"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/04/2021

Jurisprudência 2020 (190)


Reconhecimento de decisão estrangeira;
sentença de divórcio espanhola; Reg. 2201/2003; Reg. 2016/1103*


1. O sumário de RP 8/10/2020 (98/19.8YRCBR) é o seguinte:

I - O Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (Regulamento Bruxelas II-A), aplica-se às decisões de divórcio, não abrangendo questões como os efeitos patrimoniais do casamento ou a partilha dos bens comuns.

II - Estando a sentença estrangeira compreendida no âmbito de aplicação do Regulamento, a sua executoriedade deve ser obtida nos termos definidos no Regulamento e não através de uma acção de revisão de sentença estrangeira.

III - O reconhecimento incidental de uma decisão invocada a título incidental num tribunal de um Estado-Membro, previsto no artigo 21.º, n.º 4, do Regulamento Bruxelas II-A, está subordinado às regras processuais do Estado-Membro requerido pelo que, entre nós, sob pena de a decisão ser nula por excesso de pronúncia, não pode ser feito se a instância não contém o pedido correspondente, nem foram alegados os factos jurídicos concretos de que depende esse reconhecimento.

IV - O Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho, de 24 de Junho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais, abrange as decisões judiciais relativas à partilha dos bens do casal dissolvido por divórcio.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O n.º 1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil, precisamente sobre a epígrafe «necessidade de revisão», estabelece o seguinte: «Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada».

Decorre desta norma que, em regra, a sentença proferida por tribunal estrangeiro sobre direitos privados não tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem ser revista e confirmada em Portugal. Todavia, a necessidade de proceder à revisão e confirmação da sentença proferida por tribunal estrangeiro deixa de existir se houver tratado, convenção ou regulamento da união Europeia a que Portugal esteja vinculado que preveja outra forma de aquela sentença ser reconhecida e/ou declarada executória em Portugal.

Desse modo, não havendo instrumento legal europeu que estabeleça e regule a livre circulação de decisões entre os Estados Membros, cada Estado Membro requerido aplicará as suas normas internas que regulam a validade extraterritorial de decisões estrangeiras no seu território. Nesse caso, o Estado Membro requerido aplicará as suas próprias normas jurídicas, quer se trate de convenções internacionais em vigor para os Estados que nelas participem, quer - na sua falta - das normas produzidas internamente pelo Estado requerido.

Conforme assinala Luís de Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado, Vol. III, Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, pág. 383, entre nós, «o reconhecimento de sentenças proferidas por tribunais de Estados terceiros, e que não caia dentro do âmbito de aplicação de outros regimes supraestaduais, continua sujeito ao regime interno (ressalvado o respeito das competências exclusivas estabelecidas pelo artigo 22.º do Regulamento [n.º 44/2001, disposição correspondente ao artigo 24.º do actual Regulamento n.º 1215/2012])».

Uma vez que a presente acção de revisão foi instaurada por um cidadão de nacionalidade espanhola, residente em Portugal, contra uma cidadã de nacionalidade espanhola, residente em Espanha, para obter a revisão e confirmação de uma sentença proferida em 2017 por um tribunal espanhol a decretar o respectivo divórcio e homologar a partilha consensual de bens sitos em território português, a primeira questão a determinar é se existe algum regulamento da união europeia que seja aplicável ao caso.

Comecemos pelo aspecto da mera dissolução do casamento por divórcio decretada pela sentença revidenda.

Existe um regulamento europeu com esse âmbito objectivo e subjectivo de aplicação. Trata-se do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000 (disponível in https://eur-lex.europa.eu).

Este regulamento normalmente designado por Regulamento Bruxelas II-A, encontra-se em vigor desde 01/08/2004, sendo aplicável, em termos gerais, desde 01/03/2005[...].

Conforme se assinala expressamente nos seus considerandos, o âmbito de aplicação do Regulamento n.º 2201/2003 abrange as matérias cíveis, independentemente da natureza da jurisdição (7), e quanto às decisões de divórcio, apenas se aplica à dissolução do vínculo matrimonial, não abrangendo questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias (8).

