"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/07/2020

Jurisprudência constitucional (181)


Sentença de declaração da insolvência;
prazos de prescrição e caducidade; suspensão


TC 11/3/2020 (175/2020) decidiu o seguinte:

Não julga inconstitucional a norma do artigo 100.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas [CIRE], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, quando interpretada no sentido de que a declaração de insolvência suspende o prazo prescricional das dívidas tributárias imputáveis ao responsável originário no âmbito do processo tributário.


30/07/2020

Informação (270)



Período de férias


À semelhança dos anos anteriores, o Blog interrompe a partir de hoje e até Setembro as publicações regulares.

O Blog não tem outra recompensa que não seja ser lido. Contando, neste momento, mais de 963 000 visualizações, o Blog pode aspirar a atingir, dentro de alguns meses, um milhão de visualizações. Dado que ao número de visualizações registadas acrescem aquelas que são realizadas através da subscrição por email, pode até suspeitar-se de que o milhão de visualizações já terá sido atingido há muito. Seja como for, o objectivo é mesmo ver o número 1 000 000 no contador do Blog.

Aproveita-se para desejar a todos os Leitores -- se for o caso -- umas boas férias e para formular os votos de um reencontro em Setembro. 

MTS


29/07/2020

Jurisprudência 2020 (41)


Intervenção principal;
direito de regresso; intervenção acessória


1. O sumário de RG 27/2/2020 (1904/19.2T8VCT-A.G1) é o seguinte:

I- Têm legitimidade para intervir a título principal todos aqueles que, apesar de não estarem desde o início no processo, são também titulares da relação material controvertida, pelo que podem litisconsorciar-se com o autor ou com o réu, nos termos dos arts. 32.º, 33.º e 34.º do CPC (art. 311º do CPC).

II- O incidente intervenção acessória (provocada) tem por finalidade permitir que possa intervir no processo como auxiliar, a chamamento do réu, um terceiro - com base na invocação contra ele de um possível direito de regresso, que permitirá ao réu-chamante ressarcir-se do prejuízo que lhe cause a perda da demanda -, que embora careça de legitimidade para intervir como parte principal, tenha um interesse reflexo ou indireto na decisão da causa (art. 321º do CPC).

III - No seguro de responsabilidade civil facultativo os n.ºs 2 e 3 do art. 140º do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16/04, concedem ao lesado o direito de demandar diretamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado, nas duas situações excecionais aí mencionadas:

a) - quando tal se encontre expressamente previsto no contrato de seguro;

b) - quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador.

IV- Não se verificando qualquer das referidas situações excecionais, a intervenção da seguradora, provocada pelo demandado/segurado, só pode ocorrer acessoriamente, enquanto titular de mera relação jurídica conexa com a relação material controvertida que fundamenta a ação e que lhe confere o direito de regresso.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

[...] o apelante alegou, na contestação, ter celebrado dois contratos de seguro, nos termos dos quais transferiu para a seguradora a responsabilidade civil em que possa incorrer em consequência de atos, omissões e erros imputados aos promotores por si designados, sendo que, por efeito dos aludidos contratos de seguro e no caso de procedência da acção, terá um direito de regresso contra a seguradora atinente aos valores que tenha de pagar às Autoras na presente ação, sob a pressuposição de que tais valores estarão abrangidos no âmbito da cobertura dos mencionados seguros.

Todavia, não resulta dos autos – tal não foi alegado, nem se mostra documentalmente provado –, que nos referidos contratos de seguro (facultativos) tenha sido expressamente prevista a atribuição ao lesado do direito de exigir diretamente à chamada seguradora a prestação contratual, de acordo com o n.º 2 do art.º 140.º da L.C.S., ou seja, que a constitua como garante directa da sua responsabilidade perante as Autoras, e nem a situação figurada no n.º 3 – a informação às Autoras sobre a existência do seguros e o consequente início das negociações diretas entre as alegadas lesadas (Autoras) e a seguradora.

A relação jurídica (causa de pedir), tal como se mostra delineada pelas autoras, desenvolveu-se entre elas e a ora apelante (alegada lesante), bem como com os demais réus, pelo que a seguradora não é titular de uma relação jurídica própria ou paralela à do réu, nem pode assumir o estatuto de parte principal na lide; a intervenção da seguradora só pode ocorrer acessoriamente, na veste de titular de uma relação jurídica conexa com aquela, a qual lhe confere o direito de regresso, não configurando uma situação de litisconsórcio voluntário passivo (...).

Acresce que, refutando os argumentos que servem de fundamento à apelação interposto, impõe-se especificar que:

1º - Nos contratos de seguro de caráter facultativo, a seguradora só possui legitimidade para ser demandada como parte principal no processo nas concretas situações, excepcionais, consagradas nos nºs 2 e 3 do art. 140º da LCS, ou seja, quando o contrato de seguro prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador ou quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro e se tenham iniciado as negociações directas entre ele, lesado, e o segurador; nas restantes situações em que este seja demandado, ocorrerá ilegitimidade passiva do segurador, pois que não é parte na relação material controvertida [mas apenas sujeito passivo de uma relação jurídica (contrato de seguro) conexa com aquela)] (...).

2º - Inexiste interesse litisconsorcial necessário ou voluntário entre o réu/lesante e a sua seguradora, não podendo esta ser demandada como parte principal, nem podendo ser admitido o incidente de intervenção principal provocada, dando origem a uma situação de litisconsórcio sucessivo, apenas se justificando a intervenção acessória dessa seguradora, como auxiliar do réu/lesante, com vista a uma futura acção de regresso contra a mesma, e por forma a ser indemnizado pelos prejuízos que venha a sofrer com a perda da demanda.

A existência de contrato de seguro (facultativo) celebrado pela ré com a seguradora não tem a virtualidade de transmutar esta em titular da relação material controvertida, apenas lhe conferindo um interesse processual acessório/secundário no litígio em apreço (...).

Fica, assim, afastado o entendimento de que o terceiro lesado teria sempre a possibilidade de demandar o lesante e a sua seguradora em litisconsórcio voluntário nos termos do art. 32.º do CPC.

3º - Perante o terceiro lesado, a seguradora, em face do contrato de seguro, não se apresenta como condevedora nem como principal devedora, muito menos a título de obrigação solidária (...).

A solidariedade, nos termos do art. 513º, CC, só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.

A recorrente não alegou, nem documentalmente provou, a estipulação nos contratos de seguro da faculdade de o terceiro lesado poder demandar diretamente a seguradora e/ou a obrigação de esta pagar a indemnização diretamente àquele.

4º - Não tem aqui aplicação a norma do art. 497º do CC, uma vez que tal regra, ao referir como várias as pessoas responsáveis pelos danos, manifestamente se refere às causadoras, por acção ou omissão, do evento lesivo ou às detentoras e beneficiárias da fonte do dano e como tal por ele chamadas a responder, e não às que, como as seguradoras, só indirectamente respondem, em termos reflexos e em função do contrato (...).

*
Impõe-se, pois, concluir que decidiu com acerto o Tribunal “a quo” ao julgar não verificados os pressupostos da intervenção principal provocada da seguradora, convolando o incidente suscitado para a intervenção acessória."

[MTS]




28/07/2020

Jurisprudência 2020 (40)


Falta da citação;
nulidade da citação


1. O sumário de RP 11/2/2020 (290/07.8GBPNF-E.P1) é o seguinte:

I - Tendo a chamada por intervenção principal provocada sido notificada, em vez de ser citada para os autos, para deduzir querendo, oposição à penhora, é manifesto que não se verifica falta de citação (art.° 188.° do C.PCivil), mas tão só uma nulidade de citação (artº 191.º do C.P.CiviI), porquanto o acto realizada não foi o processualmente adequado e prescrito por lei.

II - A nulidade da citação é considerada uma nulidade secundária, que só pode ser invocada pelo interessado, o que deve acontecer, em princípio, aquando da sua primeira intervenção no processo, caso contrário, considera-se sanada, como sucedeu “in casu”.

