"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/04/2021

Jurisprudência 2020 (189)


Documento ad probationem;
prova por presunções; declaração tácita


1. O sumário de STJ 8/7/2020 (5455/15.6T8LSB.L1.S1) é, na parte relevante, o seguinte:


[...] III - O regime previsto pelo NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, para as obras a realizar em prédios urbanos arrendados pode ser afastado por convenção das partes.

IV - Salvo convenção em contrário, cabe ao senhorio a responsabilidade pelas obras de conservação, sem distinções (n.º 1 do art. 1074.º do CC). [...] 

XII - A autorização escrita prevista no n.º 2 do art. 1074.º do CC não é exigida como requisito de forma da declaração mas sim como requisito de prova, destinando-se a proteger as partes uma em relação à outra.

XIII - Autorização escrita não significa necessariamente autorização expressa.

XIV - As declarações tácitas assentam numa presunção: de factos tidos por concludentes, o julgador deduz um significado declarativo, que se alcança por via interpretativa.

XV - O n.º 2 o art. 217.º, ao admitir uma declaração tácita extraída dos factos concludentes relativamente aos quais foi observada a forma legal, está a permitir uma declaração formal extraída por presunção conjugada com factos-base que respeitaram a forma exigida; se essa conjugação é eficaz quanto a requisitos de forma, por maioria de razão o será quando a redução a escrito é apenas um requisito de prova.

XVI - Do n.º 2 do art. 364.º do CC, lido em conjunto com o n.º 1 do art. 393.º e com o art. 351.º, resulta o afastamento de testemunhas ou presunções para substituição do documento exigido para efeitos de prova. No entanto, em situações semelhantes o STJ tem entendido que a prova testemunhal – e, por arrastamento permitido pela forma como a lei as associa, a prova por presunções – pode ser utilizada como complemento de outros meios de prova, máxime de documentos.

XVII - No caso, as instâncias consideraram que a realização de uma vistoria sem que a senhoria tenha reagido às alterações consubstancia uma aprovação tácita das obras; o significado desse facto considerado concludente pelas instâncias é matéria de facto, não cabendo no âmbito da competência do STJ o respectivo controlo.

XVIII - Saber se pode valer como declaração tácita é matéria de direito, já cabendo na competência do STJ controlar a aplicação dos critérios legais de interpretação, como se fosse expressa.

XIX - Vem provado que o projecto de obras de adaptação para a prestação de aulas de culinária foi enviado à recorrente e que não houve autorização escrita; que a senhoria, através de uma empresa contratada para o efeito, fez (neste sentido) uma vistoria ao imóvel, verificando as alterações; que, já perto do termo do contrato, a senhoria enviou uma carta a perguntar ao arrendatário como ia repor o imóvel no estado em que se encontrava, enviando o relatório da empresa.

XX - Conjugando a presunção retirada nas instâncias com o texto do contrato, com o projecto enviado e com a carta do arrendatário identificada no acórdão, encontramos elementos documentais suficientes para, entendidos em conjunto com a vistoria do imóvel, possibilitar a dedução de que a senhoria aprovou tacitamente as obras de adaptação do 1.º piso para as aulas de culinária.

XXI - A validade dos acordos verbais anteriores ao contrato escrito de sub-arrendamento afere-se pelo disposto no art. 221.º do CC. [...]


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. No que respeita a obras, na cláusula 16ª, o contrato de subarrendamento autorizava expressamente o recorrido “a proceder os arranjos necessários à prestação das aulas no primeiro piso” (n.º 1), mas previa também expressamente a necessidade de autorização escrita da autora para o efeito, “mediante projecto que lhe será presente”. A autorização não era portanto incondicional, pois era exigível a concordância com o projecto.

Vem provado que a autora “não declarou por escrito ao 1.º R. que aprovava o referido projecto enviado por este”. Todavia, ambas as instâncias consideraram tacitamente aprovadas as alterações efectuadas, “(…) estando demonstrado que a A. tomou conhecimento da realização das alterações respectivas, já que visitou o imóvel no exercício do direito de exame da coisa locada (al. b) do artº 1038.º do Código Civil), não resultando que haja comunicado ao 1.º R. qualquer oposição à realização das alterações, e igualmente não resultando que tenha solicitado a eliminação dessas alterações, há que concluir que o seu comportamento corresponde a uma aprovação tácita e não expressa por escrito do projecto em questão e da execução respectiva que o 1.º R. promoveu” e, portanto, que o contrato foi respeitado (sentença). O mesmo se entendeu no acórdão recorrido, referindo a “aprovação tácita” aos artigos 217.º e 218.º do Código Civil.