Daqui resulta que não são abrangidos pelo âmbito objectivo do regulamento em análise as decisões proferidas sobre os efeitos patrimoniais do casamento, designadamente o regime de bens do casamento e a partilha dos bens que segundo esse regime assumam a natureza de bens comuns e que na sequência da dissolução da comunhão conjugal haja que partilhar.

O que está abrangido é apenas a decisão [na parte em] que decretou o divórcio. Essa decisão (rectius: a parte da decisão que decreta o divórcio) está sujeita ao regime de reconhecimento e declaração de executoriedade previsto no capítulo III do Regulamento, designadamente nos artigos 21.º a 27.º (reconhecimento) e 29.º a 39.º.

Nos casos em que a decisão se referir a vários aspectos do pedido e a execução não puder ser autorizada em relação a todos, o requerente pode pedir a execução da decisão na parte em que decreta o divórcio e o tribunal ordenará a execução relativamente a esse aspecto (artigo 36.º).

Para requerer a execução da decisão - ou da parte da decisão - ao abrigo do artigo 36.º, a parte deverá usar o formulário do anexo I previsto no artigo 39.º do regulamento.

Segundo foi comunicado por Portugal à Comissão Europeia (consultar in https://e-justice.europa.eu), são competentes para apreciar esse pedido de declaração de executoriedade, na organização judiciária portuguesa, o Juízo de Família e Menores ou, quando este não exista, o Juízo Local Cível, caso exista, ou o Juízo Local de Competência Genérica, sendo que da sua decisão cabe recurso para o Tribunal da Relação (artigo 33.º) e da decisão desta apenas é possível recurso restrito à matéria de direito para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 34.º).

Deste modo, o pedido de declaração de executoriedade de uma decisão de divórcio deve ser instaurado na primeira instância, tendo a Relação competência apenas para decidir o recurso da decisão que a declarou ou não executória.

Sendo este o modo como no âmbito do espaço da União Europeia se procede num Estado-Membro à declaração de executoriedade das decisões que tenham decretado o divórcio proferidas por outro Estado-Membro, segue-se que, em princípio, está afastada a possibilidade de essa decisão ser objecto em Portugal de uma acção de revisão de sentença estrangeira, quer como decorrência da própria natureza e valor do direito europeu, quer do artigo 978.º do Código de Processo Civil («sem prejuízo») e do princípio da legalidade das formas de processo que vigora entre nós e nos termos do qual uma determinada forma de processo apenas pode ser usada para os objectivos concretos que a lei processual lhe fixou.

Vejamos agora a parte da sentença que ao mesmo tempo que decretou o divórcio homologou a partilha dos bens comuns efectuada por mútuo acordo dos cônjuges.

Também para esta situação dispomos de um instrumento legal europeu. Trata-se do Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho, de 24 de Junho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais.

Nos termos do respectivo artigo 70.º, este Regulamento entrou em vigor em 28/07/2016 e é genericamente aplicável desde 29/01/2019. O seu objectivo é o de ajudar os casais a gerirem o seu património e a poderem partilhá-lo em caso de divórcio ou de óbito de um dos cônjuges. Portugal e Espanha e participam ambos neste instrumento de cooperação reforçada (Considerando 11).

O âmbito de aplicação do referido regulamento abarca todos os aspectos de direito civil dos regimes matrimoniais, respeitantes tanto à gestão quotidiana dos bens dos cônjuges como à sua liquidação, decorrentes nomeadamente da separação do casal ou da morte de um dos seus membros. Para efeitos do regulamento, o termo «regime matrimonial» deverá ser interpretado de forma autónoma e deverá abranger entre outras as relações patrimoniais entre os cônjuges, resultantes directamente do regime matrimonial ou da dissolução deste regime (Considerando 18).