III - A declaração de ineficácia do partilha dos bens comuns do casal realizada entre o co-executado e a sua ex-mulher, permite ao exequente vir a executar, na exacta medida do necessário para a satisfação do seu crédito sobre o co-executado/devedor, os bens partilhados e transferidos para o património desta, pelo que a mesma tem legitimidade para ser demandada com executada nos autos apensos.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Defende [...] a apelante insurgindo, manifestamente fora de tempo e local contra a decisão que admitiu o incidente de intervenção principal provocado, proferido a fls. 376 dos autos executivos e há muito transitado em julgado, que existe nulidade de todo o processo por falta da sua citação para a execução, já que na sequência da admissão do referido incidente de intervenção de terceiros, apenas recebeu uma notificação dos autos para “… no prazo de 10 dias, deduzir, querendo oposição à penhora …”.

Esta questão foi já colocada em sede dos presentes embargos em 1.ª instância e foi negada a existência da apontada nulidade.

Vejamos.

Como se sabe e dispõe o art.º 219.º n.º 1 do C. P.Civil, a citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender (in ius vocatio). Emprega-se o acto “citação” para chamar, pela primeira vez ao processo alguma pessoa interessada na causa.

Destarte, a citação é um acto processual essencial que visa assegurar o direito de qualquer pessoa se defender ou deduzir oposição, de molde a evitar que se seja surpreendido por uma decisão judicial não esperada, tudo como corolário lógico do princípio do contraditório, cfr. art.º 3.º n.º 3 do C.P.Civil, cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 266.

Segundo o Prof. Alberto dos Reis, in “Cód.Proc.Civil, anotado, vol. I, pág. 312, o acto de citação pode ficar inquinado por duas espécies de vícios distintos e de consequências bem diversas: - falta de citação e nulidade da citação.

Dá-se a falta de citação quando o acto se omitiu (inexistência pura) ou, ainda que efectuado, ter sido feito, com atropelo à lei tão grave e erro tão grosseiro, que lhe deva ser equiparado. Aqui se abrangem os casos em que, apesar de formal e processualmente existir citação, se há-de entender que esta não se mostra efectuada.

Dá-se a nulidade da citação quando o acto se praticou, mas não se observaram, na sua realização, as formalidades prescritas na lei.

A falta de citação constitui uma nulidade absoluta, de conhecimento oficioso e determina a anulação de todo o processado, após a petição inicial, cfr. art.º 187.º do C.P.Civil e dela trata o art.º 188.º do C.P.Civil. A nulidade da citação é considerada uma nulidade secundária, só pode ser invocada pelo demandado, e é tratada no art.º 189.º do C.P.Civil.

Como se sabe, a via mais normal de efectuar a citação pessoal de pessoas singulares, como é o caso dos autos, é por via postal e é esta forma que aqui nos interessa.

Ora, este modo de citação faz-se por meio de carta registada com aviso de recepção, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho, cfr. art.ºs 225.º n.º 2 al. b) e 228.º n.º 1, ambos do C.P.Civil. A carta pode ser entregue, após a assinatura do aviso de recepção, ao citando, ou a qualquer pessoa que se encontre na sua residência ou local de trabalho e que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando, cfr. art.º 228.º n.º 2 do C.P.Civil.

Em qualquer hipótese, o distribuidor do serviço postal, antes da assinatura, procede à identificação daquele a quem a carta seja entregue, seja o próprio citando ou o terceiro, cfr. art.º 228.º n.º 3 do C.P.Civil, e no último caso, quando a carta seja entregue a terceiro, ainda advertirá este expressamente do dever de pronta entrega ao citando, cfr. n.º4 do citado preceito.

*“In casu” sucedeu que na sequência da prolação do acórdão que julgou definitivamente a admissibilidade da intervenção principal provocada da ora apelante nos autos executivos, em vez de se ter dado cumprimento ao disposto no n.º1 do art.º 319.º do C.P.Civil, “Admitida a intervenção, o interessado é chamado por meio de citação”, deu-se tão só cumprimento ao preceituado nos art.ºs 784.º e 785.º, ambos do C.P.Civil, pela via da notificação e isto porque, à ocasião da dedução do sobredito incidente, nos autos executivos havia-se procedido à penhora de vários bens imóveis, que não obteve êxito ao nível do registo, tendo a Conservatória do Registo Predial informado a Sr.ª Agente de Execução de que existia inscrição, em vigor, a favor de pessoa diversa do executado, no caso os prédios encontravam-se inscritos a favor de B…, ex-cônjuge do executado, tendo sido este facto que originou o referido pedido de intervenção da ora apelante, como co-executada nos autos, atento o teor da sentença proferida na acção de impugnação pauliana, acima referida.

*Em suma, foi utilizado um meio processual diverso do indicado por lei para o chamamento da ora apelante ao processo executivo (em vez de citação ocorreu notificação). Pelo que, desde já podemos concluir que não ocorreu a pura e simples omissão do acto de chamamento da ora apelante aos autos executivos, e atento o conteúdo da notificação que lhe foi feita, a mesma ficou perfeitamente ciente da existência e objecto do processo e mais relevante ainda, da penhora de vários bens imóveis inscritos no Registo Predial na sua titularidade, donde forma-se facultados os elementos necessários para que conhecesse o que estava em causa e se pudesse defender.

Logo, não se verifica falta de citação, cfr. art.º 188.º do C.P.Civil, mas tão só uma nulidade de citação, cfr. art.º 191.º do C.P.Civil, o acto realizada não foi o processualmente adequado e prescrito por lei.

Como já se referiu a nulidade da citação é considerada uma nulidade secundária, só pode ser invocada pelo demandado, e em princípio, tal nulidade pode e deve ser arguida aquando da primeira intervenção do citado no processo, caso contrário, considera-se sanada.

Ora, “in casu” a ora apelante após ter recebido a supra referida notificação, junta a fls. 424 do autos executivos, ao mesmos foi, de seguida, apresentar cópia do requerimento de pedido de concessão do apoio judiciário junto da SS, com vista à interrupção do prazo em curso, ou seja, do prazo para deduzir oposição à execução.

Destarte e sem necessidade de outros considerandos, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, uma vez que a nulidade de citação da ora apelante verificada se tem por absolutamente sanada, pela sua não arguição tempestiva. Ademais, é para nós evidente que a falta cometida não prejudicou de forma alguma a defesa da ora apelante."

[MTS]


Bibliografia (928)


-- Donzelli Romolo, Pregiudizio effettivo e nullità degli atti processuali (Jovene: Napoli 2020)



27/07/2020

Jurisprudência 2020 (39)


Embargos de executado;
causas de pedir incompatíveis*


I. O sumário de RC 30/3/2020 (289/19.18SRE-A.C1é o seguinte:

1. O regime da cumulação de causas de pedir incompatíveis, geradora da ineptidão da petição inicial, opera apenas no âmbito da ação declarativa, não se aplicando à petição de embargos de executado porque, não obstante assumir a natureza de “contra-ação”, tem um perfil e características próprias, dada a estrutura e finalidade da oposição.

2. A petição dos embargos de executado tem formalmente a estrutura e conteúdo de uma petição da ação declarativa, mas no plano material a oposição consubstancia uma reação à pretensão executiva, sendo substancialmente uma contestação. 

3. Os fundamentos de oposição à execução (art.731º CPC) não estão subordinados a nenhuma hierarquia, nem a lei impede a sua cumulação, porque são todos os que possam ser invocados na defesa (sistema não restritivo), não funcionando para essa defesa o regime da incompatibilidade de causas de pedir, além do mais porque o embargante opõe factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda (oposição de mérito). 

