"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/04/2021

Jurisprudência 2020 (187)


Providência cautelar;
"instrumentalidade hipotética"


1. O sumário de RG 8/10/2020 (3763/20.3T8BRG.G1) é o seguinte:

I Se a ação a propor for de simples apreciação – visando discutir a vigência do contrato de cessão de exploração de um estabelecimento por força da falta de fundamento de resolução-, e assim será se a cedente que operou o direto potestativo de resolução extrajudicial do contrato nada fez para o reaver, não pode ser pedido em sede cautelar que se decida da vigência provisória do contrato e que as requeridas se abstenham de atos que dificultem ou impeçam a exploração do estabelecimento, muito menos argumentando-se a possibilidade da cedente poder vir a intentar providência que possa ser deferida sem contraditório tendo em vista a restituição do mesmo estabelecimento.

II Mantendo-se a requerente a explorar o estabelecimento não obstante ter-lhe sido comunicada a intenção de reaver o mesmo por parte da cedente, falta á requerente “necessidade de tutela jurídica”.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Requerente e 1ª requerida celebraram entre si um contrato, cujos contornos definiram e que apelidaram de “Contrato de Cessão de Exploração”, através do qual a requerida X declarou ceder à requerente, mediante retribuição, a exploração de dois postos de abastecimento de combustíveis, pelo prazo de 20 anos a contar da data da assinatura do contrato (ponto 1 dos factos). [...]

No caso dos autos a requerente invoca e pede o reconhecimento e declaração de que o contrato se mantem em vigor, suportando os custos do aumento da renda que resulta do novo contrato celebrado com a Y, e do direito a permanecer (explorando) o posto identificado, até decisão de ação principal em que se reconheça a vigência do mesmo contrato.

O objetivo das providências cautelares há-de ser o de acautelar o efeito útil da ação –artº. 2º, nº. 2, C.P.C.. [...]

Ao procedimento cautelar comum aplicam-se os artºs. 362º a 376º do C.P.C..

Refere o nº. 1 do artº. 362º que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor – nº. 2 do mesmo. “Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte” – nº 3 do mesmo. A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão. – nº. 1 do artº. 368º. “A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” –nº. 2.

São então requisitos (de fundo e de forma) necessários ao decretamento desta providência:

1. - Probabilidade séria da existência de um direito (aparência do direito – “fumus bonis juris”).

2. - Fundado receio de que a demora natural na solução do litígio lhe causará uma lesão grave e dificilmente reparável (ao direito que se pretende fazer valer em ação pendente ou a instaurar) –“periculum in mora”; a providência cautelar será o meio adequado a evitar o dano eminente ou o agravamento da lesão.

3. - Desde que o prejuízo resultante de um tal recurso não exceda consideravelmente o dano que, através da providência, se pretenda evitar (-não nos alongaremos nesta matéria, mas pode ver-se neste ponto antes uma causa impeditiva ou extintiva do exercício do direito).

4. - E não cabimento da possibilidade de recorrer a qualquer outro tipo de procedimento cautelar nominado.

Veja-se nesta matéria e a propósito dos requisitos o Ac. da Rel. do Porto de 21/02/2018 (dgsi.pt, relatora Drª Maria de Jesus Pereira).

Estes requisitos são de verificação cumulativa, podendo nas providências nominadas pode ser dispensado um ou outro destes requisitos em concreto.

Refere ainda o artº. 364º (“Relação entre o procedimento cautelar e a ação principal”), que:

“1 - Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva (negrito nosso).
 
2 - Requerido antes de proposta a ação, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a ação seja instaurada e se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa.
 
3 - Requerido no decurso da ação, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a ação esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quando o procedimento estiver findo ou quando os autos da ação principal baixem à 1.ª instância.”.

Daí decorre que as providências cautelares estão necessariamente dependentes de uma ação já pendente ou a instaurar posteriormente, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva, na pressuposição de que venha a ser favorável ao requerente a decisão a proferir no processo principal -cfr. António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Procedimento Cautelar Comum, Vol. III, pág. 120. Ressalvados ficam os casos da inversão do contencioso em que os efeitos podem via a tornar-se definitivos –artº. 369º d C.P.C. (…).

