 184].
O arrolamento pode assim ser declarado na dependência de ações em que se tenha que proceder à especificação dos bens, como seja, o processo de inventário, partilha de património conjugal, liquidação de sociedade, reivindicação de estabelecimento ou universalidade de facto, prestação de contas.
Contudo, pode também ser declarado na dependência de ações que tenham por objeto a questão prévia da determinação de um estado, direito ou facto de cuja existência dependesse uma futura especificação, nas quais se incluem as ações de divórcio, separação de pessoas e bens, anulação de casamento, dissolução de sociedade, interdição, investigação de paternidade ou maternidade, anulação de testamento ou de negócio translativo de uma universalidade.
Em Ac. Tribunal Relação de Coimbra 30 de abril de 2019, Proc. 3409/18.0T8LRA-A.C1 (acessível em www.dsgi.pt) considerou-se justificado o recurso ao procedimento cautelar de arrolamento, como incidente prévio à instauração de ação de anulação de testamento e em sumário, refere-se: “[j]ustifica-se a providência cautelar de arrolamento quando o requerente tenha interesse na conservação dos bens que integram determinado acervo hereditário e exista justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie, oculte ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens (cf. os art.ºs 403º, 404º, n.º 1 e 405º, n.ºs 1 e 2 do CPC)”.
No caso presente, o arrolamento foi requerido na dependência de ação de anulação de testamento, visando-se com a mesma que bens certos e determinados regressem à herança ilíquida e indivisa por óbito da mãe da requerente e requerida. Está em causa o reconhecimento prévio de um direito de que depende a concreta especificação dos bens, pois a requerente pretende ter direito a determinados bens, que fazem parte da herança ilíquida e indivisa de sua mãe. O pedido de anulação do testamento tem subjacente e está normalmente associado a discussão em torno do direito a determinados bens materiais.
O requerimento formulado não se mostra, assim, manifestamente improcedente, porque os fundamentos indicados justificam o recurso à providência de arrolamento, nos termos do art. 403º/2, parte final do CPC."
[MTS]
24/06/2020
Responsabilidade pelas custas no recurso julgado procedente sem contra-alegação do recorrido
Jurisprudência 2020 (16)
Hipoteca; venda executiva;
contrato de arrendamento; caducidade*
1. O sumário de RE 30/1/2020 (38/19.4T8EVR.E1) é o seguinte:
Os contratos de arrendamento e de subarrendamento que tenham por objeto imóveis hipotecados caducam por força da venda judicial efetuada no âmbito do processo executivo, por força do disposto no art.º 824.º, n.º 2, do Código Civil, quando hajam sido celebrados em momento posterior ao registo da hipoteca.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A única questão que cumpre decidir é a seguinte: saber se os contratos de arrendamento e subarrendamento, respetivamente, que tiveram por objeto os dois imóveis hipotecados melhor identificados nos autos, caducaram, ou não, por força da venda judicial efetuada no âmbito do processo executivo, em conformidade com o regime previsto no art. 824.º, n.º 2, do Código Civil.
Como nos dão conta o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30.05.2019, processo n.º 701/16.1T8PTG-C.E1 (relator Rui Machado Moura) e o acórdão do STJ de 18.10.2018, processo n.º 12/14.7TBEPS-A.G1.S2, ambos publicados em www.dgsi.pt., a questão sob análise, nos últimos anos, tem sido decidida, uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que com a venda judicial de imóvel hipotecado que haja sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, o direito do respetivo locatário caduca nos termos do art. 824.º, n.º 2, do Código Civil.
Para além do acórdão do STJ acima mencionado, encontrámos na jurisprudência daquele Tribunal, entre outros, os seguintes acórdãos que decidiram em sentido idêntico:
- O acórdão de 09.01.2018, processo n.º 732/11.8TBPDL-A.L1S1, em cujo sumário se escreveu: «[…] III. A venda judicial, em processo executivo, de um prédio hipotecado faz caducar o seu arrendamento, não registado, mas sujeito a registo, quando celebrado, posteriormente, à constituição e registo da aludida hipoteca, ainda que, em data antecedente à do registo da penhora, em virtude de, quanto a esta última situação, na expressão “direitos reais”, constante do art. 824.º, n.º 2, do CC, se incluir, por analogia, a situação do arrendamento. IV - O locatário de prédio sujeito a registo, mas não registado, não é titular de um direito oponível e prevalente sobre a coisa penhorada na execução, com hipoteca constituída e registada, em data anterior à do contrato de locação, a favor do adquirente do bem em venda executiva, ou seja, de um direito que, nos termos do estipulado pelo art. 824.º, subsista após esta, não sendo aplicável ao caso a previsão do art. 1057.º, ambos do CC, transmitindo-se o bem adquirido, em venda judicial, pelo credor com garantia real, seu novo proprietário, livre e desembaraçado, do ónus locatício»;
- O acórdão 16.09.2014, processo n.º 351/09.9TVLSB.L1.S1, no qual se escreveu: «A primeira e principal questão reporta-se, como definido na decisão que admitiu o respetivo recurso e a enuncia o Recorrente, ao destino do contrato de arrendamento celebrado posteriormente ao registo de hipoteca, e antes da penhora, perante a venda executiva do imóvel objeto desse contrato, isto é, se contrato de locação caduca ou se se mantém oponível ao adquirente do imóvel.