4. Não é inepta a petição de embargos de executado na qual o executado alega a falsidade da assinatura do título (aval aposto numa livrança), negando a autoria, e simultaneamente alega a violação do pacto de preenchimento.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dado o disposto no art. 731 CPC, porque a execução não se baseia em sentença condenatória, além dos fundamentos de oposição especificados no art.729 CPC, na parte em que sejam aplicáveis, pode invocar-se quaisquer outros que seria lícito deduzirem-se como defesa no processo de declaração.

Os subscritores e os avalistas de uma livrança são todos solidariamente responsáveis para com o portador, o qual tem o direito de accionar todas as pessoas individual ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que eles se obrigaram (art.47 e art.77 da LULL.). [...]

Os embargantes alegaram, no essencial, os seguintes fundamentos para a oposição: (i) a falsidade do título, impugnando a genuinidade das assinaturas; (ii) o montante do crédito; (iii) a violação do pacto de preenchimento.

O despacho recorrido indeferiu liminar e parcialmente os embargos com base na incompatibilidade material de causas de pedir, argumentando, em síntese, que a impugnação da genuinidade do título é incompatível com a alegação da violação do pacto de preenchimento.

O despacho recorrido deve ser revogado pelas razões que se passam a expor.

Em primeiro lugar porque sendo uma petição dirigida contra o exequente, está sujeita a despacho liminar, semelhante ao da acção declarativa, mas “vistas as condições peculiares, de mais restrito alcance” (Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, pág.300), significando que os fundamentos do indeferimento liminar são os positivados no art.732 CC nº1 (anterior art.817), embora não de forma taxativa. Isto para dizer que a rejeição não se alicerça em nenhum dos fundamentos das alíneas a), b) e c) do nº1 do art.732 CPC.

Sobre a cumulação de causas de pedir, apenas o art.186 nº2 c) CPC se reporta ao descrever uma causa de ineptidão da petição, como nulidade de todo o processo (“quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis “). 

Como doutrinava Alberto dos Reis, “duas ou mais prestações são legalmente incompatíveis quando produzem efeitos contraditórios ou sob o aspecto material ou sob o aspecto processual (…). A incompatibilidade substancial que conta para a ordem jurídica é a que resulta do facto de as pretensões produzirem efeitos jurídicos contraditórios “, exemplificando com o pedido simultâneo de anulação e cumprimento de determinado contrato (Comentário, III, pág. 154, 156 ). No mesmo sentido, Antunes Varela, para quem “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis “ (Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 246).

E a incompatibilidade substancial de pedidos só releva para a ineptidão da petição inicial “quando coloque o julgador na impossibilidade de decidir por confrontado com a ininteligibilidade das razões que determinaram a formulação das pretensões em confronto, irrelevando, para o efeito, o antagonismo que ocorra no plano legal ou do enquadramento jurídico” (cf., por ex., Ac STJ de 6/5/2008 ( proc. nº 08A966 ), Ac STJ de 3/5/2012 (proc. nº 2329/06), em www dgs.pt ).

A contradição que conduz à ineptidão (art.186 nº2 c) CPC) tem sido concebida como “contradição lógica”, uma “flagrante oposição”, ou “negação recíproca”.

Ora bem, o regime da cumulação de causas de pedir incompatíveis geradora da ineptidão opera no âmbito da acção declarativa (o citado acórdão do STJ que serviu de justificação no despacho reporta-se precisamente uma acção declarativa), mas não parece que deva adaptar-se à petição dos embargos de executado porque, não obstante assumir a natureza de “contra-acção”, tem um perfil e características próprias dada a estrutura e finalidade da oposição.

Na verdade, destinando-se a oposição a “um acertamento negativo da situação substantiva de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título“, cujo escopo primordial é o de “obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação por via indirecta da eficácia do título executivo enquanto tal” (Lebre de Freitas , A Acção Executiva, 5ª ed., pág. 189), os fundamentos de oposição à execução (art.731 CPC) não estão subordinados a nenhuma hierarquia, nem a lei impede a sua cumulação, porque “podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração”. Ou seja, ainda que expostos na petição de embargos, à qual se aplica com as “necessárias adaptações” (art.551 nº1 CPC) os requisitos da petição inicial da acção declarativa (art.552 CPC), os fundamentos da oposição são todos os que possam ser invocados na defesa ( sistema não restritivo ), não funcionando para essa defesa o regime da incompatibilidade de causas de pedir, além do mais, porque o embargante opõe factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda (oposição de mérito), funcionando o princípio da concentração.

A este propósito, entende-se que “na oposição à execução o embargante tem o ónus de concentrar na sua petição todos os fundamentos que podem justificar o pedido por ele formulado nos embargos (isto é, que podem justificar a concreta exceção deduzida). A inobservância deste ónus de concentração implica a preclusão dos fundamentos não alegados nessa petição “ (Ac STJ de 19/3/2019 ( proc. nº 751/16 ), em www dgsi.pt ).

Na verdade, no plano formal a petição dos embargos de executado tem a estrutura e conteúdo de uma petição da acção declarativa, mas no plano material a oposição consubstancia uma reacção à pretensão executiva, sendo substancialmente uma contestação. Por isso, opera o princípio da concentração da defesa, sendo legitimo cumular os fundamentos de oposição (tanto no sistema restritivo, como não restritivo) e o prazo de 20 dias para os embargos tem natureza processual, semelhante ao contestação.

Neste contexto, abrindo-se com os embargos de executado uma fase declarativa, não é, porém, uma acção declarativa pura, pois ainda que não se alterem regras da distribuição da prova, trata-se de uma acção de cariz especial, peculiar, porque quer se alegue “oposição de mérito”, quer seja “oposição de forma”, a finalidade é sempre de reacção à pretensão executiva, porque funcionalmente conexa, demonstrando o executado que se trata de uma execução injusta. Como também já se afirmou, “o embargado, ao defender-se, ou seja, ao explicar a emergência do título e as suas razões de sustentação, não está a acrescentar qualquer causa de pedir antes está, apenas, como se enunciou, a defender-se” (Ac RL de 5/7/2018 ( proc. nº 09/15), em www dgsi.pt).

Nesta medida, sendo os embargos de executado um meio de defesa, embora formalmente através de petição, em fase declarativa, a verdade é que neles o executado exercita o direito subjectivo processual de contraditar a pretensão executiva, sem que possa opor um pedido autónomo diferente.

Por conseguinte, não tem aplicação a ineptidão da petição de embargos de executado por incompatibilidade de fundamentos de oposição, contrariamente ao decidido. É que eles são alegados, não para sustentar uma pretensão autónoma por parte do embargante, mas para justificar a fata de causa do pedido do exequente.

Acresce que a alegação da violação do pacto de preenchimento e da falta de exigibilidade da obrigação (arts. 39 e segs.) foi feita a título subsidiário (“sem prescindir…)( cf. art.38 da petição ). Daqui resulta que o pedido é um só (o da extinção da execução), mas baseado em vários fundamentos. Quando se cumulam vários fundamentos nada obsta a que a cumulação seja subsidiária, à semelhança da permissão de pedidos subsidiários (art.554 CPC).

Sendo assim, a alegação da falsidade da assinatura (impugnação da genuinidade) dos avalistas não obsta à alegação da violação do pacto de preenchimento para efeitos de embargos de executado, pelo que não havia fundamento legal para o indeferimento liminar parcial".

*III. [Comentário] a) O acórdão decidiu bem na sua conclusão, embora não completamente nos seus fundamentos. Não é pela alegada circunstância de a petição inicial dos embargos de executado ter uma função de contestação da execução que se pode dizer que uma eventual contradição entre várias causas de pedir não implica a sua ineptidão. 