O objeto da providência há-de, por conseguinte, ser conjugado com o objeto da causa principal, embora tal dependência não imponha perfeita identidade (mesma obra, pags. 120 e 121). A identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo impõe, pelo menos, que o facto que serve de fundamento àquele integre a causa de pedir da ação principal.

Esta identidade objetiva, no entanto, não tem de ser total, sendo admissível que o objeto da ação principal seja mais amplo que o do procedimento cautelar, abrangendo mesmo outros direitos não salvaguardados pela providência cautelar não especificada.

Até aqui seguimos de perto a exposição do Ac. da Rel. do Porto de 7/04/2016, disponível no site da dgsi.

Assim, do artº. 364º, nº. 1, C.P.C. resulta que o procedimento cautelar é sempre dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado. Ou seja, tem natureza instrumental relativamente à causa de que depende na medida em que, fundando-se esta em determinado direito, o procedimento cautelar visa assegurar a efetividade desse mesmo direito, é como que uma medida de apoio a este. Assenta num juízo provisório sobre tal direito, que será ou não confirmado na causa principal; quando decreta uma providência cautelar, o tribunal antecipa provisoriamente, mediante apreciação sumária, um julgamento a proferir mais tarde, acautelando ou antecipando os efeitos da providência definitiva no pressuposto de que a decisão definitiva venha a confirmar o juízo provisório. Daí que a providência cautelar esteja para a sentença a proferir no processo principal na mesma relação em que um juízo provisório sobre determinada matéria está para com o juízo definitivo sobre a mesma matéria -cfr. Ac. Rel. Lisboa de 29-03-1990, citado no Ac. da Rel. de Évora de 6/11/2008, ambos disponíveis na dgsi. Por isso, e seguindo a exposição deste Acórdão, é que o objeto do procedimento cautelar deve coincidir, pelo menos parcialmente, com o da ação, ou melhor, o desta deve incluir o daquele. Enquanto objeto da ação é o "direito acautelado" (artº. 364°, nº. 1, C.P.C.), o objeto da providência é o direito ameaçado ou violado. Através da ação principal deve procurar-se tutela para o mesmo direito que se pretendeu preservar por via cautelar. Mais do que isso, através do pedido formulado na ação principal deve o autor pretender decisão cuja efetividade fique diretamente assegurada através da providência solicitada. O que não exclui a possibilidade de a ação não versar outros direitos não salvaguardados na providência nem a de os pedidos serem diferentes, porque as finalidades prosseguidas no procedimento cautelar e na ação serem naturalmente diferentes.

Tudo isto foi visto do ponto de vista da identidade objetiva.

Mas deve verificar-se também uma identidade subjetiva entre as partes do procedimento cautelar e as da ação principal.

O autor desta deve ser o titular ativo do direito ameaçado e requerente do procedimento e o aí réu deve ser o sujeito passivo daquele direito e requerido no procedimento (cfr. Rita Lynce de Faria, A Função Instrumental da Tutela Cautelar Não Especificada, 2003, pag. 95).

Se através da ação principal se deve procurar a tutela para o mesmo direito que se pretendeu preservar por via cautelar, isso quer dizer que a tutela é sempre dirigida contra alguém que violou (ou ameaçou violar) o direito.

Daí a justificação da referida identidade subjetiva passiva entre o procedimento cautelar e a ação principal. Seguimos novamente aqui a orientação do citado Acórdão da Rel. de Évora.

Em suma, os princípios da instrumentalidade e dependência são também requisitos a respeitar na propositura de um qualquer procedimento cautelar. E tal pressupõe as referidas identidades objetivas e subjetivas. Não nos alongaremos na possibilidade de alguma exceção a esta regra porque não se mostra pertinente ao caso.