Por outras palavras, o Regulamento abarca a partilha dos bens comuns do casal realizada na sequência da dissolução do casamento por divórcio. Isso mesmo se extrai do respectivo artigo 3.º quando estabelece que para efeitos do regulamento por «regime matrimonial» se deve entender o conjunto de normas relativas às relações patrimoniais dos cônjuges e às suas relações com terceiros, em resultado do casamento ou da sua dissolução.

Acresce que o regulamento prevê a possibilidade de os cônjuges celebrarem transacções judiciais e mesmo extrajudiciais sobre estas matérias, definindo no seu artigo 3.º a «transacção judicial» como sendo a «transacção em matéria de regime matrimonial homologada por um órgão jurisdicional ou celebrada perante um órgão jurisdicional no decurso de uma acção», no que incluirá, portanto, o acordo de partilha dos bens comuns homologado pelo juiz da acção de divórcio na qual aquele acordo foi celebrado.

Este regulamento possui igualmente um capítulo próprio (capítulo IV) sobre o regime de reconhecimento, executoriedade e execução das decisões em matéria de regime matrimonial (artigo 36.º e seguintes), regime esse que é semelhantes à de outras regras da União Europeia relativas à cooperação judicial em matéria civil.

No artigo 54.º do regulamento permite-se a chamada declaração de executoriedade parcial, isto é de parte da decisão, designadamente da parte que homologa a partilha, ao abrigo do esquema de reconhecimento e executoriedade previsto neste regulamento.

Para pedir a executoriedade da parte da decisão que homologa a partilha o interessado deverá usar o formulário previsto no artigo 45.º, nº 3, alínea b), do regulamento, o qual certificará aquela parte da decisão e terá de ser emitido pelo tribunal espanhol a pedido da parte e apresentado em Portugal.

Também neste caso, segundo comunicação de Portugal (in https://e-justice.europa.eu/ content matters_of_matrimonial_property), os órgãos jurisdicionais nacionais ou autoridades competentes para deliberar sobre pedidos de declaração de executoriedade, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, do regulamento são o juízo de família e menores; quando este não exista, o juízo local cível, caso exista, ou o juízo de competência genérica do tribunal de comarca competente, cabendo aos Tribunais da Relação apenas decidir sobre os recursos contra as decisões relativas a esses pedidos, nos termos do artigo 49.º, n.º 2, podendo a sua decisão ser objecto de recurso restrito a matéria de direito para o Supremo Tribunal de Justiça.

Sucede, contudo, que o regulamento possui uma disposição transitória definindo o seu âmbito de aplicação temporal.

Nos termos do n.º 1 do artigo 69.º o regulamento é aplicável exclusivamente às acções já instauradas, aos actos autênticos estabelecidos ou registados formalmente e às transacções judiciais homologadas ou concluídas à data ou após 29 de Janeiro de 2019, sob reserva dos n.os 2 e 3.

E nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, se a acção no Estado-Membro de origem tiver sido instaurada antes de 29 de Janeiro de 2019, as decisões proferidas após esta data são reconhecidas e executadas nos termos do disposto no Capítulo IV, desde que as regras de competência aplicadas sejam conformes com as disposições do Capítulo II.

Tanto quanto interpretamos esta disposição e sem prejuízo de melhor opinião, para que a decisão que homologou a partilha pudesse ser objecto de declaração de executoriedade nos termos do regulamento seria necessário que a decisão tivesse sido proferida no dia 29 de Janeiro de 2019 ou em dia posterior a esse (n.º 1) ou então, no caso de a acção na qual foi proferida essa decisão ter sido instaurada antes do dia 29 de Janeiro de 2019, que a decisão viesse a ser proferida apenas depois desta data e na acção tivessem sido observadas as disposições do capítulo II em matéria de competência.

Ora no caso, a acção de divórcio onde foi proferida a decisão cuja revisão é pretendida foi instaurada em 2016 e a sentença que decretou o divórcio e homologou a partilha foi proferida em 15/02/2017, não havendo nos autos qualquer elemento que permita verificar se existiam elementos em função dos quais a intervenção dos tribunais espanhóis coincidiu com as regras de competência do regulamento.