Como nos autos se encontra abundantemente refletido, quer por referência das Partes quer por via de citação nas decisões proferidas pelas Instâncias, a questão proposta não é inteiramente líquida, tanto na doutrina como na jurisprudência.
No Supremo Tribunal de Justiça, as decisões mais recentes (relativas, pelo menos, aos últimos 5-6 anos) vão, ao que se conhece, na generalidade no sentido de que a venda judicial do imóvel hipotecado faz caducar o contrato de arrendamento que tenha por objeto esse imóvel, por dever considerar-se abrangido pela norma do n.º 2 do art. 824º do Código Civil.
Esta Conferência posiciona-se também nesse entendimento (não sem que se diga que o ora relator já subscreveu, enquanto adjunto, diferente posição no acórdão de 27/3/2007, posição que, entretanto, reconsiderou tendo em atenção, que, não obstante manter o entendimento de que o arrendamento não assume a natureza de um direito real, a tese que então se acolheu, porventura mais fiel aos princípios e conceitos convocáveis, não é a que melhor responde às exigências de justiça nem aos interesses teleologicamente detetáveis no referido n.º 2 do art. 824º, cujo espírito ou ratio é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer encargos (cfr., também agora neste sentido, P. ROMANO MARTINEZ, “Da Cessação do Contrato”, 321). Assim sendo, ter-se-á por afastada a taxatividade das causas de caducidade do contrato de arrendamento com assento no art. 1051º C. Civil, considerando que o mesmo também pode caducar, entre outras causas – atente-se, v.g., no caso de impossibilidade da prestação (art. 795º CC), como apreciado no ac. desta Conferência de 08/5/2013 – proc. 9304/09.6YYPRT-A.P1.S1) -, por via da aplicação do art. 824º-2 citado, bem como a regra emptio non tollit locatum, que o art. 1057º, também do C. Civil, acolhe ao prever, ipso jure, a transmissão da posição jurídica do locador para o novo adquirente quando se transmita o bem com base no qual foi celebrado o contrato, inaplicável em caso de venda executiva […]»;
- O sumário do acórdão de 18.10.2018, processo n.º 12/14.7TBEPS-A.G1.S2, tem o seguinte teor: «I. O contrato de arrendamento, na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do respetivo proprietário devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, deve estar sujeito ao regime previsto no art. 824º, nº 2 do Código Civil, cujo espírito ou ratio é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer encargos. II. Não se trata, porém, de estender, por via analógica, o efeito extintivo previsto neste art. 824º, nº 2 a direitos de natureza obrigacional, mas apenas de considerar aplicável esse efeito a direitos não reais relativamente aos quais, pela sua especificidade possam proceder as mesmas razões justificativas da extinção. III. A interpretação dada ao nº 2 do art. 824º do Código Civil, no sentido de que o mesmo abrange também o contrato de arrendamento, é a que melhor responde às exigências de justiça e aos interesses teleológicos nele subjacentes, na medida em que assegura um equilíbrio adequado e proporcional entre os vários interesses em jogo: o interesse do proprietário do bem hipotecado, em celebrar o contrato de arrendamento; o interesse do arrendatário, que sabe ou pode saber pela publicidade registral que o bem objeto do arrendamento está sujeito à execução e o interesse do credor hipotecário, que não vê o bem hipotecado sofrer desvalorização em consequência do arrendamento. IV. A relação locatícia estabelecida após constituição de hipoteca sobre o imóvel objeto do contrato, por aplicação do art.824º, nº 2, do Código Civil, caduca automaticamente com a venda do imóvel arrendado no processo executivo, inviabilizando, por isso, a dedução dos embargos por parte do arrendatário, de harmonia com o disposto no art. 344º, nº 2, 2ª parte, do CPC»;
- O sumário do acórdão de 22.10.2015, processo n.º 896/07.5TBSTS.P1.S1 refere: «IV. Quer se considere a dimensão real do arrendamento quer tão só e apenas a dimensão obrigacional do contrato que o substancia, o que importa é definir se o ónus ocorreu antes ou depois do arresto, penhora ou garantia com os quais o credor/exequente se protegeu. V - O STJ, preocupado sobretudo com a dimensão real do arrendamento, vem decidindo uniformemente que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca caduca o direito do respetivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC»;
- No acórdão de 09.07.2015, processo n.º 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1 decidiu-se também que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respetivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC.
Na doutrina, o mesmo entendimento é defendido, entre outros, por Rui Pinto e pelo prof. Oliveira Ascensão.