Ora, se relativamente à probabilidade da existência do direito a lei contenta-se com a verificação de indícios razoáveis, ou a mera aparência do direito, já quanto ao “periculum in mora” (-a demora e o dano decorrente da demora) exige-se um juízo de certeza que se revele suficientemente forte; cabe ao requerente a alegação e demonstração da gravidade do dano e da sua natureza irreparável ou de difícil reparação; deve assentar em factos concretos e consistentes, valorados objetivamente, bem como a necessidade de ser acautelado por via provisória.

No C.P.C. não se tutelam situações de efetiva e consumada violação, salvo nos casos em que se prevê que a violação prosseguirá de forma continuada ou repetida; prevê-se e previne-se situações suscetíveis de causar lesão grave e dificilmente reparável.

Como se diz na obra de Marco Carvalho Gonçalves, “Providências Cautelares”, 2ª edição (pags. 206 a 208), “visando a providência cautelar evitar a lesão de um direito, esta não pode ser decretada, porque injustificada, se essa lesão já se tiver consumado, salvo se essa lesão fundamentar o receio de ocorrência de outras lesões idênticas e futuras, a produção de lesões de natureza continuada ou repetida, ou o agravamento do dano”.

O Tribunal recorrido entendeu dar por verificados os pressupostos nestes termos:

“Não se questiona inexistência de qualquer procedimento cautelar especificado ajustável à situação dos autos. Também não se dúvida que as providências aqui solicitadas pela requerente seriam adequadas a acautelar os seus interesses, enquanto o litígio que se anuncia não venha a ser definitivamente dirimido. Acredita-se também que, a ver-se desapossada do estabelecimento de abastecimento de combustíveis aqui em causa, a requerente poderá sofrer prejuízos graves. E, por fim, face à factualidade que ficou indiciariamente apurada, admite-se como provável a existência do direito que a requerente pretende acautelar – do direito a manter-se na exploração do dito estabelecimento, paralisando a pretensão da requerida X em reavê-lo desde já, e não no termo previsto para a duração do contrato de cessão de exploração, nomeadamente através da invocação do instituto previsto no artigo 334º do Código Civil.”

No caso dos autos o Tribunal recorrido entendeu que não se verificava o justo ou fundado receio, argumentando assim:

O requisito que se entende não estar demonstrado é aquele que constitui a pedra de toque em qualquer procedimento cautelar: o fundado receio.

Com efeito, decorre do texto do nº 1 do artigo 362º do Código de Processo Civil, que o receio do requerente da providência deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça, e a necessidade de serem adoptadas antecipadamente medidas tendentes a evitar o prejuízo. (…) Na situação aqui em análise, a requerente não necessita verdadeiramente, no momento actual, deste ou de qualquer outro meio processual para acautelar o seu direito e para impedir a produção dos prejuízos que receia vir a sofrer caso se veja obrigada a abrir mão do estabelecimento comercial em questão. Assim é porque tal estabelecimento continua na sua posse e em regular funcionamento – o que foi referido pelo legal representante da requerente na audiência de julgamento, confirmando que não entregou à requerida X o posto de abastecimento de combustíveis, apesar de ter já passado a data que lhe foi “fixada” por aquela, e afirmando que só o entregará com ordem do tribunal.” –sendo porém esta uma conclusão do Tribunal que não tem tradução nos factos (-sabemos apenas que se mantém a explorar)."

A recorrente discorda, invocando a matéria dos pontos 32 e 37 dos factos, argumentando que não é o facto de estar na posse do estabelecimento que releva, uma vez que entendendo a 1ª requerida que não tem título para tanto, pode em qualquer momento agir no sentido do “despejo”, existindo o risco de o fazer por via judicial e sem contraditório, pelo que a requerente não pode exercer a sua atividade em segurança; esse é um dano iminente, e assumindo a requerente o pagamento derivado do aumento da renda, nenhum prejuízo resultará para a requerida do decretamento da providência. Entende por isso que o requisito que o Tribunal entendeu que falhava se verifica.

