Processo arbitral;
proibição da indefensa; citação electrónica
1. O sumário de RL 27/10/2020 (2459/19.3YRLSB-7) é o seguinte:
I. Viola o princípio constitucional da proibição de indefesa, consagrado no artigo 20º da Constituição, a citação que não ofereça as garantias mínimas de segurança e fiabilidade e/ou que torne impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de recebimento da citação.
II. É o caso de uma citação feita por correio eletrónico simples provido de assinatura eletrónica simples, no âmbito de processo do CC, dirigida a uma sociedade comercial que vende veículos automóveis.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"À data da prolação da sentença arbitral, encontrava-se em vigor o Regulamento do CC, aplicável a processos entrados após 15 de fevereiro de 2016.
Com relevância para a decisão de mérito, do referido Regulamento constam os seguintes artigos:
Artigo 15º Contestação1. A parte reclamada será simultaneamente citada do teor da reclamação e documentos que a acompanham, bem como para contestar, querendo, por escrito ou oralmente.2. Os demandados com adesão genérica ou os que tenham, entretanto, subscrito compromisso arbitral no âmbito do processo, devem apresentar, querendo, a sua contestação no prazo de 20 dias a contar da notificação prevista no número um deste artigo. (…) [...]
Ora, no caso em apreço, o Tribunal Arbitral procedeu à citação da ora requerente através da remessa de um correio eletrónico simples, remetido alegadamente para o endereço eletrónico da requerente. Tal formalidade poderá ser suficiente para uma notificação na lógica do Regulamento, mas não para uma citação.
Sobre as garantias ínsitas ao ato de citação, é relevante a jurisprudência do Tribunal Constitucional, sintetizada no Acórdão nº 773/2019, de 17.12.2019, nestes termos:
«Do cotejo do teor de outros arestos em que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a matéria aqui em causa (designadamente, os Acórdãos nºs. 287/03, 91/04, 243/05, 104/06, 582/06, 632/06, 182/06 e 376/10) resultam, a propósito do artigo 238.º do Código de Processo Civil - que, no essencial, introduziu no sistema processual civil, a título subsidiário, a regra da citação por via postal simples - dois dados importantes: a modalidade da citação por via postal simples não é, por si só, necessariamente e seja qual for o caso a que se aplique, incompatível com a Constituição; sê-lo-á, contudo, por violação do princípio constitucional da proibição de indefesa, consagrado no seu artigo 20.º, quando não oferecer, desde logo, as garantias mínimas de segurança e fiabilidade e tornar impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de recebimento da citação. (…)Não impondo a Constituição a adoção de qualquer forma específica para tais atos, que cumpre ao legislador escolher, no exercício dos poderes autónomos que marcadamente detém no domínio do processo civil, proíbe claramente soluções que se bastem com uma probabilidade remota ou vaga de conhecimento pelo réu da citação ou impeçam a demonstração por este do seu não conhecimento; a norma que regula a forma de realização do ato de citação deve, pois, dar garantias mínimas de segurança e fiabilidade e não pode tornar impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de recebimento oportuno desse ato, sob pena de incorrer em violação do princípio constitucional da proibição de indefesa, consagrado no seu artigo 20.º.Nesta medida, as exigências garantísticas, enunciadas na acima citada jurisprudência constitucional, aplicáveis ao ato de citação valem, igualmente, para o ato de notificação previsto no artigo 12.º do Anexo do Decreto-Lei n.º 269/98, atento o seu conteúdo e os efeitos cominatórios da não apresentação tempestiva de oposição.Porém, a Constituição, no seu artigo 20.º, não proíbe em absoluto que a lei extraia de determinados factos certos a presunção de que o réu ou requerido tomou ou podia ter tomado conhecimento do ato de citação ou notificação de modo a exercer em tempo o direito de defesa, desde que faça assentar essa presunção em elementos fiáveis e seguros e não vede ou inviabilize na prática a possibilidade de demonstração do contrário.Na verdade, a citação ou notificação por via postal simples não garantem com absoluta certeza que o réu ou requerido efetivamente tomou conhecimento do ato de citação ou notificação transmitido desse modo; apenas permitindo concluir, verificado o primeiro daqueles pressupostos, que o réu ou requerido provavelmente a recebeu ou que, atuando com a diligência de um bom pai de família, a podia ter recebido. Ora, no domínio do direito privado, em particular no direito das obrigações, onde impera o princípio da autonomia da vontade e da igualdade das partes e se discutem créditos de natureza essencialmente patrimonial – valores substantivos que se projetam na própria estruturação do processo civil (artigos 3.º e 4.º do CPC) – não se afigura em abstrato censurável a adoção de um sistema de citação ou notificação assente na presunção de conhecimento ou, mesmo, na presunção de cognoscibilidade do ato de citação ou notificação. Ponto é que o sistema concretamente instituído ofereça, desde logo, garantias de fiabilidade e segurança e não torne impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de conhecimento em que assenta.Como ensina Alberto dos Reis, «importa sobremaneira que a citação seja um acto sério e eficiente, isto é, que ao réu seja dado conhecimento da existência do pleito e colocado em condições de se defender; mas importa igualmente que seja um acto, quanto possível, rápido, isto é, que sejam postos à disposição do tribunal meios suficientes para obstar a que o réu procure fugir à acção da justiça, furtando-se sucessivamente à diligência da citação» (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2.º, p. 617). A harmonização dos interesses em conflito, «o interesse da seriedade do acto» e «o interesse da rapidez», para utilizar a formulação do mesmo ilustre professor, passa, não pode deixar de passar, pela adoção de soluções que importem, para cada um deles, a compressão que se mostre necessária à salvaguarda do outro, sem afetação do respetivo conteúdo essencial» [...]
