"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/04/2021

Jurisprudência 2020 (183)


Audiência prévia;
dispensa; oposição; conhecimento do mérito


1. O sumário de RL 8/10/2020 (2246/18.6T8FNC-A.L1-2) é, na parte relevante, o seguinte:

I) No caso de pretender conhecer integralmente do mérito da causa, o juiz apenas poderá dispensar a realização da audiência prévia, depois de auscultadas as partes e usando dos mecanismos de gestão processual e de adequação formal, em conformidade com o disposto nos artigos 6.º e 547.º do CPC.

II) O princípio da adequação formal, ínsito no artigo 547.º do CPC, permite ao juiz, precisamente, adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, cabendo no seu exercício a aludida possibilidade de não realização de audiência prévia para os fins de conhecimento integral do mérito da causa.

III) A finalidade de ambas as alíneas – b) e c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC – é semelhante – no sentido de proporcionar às partes a discussão sobre as suas posições – muito embora, enquanto a alínea c) considera apenas a discussão com vista à delimitação dos termos do litígio, ao suprimento de falhas na exposição da matéria de facto, já a alínea b) comporta, não só a discussão de facto, mas também, a discussão de direito dos termos da causa, no todo ou em parte (do mérito ou de exceções dilatórias).

IV) Não se mostra violado o disposto no artigo 593.º do CPC se, não sendo caso de designação da audiência em conformidade com a al. c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC, o Tribunal entender que o processo se encontra em condições de conhecer, de imediato, da integralidade do mérito da causa e, por isso, ao convocar a realização de audiência prévia não mencionar no correspondente despacho senão que a audiência se destina ao fim a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC.

V) O juiz conhecerá – total ou parcialmente – do mérito da causa no despacho saneador quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, encontrando-se, por tal, já habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente. [...]


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. Questões a decidir:

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso - , as questões a decidir são:

A) Delimitação do objecto do recurso.

B) Se o despacho de 21-10-2019 deve ser revogado e substituído por outro que convoque as partes para audiência prévia nos termos do artigo 591.º, n.º 1, al. c) do CPC? [...]

Entende a recorrente que, na sequência da prolação do despacho de 27-09-2019, tendo requerido a convocação da audiência prévia nos termos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC, o Tribunal devia ter convocado essa audiência precisamente para os fins nele previstos e, não, como o fez, para efeitos de conhecer imediatamente do mérito da causa.

Como decorre do supra exposto, o Tribunal em 27-09-2019 evidenciou junto das partes que, em seu entender, os autos continham todos os elementos necessários à prolação de decisão final de mérito “sem necessidade de realização da audiência prévia e de produção ulterior de prova”.

A embargante insurgiu-se contra tal entendimento do Tribunal dizendo pretender “reclamar daquele despacho, para o que requer a realização da audiência prévia, designadamente nos termos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC (aplicável ex vi art. 732.º, n.º 2, do CPC)”.

Na sequência, o Tribunal veio a proferir, em 21-10-2019, o seguinte despacho:

“Em face da posição manifestada pela embargante, o Tribunal designa o dia 12/11/2019, às 14h30m, para a realização da audiência prévia a que alude o artigo 591º n.º1 b) do CPC, designadamente para facultar às partes a discussão de facto e de direito, visto que se tenciona conhecer imediatamente do mérito da causa.
Notifique.”.

Entende a ora embargante que o Tribunal deveria, pura e simplesmente, ter marcado audiência prévia nos termos e para os efeitos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC e, não, para conhecer imediatamente do mérito da causa.

Vejamos:

Na fase imediatamente ulterior à apresentação dos articulados das partes, o Código do Processo Civil regula, no artigo 590.º e ss., os termos da gestão inicial do processo e da audiência prévia.

Nesta fase, com diversos e amplos objetivos, o juiz assume um papel determinante, assumindo a direção do processo, procura verificar a regularidade da instância ao nível dos pressupostos processuais e eventuais exceções dilatórias, promovendo pelo seu suprimento, convida as partes à erradicação de irregularidades e deficiências verificadas nos articulados, podendo ainda determinar a junção de documentos, o que ocorre no âmbito do despacho pré-saneador.

Ultrapassados estes eventuais entraves ao prosseguimento da causa, é convocada a audiência prévia, por despacho que indique concretamente as finalidades da sua realização.