O que se pode dizer -- no caso da petição de embargos ou de qualquer outra petição inicial -- é que não há nenhuma ineptidão da petição, se a parte tiver hierarquizado as várias causas de pedir incompatíveis entre si, qualificando uma delas como subsidiária da outra. Ora, segundo se percebe foi isso que sucedeu no caso concreto, dado que, a título principal, o executado invocou a falsidade da assinatura como causa de pedir principal e, como causas de pedir sucessivamente subsidiárias, a violação do pacto de preenchimento e a inexigibilidade da obrigação exequenda.

b) A solução pode ser mais discutível quando o executado invoque várias causas de pedir incompatíveis entre si e não as hierarquize em causa de pedir principal e causa(s) de pedir subsidiária(s). Neste caso, parece que são pensáveis dois casos e duas soluções:

-- As causas de pedir incompatíveis entre si são insusceptíveis de ser hierarquizadas em causa de pedir principal e causa(s) de pedir subsidiária(s); neste raro caso (é possível que exista algum caso de incompatibilidade absoluta entre excepções peremptórias), a petição de embargos é mesmo inepta;

-- As causas de pedir incompatíveis entre si são susceptíveis de ser hierarquizadas em causa de pedir principal e causa(s) de pedir subsidiária(s); o autor deve ser convidado a suprir a deficiência do seu articulado (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, CPC), sob pena de o tribunal só poder considerar a primeira das causas de pedir alegadas,

c) Esta solução vale para a petição inicial de qualquer acção. A ineptidão por contradição de causas de pedir só pode ocorrer quando estas não sejam susceptíveis de ser hierarquizadas em causa de pedir principal e causa(s) de pedir subsidiária(s).

MTS


25/07/2020

Bibliografia (928)


-- Florence George / Emilie Vanstechelman, La réforme du droit de la preuve (Wolters Kluwer (BE): 2020)


-- Marc Dietrich, Die situative Anwendung von Art. 17 Brüssel Ia-VO und Art. 6 Rom I-VO / Eine Untersuchung des kollisions- und zuständigkeitsrechtlichen Verbraucherschutzes unter Berücksichtigung US-amerikanischer Grundsätze (Mohr: Tübingen 2020)

-- Roman Kaiser, Das Mehrheitsprinzip in der Judikative (Mohr: Tübingen 2020)


Jurisprudência constitucional (180)


Litigantes em massa;
taxa de justiça; agravação

TC 13/7/2020 (391/2020) decidiu:

Não julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 530.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, artigo 13.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril, e respetiva Tabela II - B, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 13 de fevereiro, que prevê uma agravação da taxa de justiça nas ações propostas por sociedades comerciais que tenham dado entrada em qualquer tribunal, no ano anterior, a 200 ou mais ações, procedimentos ou execuções [...].

 

24/07/2020

Jurisprudência 2020 (38)


Nulidade da sentença; condenação em quantia superior;
declarações de parte; apreciação*


I. O sumário de RC 11/2/2020 (286/17.1T8GVA.C1) é o seguinte:

1.- Tendo os AA dúvida quanto ao apuramento quantitativo, já possível, do dano indemnizatório verificado, tinham dois caminhos processuais a seguir: ou deduziam pedido genérico/ilíquido, nos termos conjugados dos arts. 556º, nº 2, b), 2ª parte, do NCPC (o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o art. 569º do CC) e 569º, 1ª parte, do CC (quem exija a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos); ou, então, tendo pedido quantitativo determinado reclamavam posteriormente quantia mais elevada face à revelação de dano superior, perante o relatório pericial efectuado nos autos que avaliou os trabalhos de empreitada do R. em valor inferior ao que os AA tinham inicialmente estimado, nos termos do referido art. 569º, 2ª parte, do CC (nem o facto de ter pedido determinado quantitativo impede o demandante, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos).

2.- Tendo os AA formulado o pedido de pagamento pelo R. de, pelo menos, 3.350 €, a utilização da expressão “pelo menos” (ou de outra semelhante como “no mínimo”) não retira ao pedido formulado a sua natureza de pedido específico, ao invés de genérico, e portanto a proibição de ultrapassagem desse quantitativo limite.

3.- Tendo a sentença condenado o R, a pagar aos AA o montante de 4.150 € a mesma é parcialmente nula, nos termos do art. 615º, nº 1, e), do NCPC, na parcela que excedeu o peticionado.

4.- A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal (art. 466º, nº 3, do NCPC), e a Relação, na apreciação da impugnação da matéria de facto, age sobre o império do princípio da livre apreciação da prova, tal como a 1ª instância (ao abrigo do art. 607º, nº 5, 1ª parte, ex vi do art. 663º, nº 2, do NCPC);

5.- Se as declarações de parte não têm suficiente lastro probatório noutros meios de prova gerando sérias dúvidas sobre a realidade dos factos, então tal dúvida volve-se contra os AA, a parte a quem o facto aproveitava.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. Defende o R. que a sentença é nula, por violação do art. 615º, nº 1, e), do NCPC, por condenação em quantidade superior ao pedido (cfr. 10) e 11) das conclusões de recurso).

Os AA tinham formulado o pedido de pagamento pelo R. de, pelo menos, 3.350 €, de acordo com os factos por eles alegados: entregaram 5.450 € para os trabalhos contratados ao R., no entanto o réu apenas executou parte deles, no valor estimado de 2.100 €, pelo que pedem a condenação na diferença, os apontados 3.350 €. A utilização da expressão “pelo menos” ou de outra semelhante como “no mínimo” não retira ao pedido formulado a sua natureza de pedido específico, e portanto o seu quantitativo limite.

Os AA, para tornear a sua eventual dúvida quanto ao apuramento quantitativo, já possível, do dano indemnizatório verificado, tinham dois caminhos: ou deduziam pedido genérico/ilíquido, nos termos conjugados dos arts. 556º, nº 2, b), 2ª parte, do NCPC (o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o art. 569º do CC) e 569º, 1ª parte, do CC (quem exija a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos); ou então tendo pedido quantitativo determinado reclamavam posteriormente quantia mais elevada face à revelação de dano superior, perante o relatório pericial efectuado nos autos que avaliou os trabalhos do R. em valor ao que os AA tinham inicialmente estimado, nos termos do referido art. 569º, 2ª parte, do CC (nem o facto de ter pedido determinado quantitativo impede o demandante, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos) – vide neste sentido L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 2ª, 2ª Ed., nota 4. ao art. 471º do anterior CPC = ao actual art. 556º, pág. 266.

Porém, não usaram nenhum desses dois alternativos caminhos processuais, sendo evidente, em consequência, que se ativeram a um pedido específico/líquido, limitado a um determinado quantitativo. Ora, a ultrapassagem desse montante na condenação levada a cabo na sentença recorrida torna, por isso, parcialmente nula tal sentença, na parte excedente ao peticionado valor de 3.350 €, não podendo o R. ser condenado no montante em que o foi (4.150 €).

Procede, pois, a arguição de nulidade deduzida pelo recorrente."

*III. [Comentário] a) O acórdão da RC decidiu bem a questão da nulidade da sentença recorrida e admite-se que tenha decidido igualmente bem a apreciação da prova por declarações da parte.

b) Quanto a este aspecto, aproveita-se para salientar que a prova por declarações de parte deve ser avaliada sem qualquer parti pris. "Com especial cautela e cuidado", com certeza. Mas há alguma prova que deva ser apreciada sem especial cautela e cuidado ou apenas com uma cautela e um cuidado gerais?

Acresce que não deixa de ser um preconceito entender que, "se as declarações de parte não têm suficiente lastro probatório noutros meios de prova" (tal como se refere no "sumário elaborado pelo Relator"), então devem ser apreciadas contra o declarante. É preciso não esquecer que, à partida, não se pode excluir que a prova por declarações de parte possa servir precisamente para impugnar uma outra prova (nomeadamente, as declarações de parte realizadas pela parte contrária).

Alguma jurisprudência vem assumido uma posição de desqualificação da prova por declarações de parte que, exactamente com os mesmos argumentos, poderia ser estendida a outros meios de prova (como, por exemplo, a prova testemunhal, dado que, como se sabe, as testemunhas são indicadas pela parte interessada no seu depoimento). Ou será que a prova testemunhal só merece ser considerada quando não confirmar as alegações da parte que a indicou? E não é que, perante dois depoimentos testemunhais contraditórios, a solução é a acareação (art. 523.º CPC), e não a desqualificação, à partida, de um deles?

