"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/04/2021

Jurisprudência 2020 (186)


Acompanhamento de maiores;
audição do beneficiário


1. O sumário de RP 24/9/2020 (16021/19.7T8PRT.P1) é o seguinte:

I - A audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, prevista no art. 139º/1 CC e art. 897º/2 CPC, representa a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, o princípio da imediação.

II - A norma do art. 897º/2 CPC de cariz imperativo veda ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever.

III - O incidente de suprimento do consentimento, previsto no art. 892º/2 CPC, integra formal e estruturalmente o processo de acompanhamento de maiores; o regime definido para o processo abrange tudo o que o integra e por isso, também em sede de incidente deve o juiz proceder à audição do requerido/beneficiário.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"- Da audição da requerida em sede de incidente de suprimento da autorização do beneficiário -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 22, insurge-se a apelante contra a decisão que indeferiu o suprimento do consentimento, por entender que a sentença deve ser anulada na medida em que se omitiu a audição da requerida, irregularidade que configura uma nulidade processual que tem como consequência a anulação da sentença.

Considera a apelada que a sentença não merece censura por se mostrar devidamente fundamentada no relatório pericial, para aferir da capacidade da requerida para prestar o consentimento.

A questão que se coloca consiste em apurar se em sede de incidente de suprimento do consentimento a audição do requerido pelo juiz constitui uma diligência obrigatória e as consequências que derivam da sua omissão.

Adiantando a resposta, entendemos que é obrigatória a audição do requerido em sede de incidente de suprimento do consentimento, pelos motivos que se passam a expor.

A Lei 49/2018 de 14 de agosto veio estabelecer o regime do acompanhamento de maiores, a qual introduziu uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, dando assim consagração àquilo que já há muito vinha sendo reclamando pela doutrina, e sobretudo pelas Convenções Internacionais (Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Convenção de Nova York -, entrada em vigor na nossa ordem jurídica nacional, juntamente com o “Protocolo Adicional”, a 3 de maio de 2008).

De entre os vários princípios que passaram a orientar o processo especial de acompanhamento de maiores destaca-se o princípio da imediação [MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS”, O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO [em linha], Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2019, acessível na internet, pag. 44; ANA PRATA (Coord.) Código Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2019, pag.170] na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário, o qual decorre da conjugação dos seguintes preceitos:

- Artigo 138º Código Civil sob a epígrafe “Acompanhamento”

“O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.

- Artigo 139º CC, sob a epígrafe “Decisão Judicial”:

“O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.”

- Artigo 897º do Código de Processo Civil sob a epígrafe “Poderes Instrutórios”, dispõe:

“1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.
2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.

- Artigo 898º CPC sob a epígrafe “Audição pessoal”:

“1- A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.
2- As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas.
3- O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário”.

Decorre, assim, da leitura de tais preceitos legais, não só a consagração do sobredito principio da imediação na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário, como também que ele se concretiza com obrigatoriedade imposta ao juiz de, em qualquer circunstância, dever proceder de forma pessoal e direta à audição do beneficiário.

Imediação essa que terá uma dupla finalidade: por um lado, permitir ao juiz inteirar-se da real situação em que se encontra o beneficiário e, por outro, ajuizar, perante tal situação, e daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em prol daquele [Cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS”, O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO [em linha], Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2019, acessível na internet, pag. 44].

A jurisprudência com apoio em diferentes estudos jurídicos tem defendido o caráter obrigatório da diligência de audição do requerido/beneficiário quando está em causa a decisão sobre a aplicação de uma medida de acompanhamento.

Citam-se, entre outros, neste sentido os Ac. Rel. Coimbra 18 de maio de 2020, Proc. 771/18.8T8CNT-A.C1, Ac. Rel. Coimbra 03 de março de 2020, Proc. 858/18.7T8CNT-A.C1, Ac. Rel. Coimbra 19 de maio de 2020, Proc. 312/19.0T8CNT-A.C1, Ac. Rel. Coimbra 04 de junho de 2019, Proc. 647/18.9T8ACB.C1, Ac. Rel. Évora 10 de outubro de 2019, Proc. 1110/18.3T8ABF.E1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt).

Em defesa de tal posição alinham-se argumentos que apelam aos elementos literal, histórico e teleológico, face à redação do art. 897º CPC.