Como refere Francisco Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, vol. II, 2015, p. 190): “Uma vez executado o despacho pré-saneador (ou seja, uma vez concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº 3 do artº 590º - correcção das irregularidades formais dos articulados), ou, não tendo a ele havido lugar, logo que o processo lhe seja feito concluso, após a fase dos articulados, o juiz, observado o preceituado pelo artº 151º, nºs 1 e ss., designa dia para a audiência prévia indicando o seu objecto e finalidade de entre os constantes do nº 1 do artº 591º, a realizar num dos 30 dias subsequentes, salvo se ocorrer alguma das hipóteses previstas no artº 592º (em que a mesma não pode ex-lege realizar-se) ou no artº 593º (em que o juiz a entenda dispensável). Conforme a exposição de motivos da Reforma de 2013, «a audiência prévia é, por princípio, obrigatória. Porquanto só não se realizará: - nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante; - nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados» (sic). E obviamente que também se não realizará no caso de revelia absoluta (operante) do réu, hipótese em que haverá lugar ao julgamento abreviado previsto no artº 567º, por reporte ao artº 56º.»

Assim, “por princípio, no processo comum de declaração, é obrigatória a realização de audiência prévia” (cfr. João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira; Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, p. 73) referindo os mesmos Autores (ob. cit., p. 77) que, “(…) sempre que o juiz projecte conhecer no despacho saneador de uma excepção peremptória ou de algum pedido (independentemente do possível sentido da decisão), deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artº 591º.1.b)”, considerando estar em causa o assegurar do contraditório, designadamente, na acepção do direito a produzir alegações antes de uma decisão final.

A audiência prévia contempla um vasto leque de finalidades possíveis, segundo o preceituado no artigo 591.º.

Assim, a audiência prévia pode comportar uma tentativa de conciliação, embora esta possa, ainda, ser tentada numa fase processual posterior.

Para além disso, outra finalidade da audiência prévia é a promoção da discussão de questões a decidir de imediato relativas a exceções dilatórias ou ao mérito da causa e assim fazer cumprir o contraditório, tal como pode também ser convocada no intuito de possibilitar a discussão das posições das partes sobre a delimitação dos termos do litígio e proporcionar a supressão de deficiências ao nível da exposição da matéria de facto que ainda subsistam.

Na audiência prévia pode, igualmente, ser proferido o despacho saneador que será ditado para a ata e poderá ainda haver lugar à programação da audiência final que terá lugar na fase seguinte, com a designação das respetivas datas, número de sessões previsivelmente necessárias e programação dos atos a desenvolver em cada uma delas.

A audiência prévia pode também ter cabimento para a possibilidade de determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processuais que pode consistir na adoção da tramitação processual mais adequada e na adaptação do conteúdo e da forma dos atos processuais, em função das particularidades do caso e uma vez ouvidas as partes.

Finalmente, um dos fins da audiência prévia é também o de nela se proceder à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.

A audiência prévia poderá não se realizar em duas situações: quando a lei assim o determine ou quando o juiz dispense a sua realização. Assim, estabelece o artigo 592.º do CPC que não há lugar à realização da audiência prévia quando em ações não contestadas a revelia seja inoperante e também sempre que o juiz entenda que deve proferir despacho saneador a julgar procedente exceção dilatória debatida nos articulados e assim absolver o réu da instância.

Para além disso, o juiz pode considerar, por via de despacho devidamente fundamentado, que não se justifica a realização desta audiência quando se destine apenas a proferir despacho saneador, a determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processuais ou a proferir despacho que identifique o objeto do litígio e enuncie os temas da prova, situação em que proferirá esses despachos nos vinte dias subsequentes ao termo da fase dos articulados.

Conforme se mencionou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2018 (Pº 3054-17.7T8LSB-A.L1-6, rel. CRISTINA NEVES), “no NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no artº 591 do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (nº1 b). A lei processual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º. A dispensa da audiência prévia fora destes casos, só é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no artº 547 e 6 do C.P.C. sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC”.

De todo o modo, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-10-2018 (Pº 1121/13.5TVLSB.L1-1, rel. RIJO FERREIRA): “A realização da audiência prévia não deve ser abordada numa dicotomia maniqueísta entre obrigatório ou facultativo, mas numa ponderação finalística: a realização da audiência prévia deve ter lugar sempre que for a forma mais adequada de realizar os fins por ela visados; na impossibilidade de alcançar esses fins ou se eles já tiverem sido alcançados de outra forma ou possam vir a ser mais adequadamente alcançados de outra forma a audiência prévia não deve realizar-se. Essa ponderação é deixada fundamentalmente ao juiz, no exercício do seu dever de gestão processual, numa estreita interacção com as partes, e que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da opção do juiz”.