O âmbito de aplicação temporal do referido regulamento não abrange pois a decisão de homologação da partilha dos bens comuns do dissolvido casal cuja revisão vem pedida e, por esse motivo, esta pode de facto ser objecto de uma acção especial de revisão de sentença estrangeira, uma vez que não se verifica o obstáculo proveniente da primeira parte do artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (haver legislação europeia aplicável que estabeleça uma forma de obtenção da executoriedade da decisão que prescinda dessa acção).

Esta constatação obriga a voltar a perspectivar a parte da decisão que decretou a dissolução do casamento por divórcio e o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003. Como vimos, por aplicação deste, essa parte da decisão não podia (porque não necessitava disso) ser objecto de uma acção de revisão de sentença estrangeira do nosso ordenamento jurídico.

Contudo, existe neste regulamento uma norma que prevê o chamado reconhecimento incidental da decisão. Trata-se do artigo 21.º, cujo n.º 4 estabelece que se o reconhecimento de uma decisão for invocado a título incidental num tribunal de um Estado-Membro, este é competente para o apreciar.

Assim, se para apreciar uma determinada questão houver necessidade de conhecer de outra questão que não constituindo o objecto do processo foi já decidida num tribunal de outro Estado-Membro, o tribunal do estado-Membro que irá decidir sobre a questão principal pode pronunciar-se (rectius: é competente para se pronunciar) sobre o reconhecimento da decisão (na parte) relativa à questão incidental.

No caso, a decisão judicial que homologou a partilha dos bens comuns surge na sequência da decisão que decretou o divórcio uma vez que só por efeito do divórcio pode ter lugar a partilha dos bens que até aí integravam a comunhão conjugal. Logo, nos termos do próprio Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, era possível aproveitar a acção de revisão da sentença desta parte da decisão para o tribunal nacional reconhecer por via incidental aquela outra parte da mesma sentença.

Reconhecer uma sentença estrangeira «é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos» - apud Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado I, Coimbra, 2013, pág. 454 -.

Segundo Hélène Gaudemet-Tallon in Compétence et exécutions des jugements en Europe, pág. 494, citada no e-book Rui Torres Vouga – Reconhecimento e Execução de Decisões no Âmbito do Regulamento Bruxelas I-Bis [Em linha]. 1.ª ed.. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2019 [Consult. Setembro 2020]. Disponível na internet: URL:http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Decisoes_Bruxelas 2019.pdf. ISBN: 978-989-8908-98-8, através do reconhecimento de uma sentença estrangeira «o Estado integra portanto na sua ordem jurídica a situação jurídica consagrada pela decisão estrangeira: por exemplo, se a decisão estrangeira condena uma parte num contrato a executar este contrato, esta decisão consagra em relação a outros Estados europeus a existência deste contrato e um terceiro sofrerá eventualmente as consequências desta existência apesar de ele não ser parte no contrato, nem na decisão proferida no estrangeiro».

O reconhecimento da sentença na parte em que decretou o divórcio passará pela verificação da ausência de qualquer dos fundamentos de não reconhecimento da mesma elencados nos artigo 22.º do Regulamento 2201/2003, sendo certo que o tribunal do Estado-Membro requerido não pode proceder ao controlo da competência do tribunal do Estado-Membro de origem (artigo 24.º), não pode recusar o reconhecimento com o fundamento de a lei do Estado-Membro requerido não permitir o divórcio com base nos mesmos factos (artigo 25.º) e não pode, em caso algum, rever a sentença quanto ao mérito (artigo 26.º).

A este reconhecimento incidental de uma parte da sentença aplicam-se já as regras processuais do Estado-Membro requerido, cabendo já à respectiva lei a definição dos casos e limites à suscitação da questão por via incidental.