Ora, o envio de uma citação por correio eletrónico simples e provido de assinatura eletrónica simples não propicia, minimamente, as garantias de segurança e de fiabilidade da citação a que se reporta o Tribunal Constitucional, tratando-se de uma forma excessivamente informal de proceder a tal ato solene, mesmo no âmbito de um procedimento arbitral.
Note-se que este procedimento não propicia sequer um comprovativo da receção da citação, sendo certo que existe legislação sobre esta matéria.
Com efeito, nos termos do Artigo 6º do Regime Jurídico do Documento Eletrónico e da Assinatura Digital, «O documento eletrónico comunicado por um meio de telecomunicações considera-se enviado e recebido pelo destinatário se for transmitido para o endereço eletrónico definido pelas partes e neste for recebido» (nº 1). No caso, não está demonstrada a existência de acordo entre as partes para a definição de endereço eletrónico para comunicações entre si. De realçar que o atual Código de Processo Civil só permite a citação eletrónica em situações muito limitadas, desde que tal esteja previsto em protocolo ou Portaria (cf. Artigo 219º, nº 5, do Código de Processo Civil), dando adicionais garantias de segurança na realização do ato.
E, prossegue, o nº3 do Regime Jurídico do Documento Eletrónico e da Assinatura Digital: «A comunicação de documento eletrónico, ao qual seja aposta assinatura eletrónica qualificada, por meio de telecomunicações que assegure a efetiva receção equivale à remessa por via postal registada e, se a receção for comprovada por mensagem de confirmação dirigida ao remetente pelo destinatário que revista idêntica forma, equivale à remessa por via postal registada com aviso de receção.» Esta formalidade também não foi observada porquanto, desde logo, o correio eletrónico remetido pelo Tribunal Arbitral não se mostra provido de assinatura eletrónica qualificada (sobre estes conceitos, cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, pp. 348-354 e 418-423).
Acresce que o modo excessivamente simplificado com foi efetuada a citação, nem implicou a remessa de correspondência escrita adicional para a citanda (cautela imposta por exemplo no Artigo 233º do Código de Processo Civil).
Atente-se que – face ao disposto no artigo 57º, nº 2, do próprio Regulamento de Arbitragem e não regendo expressamente o Regulamento sobre a forma da citação – o próprio Tribunal Arbitral poderia – e deveria – ter imposto um formalismo, eventualmente decalcado do Código de Processo Civil, que garantisse a realização solene e séria do ato de citação. Tanto mais que, no caso, ocorreu uma adesão genérica ao Regulamento de Arbitragem, não se tendo verificado um compromisso arbitral.
De todo o exposto, conclui-se que a citação – nos termos excessivamente informais em que foi efetuada – não acautela o princípio da proibição da indefesa, consagrado no Artigo 20º, nº1, da Constituição.
Este aligeiramento não se limitou ao ato da citação, estendendo-se à sentença final, a qual não foi notificada por carta registada com aviso de receção à ora requerente, em obediência ao Artigo 52º, nº1. Paradoxalmente, o Regulamento nada diz sobre a forma da citação, mas exige a notificação da decisão final por carta registada com aviso de receção, o que nem foi cumprido.
Nos termos do Artigo 46º, nº3, alínea a) ii), da Lei nº 63/2011, de 14.12, a sentença arbitral pode ser anulada se a parte que faz o pedido demonstrar que houve no processo violação de algum dos princípios fundamentais referidos no nº1 do artigo 30º com influência decisiva na resolução do litigio. E, nos termos do Artigo 30º, nº1, al. a), o processo arbitral deve sempre respeitar o princípio fundamental que «O demandado é citado para se defender».
A requerente logrou provar a violação de tal princípio, com prejuízo óbvio para a dedução da sua defesa no processo arbitral, razão da procedência desta ação de anulação."
[MTS]