Em conclusão: avaliação da prova por declarações de parte segundo a "prudente convicção" (art. 607.º, n.º 5, CPC), certamente; tudo o que se acrescente a esta feliz expressão legal é totalmente desnecessário.
  
MTS


Bibliografia (Índices de revistas) (170)



RDIPP




23/07/2020

Jurisprudência 2020 (37)


Execução; habilitação;
insolvência*


1. O sumário de RC 18/2/2020 (2746/14.7TBLRA.C1) é o seguinte:


I- Numa execução em que falecendo o executando se procede a habilitação dos sucessores da parte falecida, para com eles prosseguirem os termos da demanda, se um dos habilitados se encontrar declarado insolvente em processo de insolvência a correr os seus termos, tal circunstância não determina a suspensão, por esse motivo, da execução.

II- Não sendo, nem passando a ser com a habilitação, os habilitados os executados, nem respondendo directamente os seus bens pela dívida exequenda, não são aplicáveis as disposições dos arts. 88º do CIRE que determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente, obstando ao prosseguimento da execução, que tem como pressuposto que seja o insolvente o executado o que no caso em decisão não ocorre.

III- Como a execução contra o executado falecido na sua pendência não se pode desdobrar em duas instâncias de cobrança do crédito exequendo, uma (a insolvência) para o habilitado insolvente, e outra para os restantes habilitados (a execução que prosseguiria contra eles), admitir-se que a execução deveria sustar-se nos termos do art. 88º do CIRE teria como significado aceitar que a própria execução teria de terminar e todo o crédito ser reclamado na insolvência, não já contra o património do executado mas sim contra o habilitado.

IV- A eventualidade de ser necessário realizar as operações de partilha para que possa proceder-se à cobrança do crédito exequendo no património do executado falecido, a determinar a suspensão da instância, reporta a um momento e um fundamento diverso daquele que ora se discute e que é apenas o de saber se a circunstância de um sucessor do executado falecido, por se encontrar declarado insolvente, determina ipso facto que a execução seja declarada suspensa e se transfira o crédito exequendo (no todo ou em parte) para a insolvência.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"[...] o objecto do recurso suscita como única questão a de saber se numa execução, falecendo o executado e tendo sido habilitado, entre outros, um herdeiro que se encontra declarado insolvente, a execução se deve suspender e ser reclamado o crédito exequendo pelo exequente na insolvência ou se a execução deve prosseguir os seus termos. [...]

O incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual para operar a modificação subjectiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respectivos sucessores na relação substantiva em litígio (artigo 262.º do Código de Processo Civil).

Trata-se, portanto, de uma excepção ao princípio da estabilidade da instância caracterizada pelo falecimento da parte e transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva e tem como requisitos o falecimento de uma parte na acção e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respectivo óbito. Os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e por isso têm interesse em ocupar a posição de parte.

A decisão de habilitação na execução tem, pois, por efeito e alcance o fazer prosseguir a acção executiva, colocando na posição do Executado os habilitados, porquanto o processo se não extingue por perda de utilidade ou por extinção do seu objecto,[,,,] garantindo (a habilitação) o prosseguimento de uma instância que se suspendeu ope legis (artigo 276º, nº 1, a) do CPC) e só reinicia a sua marcha “[…] quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida […]” (artigo 284º, nº 1, alínea a) do CPC)[ É neste sentido que a habilitação é qualificada nestes casos de obrigatória (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 5ª ed., Coimbra, 2008, p. 244).], tudo isto, enfim, no quadro geral da efectivação do direito de acção, aqui materializado na tutela executiva conferida ao credor.

É neste sentido, como indica Salvador da Costa, fraseando a definição de Castro Mendes, que a habilitação corresponde “[…] fundamentalmente, [à] prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade de um direito ou complexo de situações jurídicas, independentemente da sua existência efectiva”[Incidentes…, cit., p. 243, cfr. “Obras completas do Professor Doutor João de Castro Mendes”, Direito Processual Civil, Vol. II, Lisboa, 1987, p. 294.].

Assim, atento o alcance sinalizado da habilitação, essa decisão nada disciplina ou dispõe, por se tratar de matéria totalmente fora do respectivo objecto, sobre que bens respondem pela dívida do Executado ou em que circunstâncias se efectuará a responsabilidade dos herdeiros por essa dívida [...], tal como não dispõe sobre quais os bens que podem – agora numa execução que prossegue contra os herdeiros – ser penhorados.

Satisfazendo os imperativos antes sublinhados, de fazer prosseguir a acção executiva suspensa por óbito do executado, com a habilitação fica preenchida essa necessidade mas não se procede à substituição processual do executado por um outro e isto porque, nos termos do art. 2031 do CCivil, a sucessão se abre com a morte do seu autor, mas essa circunstância não confere aos sucessores, até à partilha, (tenham ou não já aceite a herança) mais que o direito a uma quota ideal.

A herança é uma universalidade jurídica de bens, pelo que, cada interessado, não tem uma quota-parte em cada um de todos esses bens mas sim uma quota referida àquela universalidade, ao conjunto de todos os bens, só pela partilha se determinando aqueles em que se concretiza a quota-parte ou quinhão de cada interessado. Até à partilha, essa quota ideal traduz-se, em termos processuais, num direito de acção e herança, de onde resulta que, na insolvência, apenas o quinhão hereditário do insolvente numa herança indivisa pode ser apreendido como activo enquanto não se efectivar a partilha, não se realizando qualquer trânsito dos bens da herança para a insolvência de forma a provocarem o fim da execução. É que, como parece ficar esclarecido, não só o insolvente habilitado não era nem passou a ser executado como, também, não são os seus bens (do habilitado) que respondem pela dívida do executado [...].

Neste particular radica a questão em litígio no recurso. Enquanto o recorrente entende que por um dos habilitados ter sido declarado insolvente a execução não terá de ser suspensa nem o crédito exequendo ser reclamado no processo de insolvência, a decisão recorrida e o recorrido defendem que, precisamente por um dos habilitados do executado ser insolvente a execução deve ser sustada nos termos do art. 793 do CPC e art. 88 nº 4 do CIRE, e que os valores suportados pelo exequente com a presente execução sejam dívidas da massa insolvente (nº 3 dos artigos 140º e 51º do CIRE), e devam ser por aquele reclamados junto do processo.

Analisando estes argumentos, o que o art. 793 do CPC prevê é a suspensão da execução por declarada insolvência do executado e, uma vez mais o repetimos, no caso em decisão, não foi o executado quem foi declarado insolvente mas sim um habilitado que não tem, nem ganha, com a habilitação, a qualidade de executado. Por outro lado, o art. 88 do CIRE disciplina o efeito da declaração de insolvência nas acções, mas naquelas em que seja executado o próprio insolvente e, só quando tal aconteça, a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.

Uma vez mais o argumento decisivo continua a ser o de nenhum dos habilitados ser ou ter passado a ser o executado e, como assim, não haver fundamento para que, quanto a qualquer deles, a execução se suste e não prossiga.

A interacção que existe, no caso em decisão, entre a execução e a insolvência faz concluir que, efectivamente, o habilitado insolvente não pode dispor da quota ideal (do direito de acção e herança) de que seja titular e, depois da partilha, não poderá dispor dos bens que eventualmente lhe venham a caber na sucessão do executado e é isso que se pode retirar do art. 149 e 46 nº1 do CIRE que estão dirigidos à dimensão patrimonial activa do insolvente, ou seja, disciplinam a indisponibilidade do insolvente sobre os seu património entendido este como todo aquele que possua à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que adquira. Porém, se este sentido securitário de indisponibilidade está conjugado com a finalidade do processo de insolvência que visa apurar e fixar o activo do devedor e o seu passivo, de forma a decidir a forma e a medida em que os seus bens podem responder pelas suas dívidas, concluímos que só as dívidas do próprio insolvente possam ser reclamadas na insolvência (e não as daquele de quem ele seja herdeiro). Da mesma forma que a liquidação das dívidas do insolvente, na medida em que venha a ser possível, se fará no processo de insolvência, porque só por essas ele é responsável, também a dívida de que o executado de quem o insolvente é herdeiro/habilitado, só no processo de execução se realiza e só pelas forças dos bens deste pode ser cobrada.