Assim, “a decisão de dispensa da audiência prévia, sendo uma decisão de gestão processual, é reveladora do uso de um poder discricionário do juiz, como tal não admite recurso. No entanto, uma vez notificadas dos despachos previstos nas als. b) a d) do n.º 1 do artigo 591.º, podem as partes deles reclamar e assim introduzir, por meio de requerimento, a realização da denominada audiência prévia potestativa (anteriormente dispensada pelo juiz), na qual as reclamações serão apresentadas, contrapostas pela parte contrária e decididas pelo juiz” (Lília Sofia Marques de Oliveira, A Condensação do Processo: Do questionário aos temas da prova; FDUC; 2016, p. 61 [...]).

No caso de o juiz pretender conhecer do mérito da causa, há que distinguir consoante esse conhecimento seja parcial ou total.

Sobre o ponto discorrem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil; Vol. I, Almedina, 2013, p. 494) o seguinte: “A audiência prévia é de realização necessária, com o fim de facultar às partes a discussão de facto e de direito, quando o juiz tencione conhecer parcialmente do mérito da causa (art. 591.º, n.º 1, al. b) ), se a questão parcelar não tiver sido debatida nos articulados. O conhecimento da totalidade do mérito não é de considerar, pois não satisfaz o primeiro requisito da norma habilitadora da dispensa: ‘ações que hajam de prosseguir’.

A audiência prévia é de realização necessária quando o juiz tencione conhecer de todo o mérito da causa, se a questão não tiver sido debatida nos articulados, o que vele dizer que pode ser dispensada no caso oposto (art. 547.º). Esta decisão de dispensa deve, todavia, ser precedida da consulta das partes (art. 3.º, n.º 3), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa”.

Assim, no caso de pretender conhecer integralmente do mérito da causa o juiz apenas poderá dispensar a realização da audiência prévia, depois de auscultadas as partes e usando dos mecanismos de gestão processual e de adequação formal, em conformidade com o disposto nos artigos 6.º e 547.º do CPC.

O princípio da adequação formal, ínsito no artigo 547.º do CPC, permite ao juiz, precisamente, adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, cabendo no seu exercício a aludida possibilidade de não realização de audiência prévia para os fins de conhecimento integral do mérito da causa, desde que, verificadas as condições, acima mencionadas, para tal efeito.

Por outro lado, nos termos do n.º 2 do artigo 591.º do CPC, o juiz, no despacho que marque a audiência prévia deve indicar o seu objeto e finalidade, mas o mesmo não constitui caso julgado quanto à possibilidade de imediata apreciação do mérito da causa.

Refere Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 225.) que, “a marcação da audiência é feita por meio de despacho, o qual deve indicar, concretamente, o seu objecto e finalidade (art. 591º 2). O teor desse despacho é muito importante. Na realidade, a previsão desta audiência no nosso processo civil resulta do reconhecimento das vantagens do diálogo proporcionado pelo contacto directo dos intervenientes no processo. Tal diálogo só será proveitoso se todos forem preparados para o mesmo.

Ora, essa preparação supõe que as partes e seus mandatários saibam o que vai acontecer, o que vai discutir-se, o que vai tratar-se na audiência prévia. Disso devem ser informados pelo despacho que marca a audiência. O mesmo é dizer que o juiz deve ter o cuidado e o rigor de indicar, expressamente, o objecto da audiência prévia, tanto mais que, podendo, em abstracto, a audiência prévia cumprir diversas finalidades, há que definir quais as finalidades a considerar em cada concreto processo.

Nessa conformidade, se pretender procurar a conciliação das partes, o juiz deve referir isso no despacho. Se pretender ouvir as partes acerca de uma excepção dilatória, deve identificar a excepção. Se a audiência tiver por fim esclarecer este ou aquele ponto de facto alegado nos articulados deve ser dada nota disso. Se o juiz projectar conhecer do mérito da causa e houver vários pedidos formulados (originais ou reconvencionais) ou houver excepções peremptórias, é indispensável indicar de qual aspecto do mérito da causa pretende conhecer-se, para que as partes preparem a sua intervenção sobre esse tema (…)”.

Mais adiante (ob. cit., p. 230 e ss.) o mesmo Autor salienta que, “quando o juiz, findo o período dos articulados e considerando o estado do processo, entender que dispõe de condições para decidir já o mérito da causa, decisão que, a ter lugar, será incluída no despacho saneador, a proferir, em princípio, nessa audiência [arts. 591º l.d), 595º l.b) e 595º 2], a audiência prévia será então destinada a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projecta decidir. É de toda a conveniência que o juiz não decida o litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito, acerca do mérito da causa, sendo que o âmbito dessas alegações depende do caso concreto. Assim, nessas alegações, as partes poderão fazer os considerandos que tenham por convenientes, no sentido de justificar e fundamentar a procedência das respectivas pretensões. Além disso, as alegações poderão servir também para as partes tomarem posição sobre eventuais excepções peremptórias não discutidas nos articulados, mas que o juiz entenda poder conhecer oficiosamente. Acresce que deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados.