As expressões “em qualquer caso” e “sempre” empregues pelo legislador (vg. no nº 2 do citado artº. 897º o CPC), tornam inequívoca a intenção do legislador em tornar obrigatório que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais de acompanhamento de maior seja sempre precedida da obrigatória audição do beneficiário pelo juiz.

Tal opção do legislador representa um corte com o regime que até então vigorou para os institutos da interdição e da inabilitação, em que essa audição só se tornava obrigatória se fosse deduzida contestação (cfr. nº. 2 do artº. 896º do CPC, na sua versão anterior).

Fazendo apelo ao fim e natureza do atual regime que visa tão só salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário, considera-se que a audição direta e pessoal não só permite ao juiz inteirar-se da real situação em que este se encontra mas também ajuizar, daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em seu benefício.

Nesta linha de entendimento defende-se, ainda, que a audição do requerido permite “[…]evitar que terceiros (familiares, amigos ou pessoas próximas) consigam submeter uma pessoa à medida de acompanhamento sem que ela careça de tal medida, tendo como finalidade, por exemplo, apropriar-se dos bens ou rendimentos produzidos pelos bens do pretenso sujeito carecido de acompanhamento.

Estes casos serão de verificação rara, mas a sua hipotética existência futura não pode ser excluídos e um modo de os impedir consistirá em prever que o beneficiário possa estar em contato direito com o juiz, incluindo a sós, contribuindo de modo efetivo para a decisão do caso que lhe diz respeito” [Ac. Rel. Coimbra 04 de junho de 2019, Proc. 647/18.9T8ACB.C1, acessível em www.dgsi.pt].

Entendemos que os argumentos expostos continuam válidos para considerar que a audição do requerido/beneficiário também deve realizar-se em sede de incidente de suprimento do consentimento.

Em sede de legitimidade ativa prevê o art.º 141.º, n.º 1, CC, que o acompanhamento pode ser requerido:

- pelo próprio beneficiário;

- pelo cônjuge ou unido de facto do beneficiário ou por qualquer parente sucessível do beneficiário, desde que esteja autorizado por este;

- pelo Ministério Público, no exercício da sua função de representação dos incapazes (cfr. art.º 3.º, n.º 1, al. a), EMP).

A razão de ser da autorização do beneficiário prende-se com o facto de estar em causa interesses pessoais do beneficiário e importando salvaguardar a liberdade pessoal desse beneficiário.

A autorização do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível pode ser suprida pelo próprio tribunal ao qual é requerida a medida de acompanhamento (art.º 141.º, n.º 2, CC; art.º 892.º, n.º 2). O suprimento da autorização deve ser concedido quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe um fundamento atendível para o conceder (art.º 141.º, n.º 2, CC). Portanto, se o beneficiário não estiver em condições de dar a autorização ao seu cônjuge, unido de facto ou parente sucessível, qualquer destes pode requerer a medida de acompanhamento e requerer, ao mesmo tempo, o suprimento da autorização do beneficiário.

O incidente de suprimento do consentimento, enxertado no processo de acompanhamento de maior, não tem uma tramitação específica [ANA LUÍSA SANTOS PINTO “O regime processual do acompanhamento de maior” JULGAR nº 41, Maio –Agosto de 2020, Coimbra, Almedina, pag. 150, nota 15].

Contudo, integra formal e estruturalmente, o próprio processo especial de acompanhamento de maior.

A lei não faz qualquer distinção, no sentido de exigir a audição apenas na fase da decisão da medida a aplicar e por isso, onde o legislador não distingue não cumpre ao julgador fazê-lo.
Apesar de se aplicar ao processo o regime dos processos de jurisdição voluntária, não fica na livre disponibilidade do juiz a realização da diligência, que o legislador previu como sendo obrigatória.

Constituindo, como vimos, a audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, e decorrendo ela ainda de uma norma de cariz imperativo, fica vedada ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever.

O regime definido para o processo abrange tudo o que o integra, e por isso, também o concreto incidente de suprimento de autorização, o qual merece da parte do juiz uma especial atenção, já que de tal decisão depende, ou não, a promoção do processo e este processo visa salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário (art. 140º/1 CC)."

[MTS]