Se depois da habilitação, quem representa o insolvente é o administrador e se aceitamos que o que pode ser apreendido para a insolvência é o direito de acção e herança correspondente a uma quota ideal e não nenhum bem em concreto, a verdade é que se declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente art. 81 do CIRE), estando os bens que integram o património a partilhar incluídos numa herança por partilhar, é o respectivo administrador quem terá legitimidade para diligenciar pela partilha.

Mas este poder a quota ideal que o herdeiro declarado insolvente tenha na herança ser apreendida para massa insolvente não implica nem traduz em consequência que a execução tenha, mais que se sustar, de terminar relativamente ao habilitado insolvente. Veja-se que, tendo sido solicitado e decidido nos autos executivos que os mesmos fossem suspensos em virtude de um dos habilitados ter sido declarado insolvente, nada se referiu quanto à situação em que ficaria a execução quanto aos restantes habilitados. [...]

Renovando com maior clareza o que dissemos, o que tem de advertir-se como central à decisão a proferir é que o sucessor insolvente habilitado não é devedor do exequente e, a entender-se doutro modo, resultaria paradoxal ter de concluir que quando o executado morresse e tivesse vários herdeiros que houvessem sido habilitados na execução, bastaria que um deles fosse declarado insolvente para que a execução tivesse de cessar. E a pretender argumentar-se que, afinal, a execução continuaria apenas contra os sucessores habilitados não insolventes mas, nesse caso, seria impositivo questionar como é que uma dívida, de uma única pessoa (o executado falecido) e pela qual respondem apenas os bens de uma única pessoa (os bens da herança do executado falecido), podia ser desmembrada por dois processos distintos (o de execução e insolvência) contra a evidência legal de, até à partilha, nenhum direito que não o de uma quota ideal, os herdeiros têm sobre os bens concretos.

Estas observações normativas servem apenas para sublinhar a falta de fundamento legal para que se tenha decidido a suspensão da execução e remetido os termos da cobrança da quantia exequenda para a insolvência do habilitado.

Acresce que questão distinta da de saber se a execução deve suspender-se por um dos habilitados do executado se encontrar declarado insolvente, e que já nos mereceu resposta negativa, é a de decidir como é que, na execução, o exequente poderá obter a satisfação do seu crédito quando o executado faleceu, a sucessão se abriu e ainda não se encontram realizadas as pastilhas. Mas a resposta a dar a essa matéria, nomeadamente se será de, por essa outra razão, vir a suspender os termos da execução até a partilha, não cabe neste momento decisório nem no objecto do recurso, no qual a única questão suscitada é a de decidir se a circunstância de, tendo falecido o executado numa execução, se for habilitado como herdeiro para prosseguir na execução alguém que tenha sido declarado insolvente, determina, por esse motivo, a suspensão da execução (bem melhor seria dito o término pois é disso que se trata) e, a essa questão, a resposta é negativa."

*3. [Comentário] a) O acórdão da RC só é aceitável cum granum salis. Não é correcto dizer que os habilitados numa execução por falecimento do executado não são eles próprios executados. Como é claro, o executado falecido não continua executado e não é concebível uma execução sem executado.

O que sucede é que, apesar da habilitação dos herdeiros do executado, a execução só pode recair sobre os bens do executado inicial (art. 744.º, n.º 1, CPC). Mais em concreto: se na execução pendente já se tinha procedido à penhora de bens, a circunstância de se ter verificado depois disso a habilitação dos herdeiros do executado em nada altera essa penhora.

b) Sendo assim, não se aplica o disposto no art. 88.º, n.º 1, CIRE, pela simples razão de que, atendendo à diferenciação patrimonial entre bens da herança (que respondem na execução pendente) e bens do executado insolvente (que respondem na insolvência, também pendente segundo se julga), aqueles bens não integram a massa insolvente deste executado.

MTS

Jurisprudência constitucional (179)


Medidas de promoção e protecção;
confiança com vista à adopção; recurso


TC 10/1/2020 (362/2020) decidiu:

[...] não julg[ar] inconstitucional a norma contida no artigo 100.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, em conjugação com o artigo 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão do Tribunal da Relação que decida, em segunda instância, sobre a aplicação de uma medida de confiança com vista à adoção.


Bibliografia (927)


-- Marco di Cristofaro / Monica Pilloni (Eds.), Recenti prospettive in tema di processo esecutivo / Atti del convegno tenutosi a Padova il 24 ottobre 2019 (Giappichelli: Torino 2020)



22/07/2020

Jurisprudência 2020 (36)


Articulado superveniente;
modificação do pedido*


I. O sumário de RL 18/2/2020 (37/19.6TNLSB-A.L1-7)  o seguinte:

1)– A ampliação do pedido, mesmo contra a vontade da parte contrária, é processualmente admissível se for consequência ou desenvolvimento do pedido primitivo (Art. 265.º n.º 2 do C.P.C.).

2)– Compreendendo-se a ampliação virtualmente na mesma causa de pedir invocada, aquela não deixa de ser admissível ainda que o valor resultante da ampliação já pudesse ter sido reclamado logo na petição inicial.

3)– Estando em causa a compatibilização do princípio da estabilidade da instância com o princípio da economia processual, dá-se prevalência a este último quando se verificam reais vantagens na solução definitiva do conflito num único processo, desde que a relação material controvertida seja essencialmente a mesma, assente na mesma causa de pedir.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O que está em causa nestes autos é, fundamentalmente, saber se era admissível a ampliação do pedido nos termos requeridos pelos A.A. em requerimento autónomo apresentado em data anterior àquela para que estava designada a realização da audiência prévia.

Esta pretensão deve ser devidamente enquadrada nos termos da ação, tal como ela foi conformada desde o início pelos A.A. e em função da fase processual em que foi requerida.

Os A.A. instauraram a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, pretendendo exercer o direito a indemnização emergente de responsabilidade contratual, alegando ter celebrado com a R., em setembro de 2016, um contrato de empreitada que tinha por objeto a reparação da embarcação do A..

Em termos muito sucintos, as reparações foram mais demoradas que o previsto e quando a embarcação foi colocada na água verificaram-se infiltrações no barco que obrigaram a que o mesmo tivesse sido colocado de imediato a seco.

Na sequência desses factos, ocorridos em 8 de setembro de 2017, veio a ser feito um novo orçamento para verificar as reparações necessárias, o qual ascendeu ao valor global de €9.995,96, que a R. recusou suportar, mesmo depois de interpelada para o efeito por carta de 6/10/2017.

Assim, em face da recusa da R. em proceder às reparações, o A. decidiu proceder às mesmas a expensas suas, através da sociedade Tecnimarine, com vista a impedir o avolumar das despesas com a embarcação (v.g. artigo 56.º da petição inicial). Sendo que desde 8/9/2017 (data do acidente), a embarcação não está em condições de navegar (artigo 57.º da petição inicial) e o A. teve de suportar os custos de estacionamento na marina (artigo 58.º da petição), os quais desde 8/9/2017 até junho de 2018 ascenderam ao valor de €11.581,94 (v.g. artigos 59.º e 72.º do mesmo articulado). Entretanto, esclareceu que já contratou a Tecnimarine (artigo 63.º) e já pagou as reparações feitas na sua embarcação (artigo 64.º).

É nestes pressupostos que os A.A. formulam o pedido de pagamento, constante da alínea a) da petição inicial, no valor de €11.581,94 «correspondente ao valor despendido pelos Autores com o estacionamento da embarcação na Marina de Cascais após o acidente e até julho de 2018».

