"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/04/2021

Jurisprudência 2020 (201)


Prova documental;
princípio da cooperação; dever do juiz


1. O sumário de RL 5/11/2020 (1943/14.0T8SNT-B.L1) é o seguinte:

I - Cumpre ao juiz dirigir activamente o processo e cooperar com as partes e seus mandatários, tendo em vista a justa composição do litígio (art. 6º e 7º do CPC).

II - Assim, como os documentos juntos aos autos não são esclarecedores quanto à cessão do crédito invocada no requerimento de habilitação da cessionária, deveria a 1ª instância ter convidado a requerente a explicar a razão da discrepância entre o valor do crédito reclamado nos autos de execução e o valor em dívida que está indicado no documento por ela junto e bem assim a juntar o documento que comprova a correspondência entre a alegada renumeração do crédito cedido e o número do contrato de mútuo invocado na execução.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"C) Se está demonstrada a alegada cessão de créditos

No seu requerimento inicial a apelada declarou junta 2 documentos, mas não os numerou.

O documento intitulado «Contrato de Cessão de Carteira de Créditos não garantidos» em que são designados como “Cedente” o Banco Santander Totta, SA e como «Cessionário” a EOS Credit Funding DAC, contém 3 anexos.

No ponto 2 desse «Contrato de Cessão de Carteira de Créditos não garantidos» consta, além do mais:

«2.Objeto
2.1 Nos termos do presente Contrato, o Cedente vende e transmite ao Cessionário, que por sua vez compra e adquire, a Carteira de Créditos, (…) como contrapartida pelo pagamento do Preço de Aquisição, adquirindo a titularidade plena dos Créditos bem como todos os Direitos Acessórios dos Créditos que compõem a referida Carteira de Créditos na Data de, nos termos do presente Contrato (…)(…)».

No ponto 10 consta, além do mais:

«10. Notificação da cessão aos devedores e aos colaboradores do Cedente
10.1 De modo a formalizar a notificação da Cessão dos Créditos aos devedores por efeito do presente Contrato, o Cedente e o Cessionário acordam que o cessionário será responsável pelo envio da notificação aos devedores dos Créditos, através de uma carta assinada pelos representantes do Cessionário, de acordo com a minuta indicada no Anexo 3 do presente Contrato e a informação contida no CD-RROM a ser enviada pelo Cedente na Data de Fecho ao Gestor dos Créditos (…)

No ponto 22 consta:

«22.Conteúdos dos Anexos
Este Contrato contém os Anexos abaixo identificados, dos quais apenas os Anexos 2 a 5 deverão ser disponibilizados ao Cessionário, enquanto que ao Cedente e ao Gestor dos Créditos serão disponibilizados todos os Anexos (mas que, para todos os efeitos contratuais, a totalidade dos Anexos serão considerados conhecidos e aceites integralmente pelo Cessionário):
Anexo 1: dados da Carteira de Créditos (CD-ROM);
Anexo 2: Declaração de Conclusão;
Anexo 3: Minuta de Carta de notificação aos Devedores;
Anexo 4: Lista dos Créditos, com exclusão dos dados pessoais dos Devedores;
Anexo 5: Lista dos valores depositados em Tribunal;
Anexo 6: Lista dos Créditos, incluindo dados pessoais dos Devedores». [...]

No Anexo 2 (página 43 do «Contrato» junto aos autos constam apenas estes dizeres num quadro:

«Declaração de Conclusão
Número de créditos cedidos
Montante total em dívida à data de determinação da carteira de créditos
Montantes depositados
Preço de aquisição». [...]
 
O documento 2 é uma folha onde consta:

- como «cliente» «Pinto e Bentes Sa, com o NIF 500217858
- como «Número de Cliente» 5100260719,
- como «ID»: 000601358987096 –000000000000000»,
- e como valor em dívida «307.460».

Vem alegado no requerimento inicial que a designação «000601358987096 –000000000000000» corresponde à renumeração que identifica o contrato cedido e que é o contrato de mútuo com o nº 0380- 044-00107-98.

Porém, dos referidos documentos não é possível encontrar tal correspondência, pois neles não está identificado o contrato de mútuo que está na origem da execução.

Além disso no requerimento executivo é exigido o pagamento de:

«Capital: € 333.333,36
Juros Remuneratórios calculados entre 25-11-2013 e 22-05-2014 €8.765,00
Comissões de Processamento €8,26
Comissões de recuperação de valores em dívida €300,00
Juros mora até 17-07-2014 €4.460,57
Imposto de Selo: € 140,80
Despesas de cobrança: € 6.948,17
TOTAL: € 354.356,72 (trezentos e cinquenta e quatro mil trezentos e cinquenta e seis euros e setenta e dois cêntimos).».
 
Significa que os documentos juntos pela apelada são insuficientes para se concluir, como na sentença recorrida, que estão «provados os factos alegados pela requerente relativos à existência da cessão de créditos através da qual o exequente lhe cedeu os créditos que reclamava na execução a que estes autos se mostram apensos.».

Decorre do art. 356º nº 1 al a) e b) do CPC que o ao requerimento de habilitação do cessionário tem de ser junto o título da cessão e que o juiz tem de verificar se o documento prova a cessão e só no caso afirmativo declara habilitado o cessionário.

Por outro lado, cumpre ao juiz dirigir activamente o processo e cooperar com as partes e seus mandatários, tendo em vista a justa composição do litígio (art. 6º e 7º do CPC).

Assim, como os documentos juntos aos autos não são esclarecedores quanto à invocada cessão do crédito, deveria a 1ª instância ter convidado a requerente a clarificar a razão da discrepância de valores e juntar o documento do qual resulta a correspondência do «ID: 000601358987096 –000000000000000» ao contrato de mútuo invocado na execução.

Por quanto se disse, impõe-se anular a decisão recorrida e ordenar que no tribunal recorrido seja proferido despacho formulando tal convite à apelada."

[MTS]