A convocação das partes para a audiência prévia, no contexto da alínea b) do n.º 1 do art. 591º, é pertinente a vários títulos. Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art. 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito. Expressão disso mesmo é a segunda parte do n.º 2 do art. 591º, referindo que o despacho determinativo da audiência prévia para este efeito não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa, de modo a não vincular o juiz à intenção por si manifestada. Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações complexas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria”.

A respeito do n.º 2 do art. 591.º do CPC referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3.ª Edição, Almedina, 2017, p. 646) que, “o facto de o juiz considerar possível o conhecimento imediato do pedido e o indicar como finalidade da convocação da audiência prévia não o vincula a fazê-lo no despacho saneador. É o que se quer significar, no n.º 2, com a negação da constituição de “caso julgado sobre a possibilidade de apreciação do mérito da causa” (...). O juiz permanece, pois, livre de, no despacho saneador, após a discussão entre as partes ou mesmo que esta acabe por não ter lugar, entender que o processo deve prosseguir”.

Assim, conclui-se como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-03-2018 (Processo 1920/14.0YYLSB-A.L1-6, rel. TERESA SOARES):

“I. Em face do NCPC, a audiência prévia apresenta-se como diligência praticamente obrigatória.
II. A dispensa de audiência prévia apenas está consentida quanto às ações que hajam de prosseguir os seus termos (artigo 593.º do Código de Processo Civil Revisto), sendo ainda concebível, mas apenas no quadro da aplicação do princípio da adequação formal, por via do artº 547º do NCPC, sendo que, nesse caso, será exigível que a questão já esteja suficientemente debatida nos articulados, e isto sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC.
III. Fora destes apertados limites que consentirão a dispensa da audiência prévia, a sua não realização terá como inevitável consequência a verificação de uma nulidade processual, por prática de acto não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, a enquadrar no artº 195º do NCPC”.
 
O despacho subsequente que seja proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final. “A lei impõe, portanto, a clara sujeição ao princípio geral enunciado no artigo 644.º, n.º 3 de recorribilidade diferida e acessória dos despachos interlocutórios” (assim, Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado; Vol. II, Almedina, 2018, p. 135, nota 14).

Salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 692, nota 9) que: “A inércia das partes, não requerendo a realização da audiência prévia, significa que se conformam com o decidido pelo juiz quanto à dispensa da audiência prévia e quanto ao teor dos mencionados despachos, sendo certo que, como decorre da lei, a eventual reação contra o despacho saneador apenas poderá fazer-se por via recursória, nos termos gerais do art. 644.º, n.º 1”.

Ora, revertendo à situação dos autos, verifica-se que o juiz anunciou às partes pretender conhecer do mérito da causa, com dispensa da realização da audiência prévia, o que fez, referindo tomar “como premissa os princípios da adequação formal e da gestão processual”.

A ora recorrente pronunciou-se, no exercício do direito de contraditório, sobre tal anúncio.

Na sequência, o Tribunal, no mencionado despacho de 21-10-2019, designou data para a realização de audiência prévia.

Considera a recorrente que o Tribunal deveria, pura e simplesmente, ter designado a realização de audiência prévia, para os fins previstos no n.º 3 do artigo 593.º do CPC, ao contrário do que fez (tendo o Tribunal designado a realização da “audiência prévia a que alude o artigo 591º n.º1 b) do CPC, designadamente para facultar às partes a discussão de facto e de direito, visto que se tenciona conhecer imediatamente do mérito da causa”).

Ora, conforme resulta das considerações precedentes, afigura-se que não assiste razão à recorrente, pois, de facto, não se vislumbra ter sido cometida qualquer nulidade ou irregularidade procedimental.

De facto, o Tribunal utilizou, nos termos em que os comandos legais lho permitiam, da faculdade de pretender não realizar audiência prévia, assinalando às partes que, em seu entender, o processo comportava todos os elementos para o conhecimento integral do mérito da causa.

Como se viu, o único caso em que o poderia fazer seria lançando mão dos institutos da gestão processual e da adequação formal, o que foi, precisamente, o caso.

Após, perante a posição da embargante, o Tribunal designou data para a realização da audiência prévia.