Este pedido, tal como objetivamente formulado, é efetivamente mais curto que a alegação constante da petição inicial, que no seu artigo 74.º já fazia menção a que a R. fosse condenada a ressarcir o A. do valor já despendido «e, bem assim, no valor que o Autor ainda tenha que despender a esse título até que as reparações estejam terminadas».

É no requerimento de ampliação do pedido, datado de 5 de julho de 2019, é que os A.A. vêm alegar que: «desde julho de 2018 até à presente data, em que já se mostram concluídas as reparações, o Autor despendeu ainda €8.165,56 (…) correspondente ao somatório dos custos mensais com o estacionamento da embarcação na Marina de Cascais, conforme faturas que se juntam (…)». [...]

A R. deduziu oposição à ampliação do pedido, pelo Requerimento de 11 de julho de 2019, não só não aceitando a ampliação, como ainda sustentando logo que o novo pedido não era consequência ou desenvolvimento do pedido primitivo dos autores.

Foi na audiência prévia, realizada posteriormente, que a ampliação do pedido foi admitida, mas a R. recorre dessa decisão considerando fundamentalmente só por incúria dos A.A. é que estes não formularam logo o pedido de reembolso do parqueamento do barco na marina desde a data do acidente até à data da reparação, realçando que as faturas ora reclamadas têm todas data anterior à data da propositura da ação.

Por contraposição, os A.A., aqui recorridos, sustentam que a ampliação do pedido está compreendida na previsão do Art. 265.º n.º 2 “in fine” do C.P.C., por ser um desenvolvimento do pedido primitivo e aí se consagrar uma exceção ao princípio da estabilidade da instância.

Apreciando, temos de relembrar que, nos termos do Art. 552.º n.º 1 al. d) do C.P.C., é na petição inicial que devem ser expostos os factos que constituem a causa de pedir que servem de fundamento à ação. Acresce que, uma vez citada a R., a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e causa de pedir, salvo os casos excecionais de modificação consignadas na lei (Art. 260.º do C.P.C.). [...]

No caso, o requerimento dos A.A. visava uma ampliação parcial de um dos pedidos formulados na petição inicial, sem implicar qualquer alteração dos pressupostos de facto de onde emergia a pretensão tal como ela era inicialmente formulada. Na verdade, os A.A. não pretenderam operar qualquer alteração na causa de pedir, que continuou a reportar-se aos valores por si despendidos com o parqueamento da sua embarcação até à data da sua reparação.

O Art. 264.º do C.P.C. admite que o pedido possa ser alterado com o acordo das partes em qualquer altura do processado, desde que tal não perturbe inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito.

Sucede que o requerimento dos A.A. mereceu a oposição da R.. Pelo que, a admissibilidade da ampliação do pedido ficou subordinada à previsão do Art. 265.º do C.P.C.. [...]

A questão está assim em saber se o pedido novo é “consequência” ou “desenvolvimento” do pedido primitivo.

Neste contexto, Alberto dos Reis (in “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, pág. 93) ensinava que: «a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial» (no mesmo sentido: Ac. TRL de19/5/1994 – Relator: Rodrigues Condeço, Proc. n.º 0070956; Ac. TRL de 25/6/1996 – Relator: Guilherme Pires – Proc. n.º 0012701; e Ac. TRL de18/1/2011 – Relator: Manuel Marques – Proc. n.º 271/09.7TBCDV-A. L1-1. – Todos disponíveis em www.dgsi.pt). E exemplificava como caso de ampliação em “consequência do pedido primitivo” a situação em que o A. pedia a restituição de um imóvel, vindo depois a pedir uma indemnização pelo esbulho desse mesmo prédio. E, como exemplo de ampliação por “desenvolvimento do pedido primitivo”, indicava o caso do A. que havia pedido a condenação do R. no pagamento duma dívida e depois vinha a pedir a condenação no pagamento de juros de mora.

Na mesma linha de raciocínio o Supremo Tribunal de Justiça admitiu a ampliação de pedido numa ação de indemnização por incumprimento de contrato de transporte, em que por ampliação se passou a pedir também a condenação em juros de mora (Ac. STJ de 25/3/1980 – Relator: Ferreira Costa, Proc. n.º 068370). Aplicando a mesma regra, ver também o Ac. STJ de 10/12/2015 (Relator: Hélder Roque, Revista n.º 220/11.2TVLSB.L1.S1 – 1.ª Secção – disponível em sumários do Supremo Tribunal de Justiça).

O mesmo tribunal também admitiu a ampliação num caso em que o A. pediu que fosse considerada a sua pretensão em função do regime do enriquecimento sem causa, caso viesse a ser julgada por procedente a exceção de prescrição ao seu pedido primitivo (Ac. STJ de 17/10/2017 – Revista n.º 745/11.0T2AVR.P2.S1 – 1.ª Secção – Relatora: Maria de Fátima Gomes – sumários).

Já o Tribunal da Relação de Lisboa admitiu a ampliação numa ação em que se pedia a condenação do R. no pagamento da 1.ª e 2.ª prestação vencida num contrato, passando depois a pedir-se o pagamento da 3.ª prestação da dívida entretanto vencida (Ac. TRL de 11/7/2002 – Relator: Santana Guapo – Proc. n.º 004371). Ou ainda numa ação em que se reivindicava um prédio e se passou a pedir também o reconhecimento do direito de propriedade sobre uma arrecadação existente no subsolo do mesmo imóvel (Ac. TRL de 1/3/2001 – Relator: Urbano Dias, proc. n.º 0018846).

Em todos estes exemplos estamos perante situações em que, na verdade, o A. poderia ter formulado a sua pretensão ampliada logo na petição inicial. Pelo que, o que relevou foi fundamentalmente o princípio da economia processual, no sentido do máximo aproveitamento do processo para a solução definitiva do concreto litígio que opõe as partes, desde que não se pusesse em causa um mínimo de estabilidade na relação jurídica processual em que assenta o conflito e que motiva a concreta reclamação da tutela jurisdicional.

Esse limite mínimo de estabilidade era tradicionalmente reportado pela doutrina à distinção entre “ampliação” e “cumulação” de pretensões.

A este propósito ensinava Alberto dos Reis (in Ob. Loc. Cit., pág. 94) que: «para se distinguir nitidamente a espécie “cumulação” da espécie “ampliação” há que relacionar o pedido com a causa de pedir. A ampliação pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão primitiva se modifica para mais; a cumulação dá-se quando a um pedido, fundado em determinado ato ou facto, se junta outro, fundado em ato ou facto diverso.». E exemplifica com um caso duma ação em que se pedia a anulação de duas escrituras de doação por simulação e depois se vem a pedir a anulação duma terceira escritura de doação com o mesmo fundamento. Nesse caso, conclui esse insigne processualista, que: «o Autor não se mantém no mesmo ato ou facto jurídico, formula um pedido com individualidade e autonomia perfeitamente diferenciada dos pedidos primitivos».

É por isso que, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/3/2009 (Relatora: Rosário Gonçalves – Proc. n.º 427/07.7TCSNT.L1-1, disponível em www.dgsi.pt), a ampliação do pedido pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão se modifique para mais, só assim não sendo quando a ampliação se materializa num novo pedido, não formulado, que alteraria a estrutura da ação (no mesmo sentido: Ac. TRL de 25/6/1996 – Relator: Guilherme Pires – Proc. n.º 0012701).

Noutro acórdão desta mesma Relação (Ac. TRL de 5/7/2018 – Relator: Arlindo Crua – Proc. n.º 1175/13.4T2SNT.B.L1-2) também se sustentou que se os factos invocados na ampliação se traduzirem em meros factos complementares duma causa de pedir complexa já alegada na petição inicial, como sejam a concretização de um dano já alegado, é processualmente admissível a ampliação do pedido, sem necessidade do consentimento da parte contrária.