No caso, a nosso ver, existe uma razão inultrapassável pela qual esse reconhecimento não pode ser feito por via incidental relacionada com o princípio do pedido que norteia o nosso sistema jurídico-processual[...].

O requerente não suscitou a questão do reconhecimento, tão pouco a título incidental, suscitou sim, e a título principal, o pedido de revisão também dessa parte da sentença estrangeira. Ora os pedidos de revisão e de reconhecimento de uma sentença estrangeira são pedidos distintos até pela simples razão de que se filiam em factos jurídicos concretos totalmente distintos: no caso do reconhecimento os factos do artigo 22.º do Regulamento 2201/2003, no caso da revisão a verificação dos factos elencados no artigo 980.º do Código de Processo Civil.

Por esse motivo, esta Relação não pode afinal de contas pronunciar-se sobre o reconhecimento da sentença na parte em que decretou o divórcio sob pena de a sua decisão ser nula por excesso de pronúncia já que desse modo estaria a decidir sobre uma questão que não se encontra suscitada (nem sequer a título incidental, o que está pedido e a título principal é a revisão) e a apreciar factos jurídicos concretos que não foram invocados em momento algum.

Podemos assim concluir que a acção de revisão deve improceder no que concerne ao reconhecimento da sentença estrangeira na parte em que decretou o divórcio.

Vejamos então agora se deve ser concedida a revisão da sentença na parte em que homologou o acordo de partilha dos bens comuns.

Como já vimos, a decisão revidenda foi proferida por tribunal estrangeiro e respeita a uma relação jurídica privada.

O sistema português de revisão de sentença estrangeira não se destina a um reexame do mérito da causa, mas tão só à verificação do preenchimento dos requisitos previstos nas diversas alíneas do artigo 980º do Código de Processo Civil.

Dispõe este preceito legal que para uma sentença ser confirmada é necessário o seguinte:

«a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada por fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.»

Ora, no caso, o exame da sentença proferida pelo tribunal espanhol não deixa dúvidas sobre a autenticidade do documento nem sobre a inteligibilidade do mesmo, sendo que o respectivo efeito jurídico e a forma de o alcançar são regulados pelas leis daquele Estado.

A partilha de bens comuns com adjudicação de parte deles a um dos cônjuges e outra parte ao outro cônjuge não é susceptível de conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Não decorre dos autos, nem se dispõe de elementos para afirmar que não se verificam os demais requisitos previstos na citada norma legal (cf. artigo 984.º do Código de Processo Civil).

Deve por isso ser concedida a revisão a esta parte da sentença revidenda."

*3. [Comentário] Importa fazer as seguintes observações:

-- O autor formulou, na parte relativa ao reconhecimento do decretamento do divórcio por uma sentença espanhola, um pedido inútil, dado que esse decretamento já estava automaticamente (ou ex lege) reconhecido em Portugal, por força do disposto no art. 21.º, n.º 1, Reg. 2201/2003; a RP devia ter considerado que o autor não tinha interesse em agir e, nessa parte, ter absolvido a ré da instância (art. 278.º, n.º 1, al. e), CPC);

-- O reconhecimento a título incidental previsto no art. 21.º, n.º 4, Reg. 2201/2003 não foi pedido pelo autor, nem o poderia ter sido; o reconhecimento incidental é o reconhecimento que é apreciado de forma incidental numa acção em que, a título prejudicial, se discute se a sentença estrangeira pode ser ser reconhecida num Estado-Membro; o reconhecimento incidental, ex natura, nunca pode ser formulado numa acção que, embora de forma equivocada, visa, ex professo ou a título principal, o reconhecimento em Portugal de uma sentença de divórcio espanhola;

-- Os art. 28.º ss. Reg. 2201/2003 respeitam à execução de uma decisão sobre o exercício da responsabilidade parental relativa a uma criança; não há que aplicar esses preceitos à "execução" de uma decisão de divórcio, que, como se sabe, não é sequer susceptível de "execução",

MTS