Refere o primeiro dos autores mencionados: «[…] na verdade, o arrendamento que seja posterior à garantia prioritária não pode deixar de caducar, seja qual for a natureza jurídica que se lhe possa atribuir. É que se for um direito real menor de gozo não poderia deixar de ser assim, como já se viu; se for um direito pessoal de gozo, por maioria de razão, caducará por extinção do objeto da prestação.
E efetivamente, como escreveu Vaz Serra, “não há razão para o submeter a regime diferente do aplicável aos direitos reais”. Na verdade, não se pode deixar de considerar que a regra do art. 1057.º CC não é absoluta e conhece os mesmos limites para tutela dos credores e adquirentes – terceiros à relação locatícia – que os próprios direitos reais sofreriam. In casu, a caducidade ex vi art. 824.º, n.º 2, CC.
Em consequência, no plano processual o preceito substantivo do art. 1057.º CC não pode, senão, implicar que se dê à locação um tratamento semelhante ao de um direito real de gozo menor em sede de relação com a venda executiva. Em termos simples: a locação não pode ter um regime mais favorável, nem mais desfavorável que um direito real de gozo menor. Por isto, se a locação do bem penhorado for anterior à garantia prioritária, o art. 1057.º CC dita a permanência da locação mesmo após a venda executiva. O adquirente passará, então, a ser o novo locatário, e a locação será um ónus do prédio.
Já se a locação for posterior à garantia prioritária, caducará ex vi art. artigo 824.º, n.º 2, CC.» [A Ação Executiva, 2019, AAFDL Editora, pp. 906-907]
Oliveira Ascensão, a partir do teor e ratio dos arts. 1057.º, 695.º e 824.º, n.º 2, todos do Código Civil, conclui que o arrendamento está contido no art. 824.º, n.º 2, do Código Civil. Escreveu aquele ilustre professor: «A lei admite que os bens hipotecados sejam arrendados, permitindo que o hipotecador deles tire proveito, mas só o admite porque o arrendamento caduca nos casos de venda judicial. A isso leva a teleologia do art. 695.º, que ficaria frustrada se o arrendamento não ficasse compreendido entre as onerações que se preveem. […]. O art. 824.º, n.º 2, com a sua referência dos direitos reais quer abranger aquelas mesmas onerações que atingem a posição real adquirida pelo credor hipotecário. Os direitos que aqui se referem são necessariamente direitos que seguem a coisa, de maneira a serem oponíveis ao adquirente dos bens. São necessariamente direitos inerentes. Sejam, ou não, direitos reais, só os direitos inerentes são oponíveis ao adquirente dos bens em processo executivo.
[…] o arrendamento é um direito inerente e isto sempre abstraindo da sua qualificação como direito real. Pois assim se traduz a sua característica de gravar quem quer seja o titular do gozo do prédio. Se a lei quer que os bens passem livres dos direitos que os oneram, assegurando o valor dos bens em processo executivo, seria incompreensível que deixasse subsistir o arrendamento […]. O art. 1057.º do CC tornou o arrendamento um direito inerente, seja qual for a precisa estrutura jurídica do fenómeno que desenhe. Em consequência, não pode deixar de ficar submetido ao art. 824.º/2» [Locação de bens dados em garantia-natureza jurídica da locação, ROA, ano 45, volume II, Setembro].
A orientação supra referida é aquela que melhor conjuga os interesses em jogo e respeita a ratio dos arts. 824.º, n.º 2 e 695.º, ambos do Código Civil que, por conseguinte, perfilhamos. Com efeito, ela permite, por um lado, que o proprietário do bem continue a retirar vantagens económicas do mesmo apesar de este ser objeto de garantia, e, por outro, não diminui o valor do bem no caso da sua venda em processo executivo porque a oneração em que se traduz o arrendamento não é oponível ao credor hipotecário. Ademais, sendo a hipoteca objeto de registo, também o arrendatário tem a possibilidade de tomar conhecimento de que o bem que pretende tomar de arrendamento está onerado com hipoteca e de acautelar, em conformidade, os seus interesses.
Retornando ao caso em apreço, resulta dos autos que a hipoteca que incide sobre ambos os prédios em causa nos autos foi registada em 30.05.2008 (cfr. documento n.º 5 anexo à contestação) e que os contratos de arrendamento e de subarrendamento foram outorgados, respetivamente, em 02.10.2012 e 28.06.2013, logo em momentos posteriores ao do registo da hipoteca. Por conseguinte, por força do art. 824.º, n.º 2, do Código Civil aquelas relações locatícias caducaram com a venda dos referidos imóveis no processo de execução que correu os seus termos sob o n.º 122/13.8TBARL, no Juízo de Execução de Montemor-o-Novo.
*3. [Comentário] A RE decidiu bem. O acórdão fornece uma boa panorâmica sobre a jurisprudência e a doutrina relativa ao problema.
MTS
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