"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/04/2021

Jurisprudência 2020 (188)


Acção pauliana;
título executivo


1. O sumário de RE 8/10/2020 (842/14.0T8SLV-B.E1) é o seguinte:

A sentença, proferida em acção pauliana, que julgou ineficaz, em relação ao aí autor, a venda efectuada por um dos réus ao outro, constitui título executivo contra o réu comprador.

Esse título executivo confere, ao réu comprador, legitimidade passiva em acção executiva movida pelo autor com vista à satisfação de um crédito seu sobre o réu vendedor à custa dos bens cuja venda foi impugnada.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os factos relevantes para a decisão do recurso, evidenciados pelos autos deste, são os seguintes: [...]

2 – Condomínio do Edifício (…), (…) e (…), exequentes, requereram, nesta execução, em 25.04.2019, a intervenção provocada de (…) – Gestão e Inovação Turística, S.A., invocando a sentença proferida na acção declarativa n.º 2406/13.6TBPTM, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Cível de Portimão, transitada em julgado em 06.02.2019.

3 – A acção referida em 2 foi proposta por Condomínio do Edifício (…), (…) e (…) contra, entre outros, (…) – Construção Civil, Lda., e (…) – Gestão e Inovação Turística, S.A..

4 – O dispositivo da sentença referida em 2 é o seguinte:

“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Declaro ineficaz em relação aos autores Condomínio do Edifício (…), (…) e (…) os seguintes actos de compra e venda efectuados pela 1.ª ré “(…)” em 21.05.2012 à 2.ª ré “(…)” [...]

Podendo executar os mesmos também no património da 2.ª ré “(…)”, com vista a obter a satisfação do seu crédito sobre “(…)”, correspondente à prestação de facto a que se refere a sentença proferida no processo n.º 660/04.3TBPTM do extinto Tribunal da Comarca de Portimão e a € 80.000,00 (oitenta mil euros) devidos aos dois últimos autores … e … (€ 40.000,00 x 2), acrescido de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos, até efectivo e integral pagamento. (…)”

*

2 – Se o despacho recorrido determinou que a recorrente responde pela dívida exequenda com todo o seu património:


A recorrente interpreta o despacho recorrido como tendo determinado que ela responde pela dívida exequenda com todo o seu património, baseando-se na circunstância de se ter considerado, naquele despacho, que, com a sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM, se formou título executivo contra si, e que, consequentemente, ela, recorrente, passou a ter a qualidade processual de executada. Em consonância com tal interpretação do despacho recorrido, a recorrente pretende a revogação deste último e a sua substituição por decisão “que ordene o prosseguimento da execução nos bens relativamente aos quais foi declarada ineficaz a venda feita à recorrente, revogando-se a decisão que julgou existir título executivo contra a recorrente como se prosseguisse em todo o seu património de forma a poder concretizar a prestação exequenda.”

A interpretação que a recorrente faz do despacho recorrido não tem razão de ser. Nomeadamente, as asserções, constantes do mesmo, segundo as quais a sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM constitui título executivo contra a recorrente e, consequentemente, esta passa a ter a qualidade processual de executada, não legitimam tal interpretação. Passamos a demonstrar o acerto das referidas asserções e que as mesmas não possuem o significado que a recorrente lhes atribui.

Como o despacho recorrido expressamente refere, a sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM constitui título executivo na medida em que “é desta que resulta propriamente a legitimação da intervenção da ora requerida”. Precisamente porque esta última, ora recorrente, não consta, como devedora, do título executivo com base no qual a acção executiva foi instaurada, a sentença que, posteriormente, julgou procedente a acção pauliana relativamente à recorrente, aí demandada na qualidade de adquirente de bens da devedora/executada, constitui título executivo contra a mesma recorrente, legitimando o seu ingresso, como parte passiva, na acção executiva [...]. Isso não significa que, substantivamente, a recorrente passe a ser condevedora. Substantivamente, a situação da recorrente é aquela que foi fixada na sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM: terceira titular de bens que, por efeito da procedência da impugnação pauliana, passam a poder ser executados com vista à satisfação do crédito exequendo, nos termos dos artigos 616.º, n.º 1, e 818.º, 2ª parte, do Código Civil. Processualmente, a mesma sentença constitui título executivo para o efeito de legitimar o ingresso da recorrente na acção executiva como parte passiva, como executada. Porém, do ponto de vista substantivo e como não podia deixar de ser, a medida em que o património da recorrente responde, na acção executiva, pela satisfação do crédito dos exequentes, é estritamente aquela que resulta da sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM. É líquido que apenas os bens cuja compra e venda foi declarada ineficaz relativamente aos recorridos podem ser atacados, na acção executiva, através da penhora e subsequente venda, tendo em vista a satisfação do crédito exequendo. O despacho recorrido não determinou que todo o património da recorrente responda pela satisfação deste crédito. Se o fizesse, então sim, seria ilegal e teria de ser revogado.

Para que os bens cuja compra e venda foi declarada ineficaz relativamente aos recorridos possam ser penhorados e vendidos nesta execução, é indispensável que a recorrente assuma a posição processual de executada, como resulta, por analogia, do artigo 54.º, n.º 2, do CPC [...], bem como do artigo 735.º, n.º 2, do mesmo código. Daí não decorre que, substantivamente, a recorrente passe a ser devedora e, como tal, responda pela dívida exequenda com todo o seu património. A assunção da qualidade processual de executada por parte da recorrente visa apenas assegurar que os bens acima referidos sejam susceptíveis de penhora e venda com vista à satisfação do crédito exequendo. O restante património da recorrente está, obviamente, a salvo, pois, do ponto de vista substantivo, não responde pela dívida exequenda.

Conclui-se, assim, que a recorrente interpretou mal o despacho recorrido. Note-se que os recorridos requereram a intervenção principal da recorrente na acção executiva com fundamento na procedência da impugnação pauliana na parte em que foi deduzida contra aquela, invocando o disposto nos artigos 616.º, n.º 1, e 818.º do Código Civil, e, coerentemente, requereram também que a penhora incidisse sobre os dois bens cuja compra e venda foi declarada ineficaz relativamente a si (n.ºs 6 e 7 dos factos acima julgados provados). O despacho recorrido, por seu turno, também não ultrapassou esse limite, cingindo-se aos dois referidos bens e tendo sempre por referência o conteúdo da sentença proferida na acção pauliana. O mesmo despacho refere, nomeadamente que a acção executiva prosseguirá “sobre o património da requerida”, mas, como não podia deixar de ser, “com base na sentença proferida no processo n.º 2406/13.6TBPTM”, ou seja, tendo em vista a efectivação daquilo que nesta foi decidido e nada mais que isso."

[MTS]