A recorrente sustenta que não é possível considerar autorizadas as obras, porque o n.º 2 do artigo 1074º do Código Civil impõe uma autorização escrita – como, aliás, o contrato, ao exigir a aprovação escrita do projecto (que foi enviado, ponto 21.º dos factos provado

  

7. Cumpre começar por determinar se, apesar de não ter havido autorização escrita da senhoria e como entenderam ambas as instâncias, podem considerar-se como autorizadas as obras realizadas pelo sub-arrendatário no 1º piso do imóvel sub-arrendado para permitir a prestação de aulas de culinária, embora tacitamente. A recorrente considera que, exigindo o n.º 2 do artigo 1074.º do Código Civil que as obras sejam autorizadas por escrito pelo senhorio, não são admissíveis autorizações tácitas: a exigência de forma escrita imporia, por si só, a exigência de uma declaração expressa. Neste sentido, Pinto Furtado, Arrendamento Urbano cit., pág. 355.

No entanto, não é necessariamente assim.

Todos sabemos que, quando a lei exige a redução a escrito de uma declaração negocial, essa exigência pode ser um requisito de forma ou apenas de prova. Sendo requisito de forma, como em princípio sucede, a falta de documento escrito implica a nulidade da declaração (artigo 220.º do Código Civil) e só pode ser suprida por documento com “força probatória superior” (n.º 1 do citado artigo 364.º); não é, portanto, admitida prova testemunhal para substituir o documento em falta (artigo 393.º, n.º 1 do Código Civil) e também não é admitida a prova por presunção judicial, para o mesmo efeito (artigo 351.º).

Mas o documento pode ser apenas um requisito de prova (364.º, n.º 2). Sendo exigido apenas como meio de prova da declaração, o documento em falta pode ser substituído pelo meio de prova mais difícil de obter, a confissão (n.º 2 do artigo 364.º). Tem todavia que ser expressa – o que significa, desde logo, que a confissão ficta que em regra ocorre em situações de revelia não substitui o documento (al. d) do artigo 568.º do Código de Processo Civil) e que a falta de impugnação não implica a admissão por acordo, quando o facto não impugnado dever ser provado por documento escrito (n.º 2 do artigo 574.º do Código de Processo Civil), não relevando para este efeito a diferença entre uma hipótese e outra.

É com este alcance que o n.º 2 do artigo 1074.º do Código Civil deve ser interpretado, ao exigir a redução a escrito da autorização do senhorio para a realização de obras pelo inquilino.

Com efeito, a razão de ser da necessidade de autorização escrita é a protecção das partes uma em relação à outra – do arrendatário, face às consequências da realização de obras ilícitas, fundamento de resolução do contrato e de eventual pedido de indemnização; do senhorio, perante a eventualidade de o inquilino, “quando accionado, para retardar o seu despejo, invocar a realização de obras de conservação, pelas quais pede, em reconvenção, que seja indemnizado, subindo o valor da causa e a sua manutenção no prédio no exercício de um direito de retenção” (Pinto Furtado, Comentário cit., pág. 355). Ou seja, para além da facilidade de prova, não estão presentes as razões que levam ao afastamento do princípio da liberdade de forma e a imposição de forma legal.

Como se escreveu, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 25 de Março de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 983/06.7TBBGR.G1.S1), «costumam apontar-se fundamentalmente três ordens de razões justificativas do abandono do princípio da liberdade da forma (artigo 219º do Código Civil) e da exigência de maior ou menor formalismo como condição de validade de uma declaração negocial (reconhecidamente sintetizadas de forma elucidativa no conhecido relatório do Decreto-Lei nº 32.032, de 25 de Maio de 1942): – assegurar uma correcta ponderação dos outorgantes quanto aos efeitos que do negócio resultam para a sua esfera jurídica; – permitir aos interessados, sobretudo se a forma se reveste de publicidade (documento autêntico, por exemplo), tomar conhecimento dos efeitos que de algum modo os possam afectar; – provar o acto realizado; como se sabe, há regras estritas quanto à possibilidade de prova de um acto solene (cfr. nºs 1 e 2 do artigo 364º do Código Civil).» No caso, é apenas a facilidade de prova que justifica a exigência de autorização escrita.

Como se disse, a falta de um documento escrito exigido como requisito de forma provoca a nulidade da declaração negocial (artigo 220º do Código Civil); no entanto, a circunstância de se tratar de uma declaração formal não significa que não possa ser tácita,  ou seja, deduzida de factos concludentes relativamente aos quais foi observada a forma exigida (n.º 2 do artigo 217.º), excepto se resultar da lei que, além de formal, a declaração tem de ser expressa.