Obviamente que a necessidade de marcação da audiência prévia, nos moldes em que foram determinados, derivou da manifestação de reclamação apresentada pela embargante, apresentada em conformidade com o disposto no artigo 593.º, n.º 3, do CPC.

Todavia, ao contrário do que parece pressupor a embargante, este último normativo não prescreve conteúdo algum obrigatório sobre o despacho que designa a realização de audiência prévia potestativa para além dos seus estritos termos.

Conforme decorre do preceito – o referido artigo 593.º, n.º 3, do CPC – a audiência prévia “destina-se a apreciar as questões suscitadas e, acessoriamente, a fazer uso do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 591.º”.

Ora, no requerimento da embargante de 10-10-2019, esta parte apenas manifestou não se conformar “com o entendimento do Tribunal, pretendendo reclamar daquele despacho” e, para tal, requereu “a realização da audiência prévia, designadamente nos termos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC (aplicável ex vi art. 732.º, n.º 2, do CPC)”.

Ou seja: Este acto processual – a audiência prévia – teria de ter lugar na sequência da manifestação de vontade (potestativa) da reclamante, mas, relativamente ao seu conteúdo, a reclamante não evidenciou qualquer questão suscitada, nem concretizou os termos da discordância que assinalou.

O objeto da audiência prévia que o juiz designasse estaria assim, na falta de outra especificação, limitado ao objeto eventual e acessório, que o mesmo fixasse e a que alude a parte final do n.º 3 do artigo 593.º do CPC: “fazer uso do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 591.º”.

Ora, na alínea c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC viabiliza-se uma discussão das posições das partes quanto ao seguinte: “delimitação dos termos do litígio”, suprimento de “insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate”.

Mas será que o Tribunal a quo não poderia consignar, como o fez no despacho de 21-10-2019, que a audiência prévia se destinaria à realização da “audiência prévia a que alude o artigo 591º n.º 1 b) do CPC, designadamente para facultar às partes a discussão de facto e de direito, visto que se tenciona conhecer imediatamente do mérito da causa”? Ou seja: Dado que a discussão não se reconduziria, na perspetiva do julgador, apenas no âmbito da alínea c) do n.º 1, do artigo 591.º do CPC, mas sim, na alínea b) do mesmo número poderia ser outro o objeto da audiência a consignar nos termos do artigo 591.º, n.º 2, do CPC?

Se bem se atentar, apesar da diversa redação, a finalidade de ambas as alíneas – b) e c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC – é semelhante – no sentido de proporcionar às partes a discussão sobre as suas posições – muito embora, enquanto a alínea c) considera apenas a discussão com vista à delimitação dos termos do litígio, ao suprimento de falhas na exposição da matéria de facto, já a alínea b) comporta, não só a discussão de facto, mas também, a discussão de direito dos termos da causa, no todo ou em parte (do mérito ou de exceções dilatórias).

Ora, em nosso entender, no caso em apreço, não teria o despacho a proferir, no âmbito do comando ínsito no n.º 3 do artigo 593.º do CPC de ter outra consignação para além da que nele foi formulada.

Na realidade, como se viu, de acordo com o n.º 2 do artigo 591.º do CPC, o despacho que marque a audiência prévia indica o seu objeto e finalidade, o que foi estritamente observado no despacho de 21-10-2019: O objeto do conteúdo da reclamação era desconhecido para o julgador aquando da designação da audiência prévia, pelo que, não sendo caso de designação da audiência em conformidade com a al. c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC, dado que, no entender do Tribunal, o processo se encontrava em condições de conhecer, de imediato, da integralidade do mérito da causa, não teria sentido outra consignação senão a alusão à alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC.

Conclui-se, pois, não se ter violado o aludido artigo 593.º do CPC, nem foi, de algum modo, comprimido o direito de defesa da recorrente e a um processo justo e equitativo.

Repare-se que, aliás, a embargante teve possibilidade de, no âmbito da audiência prévia - onde foram gravadas as intervenções tidas pelos Advogados de ambas as partes – intervir, discutindo com toda a amplitude a causa, usando inclusive do direito de réplica (após a intervenção do Advogado da embargada), quer em termos de facto e de direito, tendo podido apreciar toda a factualidade reunida nos autos, bem como as questões jurídicas atinentes aos autos, designadamente, abordando-as à luz do então já conhecido despacho de 27-09-2019 (onde o julgador tinha consignado as suas concretas razões em que se baseava o juízo formulado sobre a possibilidade de imediato conhecimento do mérito da causa).

Mostra-se, pois, improcedente o invocado pela embargante, não havendo motivo para revogar o despacho proferido em 21-10-2019."

[MTS]