De igual modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/10/2019 (Relatora: Cristina Dá Mesquita – Proc. n.º 38/18.1T8VRL-A.E1.) se admitiu a ampliação do pedido que tenha essencialmente causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelos menos integradas no mesmo complexo de factos.

Na mesma linha já se sustentou que a ampliação do pedido é admissível, como consequência ou desenvolvimento do pedido primitivo, nos casos em que, podendo não estar configurado um “novo prejuízo”, ocorre, todavia, uma circunstância superveniente ou a consolidação de um aspeto já focado nos danos alegados “ab initio”, justificativos, num caso ou noutro, da reavaliação apurada (Ac. TRC de 27/11/2001 – Relator: Nuno Cameira – Proc. n.º 2688/01 – também disponível em www.dgsi.pt).

É também esse o sentido do acórdão do STJ de 19-06-2019, citado nas contra-alegações de recurso (Revista n.º 22392/16.0T8PRT.P1.S1 - 7.ª Secção – Relator: Oliveira Abreu – disponível em sumários do Supremo), do qual se destacam os seguintes segmentos do sumário:

«II- Decorre do direito adjetivo civil, que a ampliação do pedido não se confunde com um articulado superveniente, seja a título formal, seja a título substantivo, atenta a exigência decorrente da unidade do sistema jurídico e tendo em devida conta os preceitos legais atinentes. Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis.

«III- São razões de estabilidade da instância e de regular tramitação processual, que determinam que a alegação superveniente, quer de factos essenciais, quer complementares, esteja sujeita a momentos específicos preclusivos.

«IV- Estando no âmbito de uma ação declarativa de indemnização por responsabilidade civil, em razão de acidente de viação sofrido pelo demandante, cuja causa de pedir é complexa, temos de convir que não é qualquer alteração dos factos alegados que importa uma modificação da respetiva causa de pedir da ação, pois, ao ter-se alegado factos concretos no articulado inicial com vista a demonstrar os danos causados pelo ato ilícito, cuja indemnização se reclama, temos a causa de pedir como definida, não se alterando, de todo, se o demandante se limita, em momento posterior aos articulados, e até à audiência final, acrescentar novos danos, reconhecendo-se, claramente, estes novos factos, enquanto factos destinados apenas a concretizar os danos decorrentes do facto ilícito, como factos que complementam os factos jurídicos donde emerge a pretensão jurídica deduzida, como factos que acrescentam outras dimensões do dano decorrente do ato ilícito que serve de fundamento à ação, sem que se possa afirmar, por isso, que a demanda passa a ter uma dissemelhante causa de pedir ou passa a estar sustentada em fundamento que antes não possuía.

«V- Não tendo o autor, alegado novos factos fundamentais que sustentem uma alteração da causa de pedir que alicerce a modificação do pedido (limitando-se a acrescentar novos danos, sustentados em novos factos, enquanto factos destinados apenas a concretizar os danos decorrentes do facto ilícito, no âmbito desta ação de indemnização por responsabilidade civil, factos que complementam os factos jurídicos donde emerge a pretensão jurídica deduzida, factos que adicionam outras dimensões do dano decorrente do ato ilícito que serve de fundamento à ação), impõe que se reconheça, não fazer sentido, enquadrar a pedida ampliação do pedido, no regime adjetivo atinente aos articulados supervenientes, e muito menos, aplicar ao caso, os preceitos adjetivos civis que estatuem sobre os momentos em que o novo articulado deve ser oferecido.

«VI- Os factos complementares invocados ao não provocarem convolação para relação jurídica diversa da controvertida, mantendo a relação com o pedido formulado na petição inicial apresentada e com a originária causa petendi, encerrando a ampliação do pedido o desenvolvimento do pedido primitivo, pode, por isso, ser deduzidos até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, ao abrigo do estabelecido no n.º 2 do art. 265.º do CPC, não fazendo sentido, postergar esta prerrogativa, com a preclusão consignada no art. 588.º, n.º 3, do CPC, a aplicar tão só, quando está em causa a alegação de factos essenciais.»

No entanto, temos de apontar que o Tribunal da Relação de Évora tem vindo recentemente a sustentar que não é admissível a ampliação do pedido decorrente de mero esquecimento de formulação do pedido logo na petição inicial, altura em que o A. já saberia da existência das circunstâncias nas quais baseia a ampliação (vide: Ac. TRE de 11/10/2012 – Relator: Canelas Brás, Proc. n.º 1691/11-2; e Ac. TRE de 28/6/2017 – Relator: Manuel Bargado, Proc. n.º 87/08.2TBBNV.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Entendimento este que é diretamente contrariado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3/5/2011 (Relatora: Helena Melo, Proc. n.º 1150/08.0TBVCT-A.G1), também citado nas contra-alegações de recurso, do qual resulta que a ampliação do pedido é admissível mesmo quando o valor resultante da ampliação já pudesse ter sido reclamado na petição inicial.

Na verdade, como já tivemos oportunidade de realçar, todos os exemplos de ampliação do pedido, que não se sustentem na superveniência objetiva de factos novos em que assentam, traduzem-se em pretensões que poderiam ser formuladas logo na data da propositura da ação. Ora, nunca semelhante dúvida sobre a interpretação do Art. 265.º n.º 2 do C.P.C. assolou o espírito de ninguém, quando se admitia sem pestanejo a ampliação do pedido de pagamento em quantia certa, numa ação de dívida, por forma a passar a compreender também a condenação em juros de mora. É que, neste caso, como é evidente, o novo pedido só não foi formulado logo na petição inicial por “mero esquecimento” da parte peticionante.

Salvaguardadas eventuais situações manifestamente dolosas ou de negligência grave, não se justifica uma interpretação restritiva do Art. 265.º n.º 2 do C.P.C. apenas para sancionar uma parte, dado não existir nenhum princípio geral que justifique semelhante penalização em face do facto de o mencionado preceito fixar a preclusão do direito de ampliação do pedido no momento do «encerramento da discussão em 1.ª instância».

Como já referimos atrás, o que está em causa é a consonância do princípio da estabilidade da instância com o princípio da economia processual, dando-se prevalência a este último na estrita medida em que se verificam reais vantagens na solução definitiva num único processo do conflito existentes entre as mesmas partes, desde que a relação controvertida seja essencialmente a mesma, assente virtualmente na mesma causa de pedir. Sendo que, no caso, a ampliação do pedido compreende-se claramente na previsão do Art. 265.º n.º 2 do C.P.C., por ser o desenvolvimento do pedido primitivo.

Acresce que não estamos perante um suscitar de qualquer situação de facto nova, que tenha sido propositadamente ocultada e que represente uma verdadeira surpresa, completamente inesperada para a R. e relativamente à qual não pudesse legitimamente estar a contar. Aliás, no caso concreto, a R. limitou-se a repetir quanto a este pedido ampliado a mesma defesa que já anteriormente havia apresentado.

Pelas razões expostas, julgamos que improcedem as conclusões que sustentam entendimento diverso, devendo o presente recurso ser julgado por improcedente, confirmando-se inteiramente a decisão recorrida.

*3. [Comentário] A RL tem razão ao defender que o desenvolvimento do pedido inicial a que se refere o art. 265.º, n.º 2, CPC não tem de ser algo que não pudesse ter sido logo pedido na petição inicial.

É precisamente por isso que não se justifica aplicar o preceito quando -- como sucede no caso concreto -- o autor alega factos supervenientes e, em função deles, aumenta o valor do pedido inicial. A bem dizer, a questão que a RL deveria ter resolvido era apenas a da admissibilidade do articulado superveniente nos termos do art. 588.º, n.º 1 a 4, CPC. Aliás, a própria RL refere várias vezes que o autor apresentou um articulado superveniente, e não um requerimento de alteração do pedido.

Se este articulado -- como tudo indica -- era admissível, então não pode deixar de ser admissível o pedido que nele é formulado.

MTS