Pensamos que a questão terá de ser analisada passo a passo, aferindo de forma mais pormenorizada alguns dos pressupostos no caso em apreço que se nos afigura não decorrer de forma tão líquida dos factos.

A ação principal correspondente a este procedimento, fazendo o exercício que se impõe face ao alegado no requerimento inicial, será uma ação intentada contra as aqui três requeridas (-não discutiremos a questão da legitimidade passiva da ação principal por não se afigurar relevante para o caso), em que se invocará o abuso de direito tendo em vista a invalidade do termo da cessão de exploração. Esta ação terá natureza de simples apreciação, visando obter a declaração da inexistência de um direito das requeridas –o direito potestativo à resolução (ou ainda que fosse à denúncia) de um contrato por via extrajudicial.

De facto, a requerente não foi desapossada do estabelecimento. A requerente não vai pedir em ação a propor o que não lhe foi retirado.

Assim sendo, não pode ter natureza antecipatória ou conservatória do efeito que se visa com a ação principal um procedimento cautelar em que se pede a manutenção da exploração do estabelecimento, por falta, nesta parte, de identidade objetiva entre o fim visado na ação principal e no procedimento.

Já o contrário seria viável, ou seja, a 1ª requerida, na falta de entrega do estabelecimento, intentaria ação visando a “confirmação” da resolução levada a cabo extrajudicialmente e consequente entrega do estabelecimento. E cautelarmente poderia pedir esta entrega. Seria sempre em sede de contestação/oposição que a aqui requerente (lá requerida) poderia invocar a “invalidade” da resolução, nomeadamente invocando o abuso de direito, ou outros fundamentos. A eventual ausência de contraditório e o risco associado não são fundamento suscetível de ser invocado pela requerente, fazem parte do direito à ação por parte da requerida, constitucionalmente consagrado, e regulado na lei –artº. 20º, nº. 1, da Constituição da República Portuguesa.

A requerente por esta via cautelar, a obter deferimento, iria obstar não ao exercício do direito por parte da 1ª requerida –já o exerceu, já pôs fim ao contrato, já consumou o exercício do seu direito-, mas à sua “execução” ou à obtenção dos seus efeitos práticos que é efetivamente o que a requerente pretende. Ora, não nos parece ser legitima esta pretensão que apenas poderá ser exercida em sede de oposição à atuação que a requerida venha a adotar tendo em vista a restituição do estabelecimento, e tendo em conta que não pode recorrer à ação direta para o recuperar (cfr. artº. 336º do C.C.). É aqui que se entronca no fundamento do Tribunal recorrido, que tem mais a ver com o “interesse em agir” ou “necessidade de tutela jurídica” de que fala Marco Carvalho Gonçalves, na obra citada e utilizando a terminologia germânica (pág. 218), e que o Tribunal recorrido enquadrou antes no requisito do “fundado receio” que deu assim por não verificado.

De facto, “nada obsta a que a providência seja decretada quando se esteja ainda face a simples ameaças advindas da requerida, ainda não materializadas, mas que permitam, razoavelmente, supor a sua evolução para efectivas lesões”. “Pode assim bastar a prova de acções preparatórias que permitam prever a ocorrência de um evento objectivamente idóneo a prejudicar o direito” –Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, 3º edª, III, pags. 103 e 105.

Não é isso porém que está em evidência neste caso. A 1ª requerida resolveu o contrato e exigiu a entrega do estabelecimento –pontos 32 e 37 dos factos-, mas, na falta de entrega voluntária por parte da requerente, só por via judicial pode lograr fazer valer esse direito. Assim, visto por outro prisma, o direito a manter-se no estabelecimento não está em perigo iminente que torne necessária uma tutela conservatória.

Em suma, o interesse que a requerente pretende salvaguardar no pedido feito em sede de providência cautelar, terá de estar abarcado no resultado que perspetiva vir a obter em ação constitutiva que lhe corresponda (podendo nela fazer valer ainda outros interesses); no caso teria de estar em causa na ação a propor a restituição do estabelecimento (-caso lhe tivesse sido vedado o acesso e/ou exploração)."


[MTS]