As declarações tácitas assentam numa presunção: de factos tidos por concludentes, o julgador deduz um significado declarativo, que se alcança por via interpretativa, recorrendo às regras de interpretação das declarações negociais (artigo 236.º e segs. do Código Civil); como observa Paulo Mota Pinto, “a ilação é  – nas declarações «receptícias» –  de fazer de acordo com o padrão das «impressão do destinatário» – ou seja, depende do juízo sobre se um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário», a efectuaria. O critério para a obtenção de uma declaração tácita (pelo menos das receptícias) há-de ser, aqui também, o da impressão do destinatário, como aliás a jurisprudência já esclareceu” (Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Coimbra, 1995, págs. 754-755.

Do já citado n.º 2 do artigo 364.º do Código Civil, novamente lido em conjunto com o n.º 1 do artigo 393.º e com o artigo 351.º, resulta o afastamento de testemunhas ou presunções para substituição do documento exigido para efeitos de prova. No entanto, em situações semelhantes o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que a prova testemunhal – e, por arrastamento permitido pela forma como a lei as associa, a prova por presunções – pode ser utilizada como complemento de outros meios de prova, máxime de documentos: cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2014, www.dgsi.pt, proc. n.º 7185/09.9TBCSC.L1.S1, em cujo sumário se pode ler:“2. Assentando a pretensão do autor na celebração – embora com desrespeito da forma legalmente imposta ( que considera imputável ao outro contraente) – de um contrato de mediação imobiliária e uma vez que tal contrato se mostra legalmente sujeito a forma escrita, a admissibilidade de declaração tácita por parte de algum dos contraentes depende, não apenas da concludência dos comportamentos ou condutas materiais, mas também da circunstância de os factos em que se corporizam tais comportamentos terem algum suporte em documento escrito”.

Acresce que o n.º 2 o artigo 217.º, ao admitir uma  declaração tácita extraída dos factos concludentes relativamente aos quais foi observada a forma legal, nomeadamente escrita, está a permitir uma declaração formal extraída por presunção conjugada com factos-base que respeitaram essa forma escrita; se essa conjugação é eficaz quanto a requisitos de forma, por maioria de razão o será quando a redução a escrito é apenas um requisito de prova.

No caso, o contrato de sub arrendamento previa, no n.º 1 da cláusula 16.ª, remetendo para o n.º 1 do artigo 1074º do Código Civil, que o arrendatário “fica autorizado a proceder aos arranjos necessários à prestação das aulas no primeiro piso”; no n.º 2, porém, requer-se autorização escrita para as obras correspondentes, a conceder “mediante projecto que lhe será presente”.

Vem provado que o projecto foi enviado à recorrente (pelo menos em 22 de Setembro de 2010, ponto 21), e que não houve autorização escrita (ponto 22); que a senhoria, através de uma empresa contratada para o efeito, fez (neste sentido) uma vistoria ao imóvel, em 24 de Outubro de 2013), verificando as alterações feitas; que em 31 de Julho de 2014, a autora enviou uma carta a perguntar ao arrendatário como ia repor o imóvel no estado em que se encontrava, enviando o relatório da empresa (ponto 30).

As instâncias consideraram que a realização da vistoria sem que a senhoria tenha reagido às alterações (não se opôs à sua realização nem solicitou a eliminação) consubstancia uma aprovação tácita das obras; o significado desse facto considerado concludente pelas instâncias é matéria de facto (não cabendo no âmbito da competência do Supremo Tribunal de Justiça o respectivo controlo, acórdão do Supremo de 18 de Dezembro de 2008, www.dgsi.pt, proc. n.º 07B3434 ou de 24 de Outubro de 2013, www.dgsi.pt, proc. n.º 1673/07.9TJVNF.P1.S1, estando em causa neste último a dedução de consentimento num caso em que tinha havido acompanhamento de obras sem que fosse manifestada qualquer oposição); saber se pode valer como declaração tácita é matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 2007, www.dgsi.pt, proc. n.º 07A988), cabendo na competência do Supremo Tribunal de Justiça controlar a aplicação dos critérios legais de interpretação, como se fosse expressa. Como qualquer declaração negocial receptícia, como é o caso, a declaração tácita que tem um declaratário tem de ser concludente para esse destinatário (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2005, www.dgsi.pt, proc. n.º 05A1247), recorrendo ao critério do declaratário normal, como se recordou já (cfr. citado acórdão de 24 de Maio de 2007).

Esta presunção, só por si, não seria suficiente para ultrapassar a falta de autorização escrita; no entanto, conjugando-a com o texto do contrato, nomeadamente quando autoriza a prestação de aulas de culinária no 1.º piso (n.º 2 da cláusula 4ª) e a realização dos arranjos necessários (n.º 1 da cláusula 16ª), com o projecto enviado e com a carta do arrendatário de 22 de Setembro de 2010, encontramos elementos documentais suficientes para, conjugados com vistoria do imóvel, possibilitar a dedução de que a senhoria aprovou tacitamente as obras de adaptação do 1.º piso para as aulas de culinária."


[MTS]