"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/04/2021

Jurisprudência 2020 (181)

Princípio do contraditório;
decisão-surpresa


1. O sumário de RL 8/10/2020 (95274/18.9YIPRT.L2-6) é o seguinte:

I - Tendo a Relação decidido, por decisão transitada em julgado, rejeitar recurso interposto pela ré contra sentença que julgou procedente a acção e a condenou no pedido, com fundamento na sua ilegitimidade, por se mostrar autuada no processo sentença anterior, que considerou válida e eficaz, a julgar improcedente a acção e a absolvê-la do pedido, não pode a 1.ª instância, sob pena de ofensa do caso julgado formal (art.º 620.º/1 do CPC) e da obediência devida às decisões dos tribunais superiores, proferir decisão diferente a considerar relevante a segunda sentença proferida que fora objecto de recurso rejeitado pela Relação.

II - Além de violadora do caso julgado formal e da obediência devidas às decisões dos tribunais superiores, a decisão da 1.ª instância é uma decisão nula, por excesso de pronúncia (art.º 615.º/1-d), 2.ª parte do CPC), dado que se pronuncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se podia pronunciar.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II - Objecto do recurso

O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 5.º, 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 3, do CPC), sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608, n.º 2., “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal. E porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da(s) decisão(ões) recorrida(s).

Consoante resulta das conclusões das alegações da Recorrente, considerando ambos os recursos interpostos, cabe apreciar as seguintes questões:

- Da nulidade do Despacho proferido a 07-11-2019, por violação dos princípios da extinção do poder jurisdicional e do contraditório; [...]

III - Fundamentação [...]

B) Do mérito dos recursos

A Recorrente mostra-se irresignada com o despacho de 07-11-2019, com a ref.ª Citius 142890816 (fls. 92) [...].

E reagiu contra tal despacho através de dois recursos, o primeiro apresentado a 19-11-2019 [...] e o segundo a 27-11-2019 [...], que abrange, igualmente, a sentença proferida a 14-12-2018, invocando a nulidade do referido despacho judicial, por violação do princípio da extinção do poder jurisdicional (art.º 613.º, n.º 1, do CPC) e inobservância do princípio do contraditório (art.º 3.º, n.º 3, do CPC).

Vejamos.

A decisão sob censura pronunciou-se sobre o requerimento apresentado pela Ré, aqui Recorrente, a 28-06-2019 (fls. 65), no qual pedia que se aclarasse se, perante o conflito manifesto entre sentenças, se julgava como válida e eficaz a sentença datada de 13-12-2018, constante dos autos em suporte escrito.

O despacho em crise veio a ser reparado pela Senhora Juíza a quo, por despacho lavrado a 02-03-2020, com a ref.ª Citius 144063612 (fls. 150), no segmento em que determinou o desentranhamento da decisão datada de 13-12-2018 (“escrito” nas palavras da Senhora Juíza), incorporada de fls. 34 a 41 dos autos.

Considera a Recorrente que a Senhora Juíza titular do processo não deveria ter prolatado a decisão de que recorre, datada de 14-12-2019 14h40m, uma vez que se extinguira o seu poder jurisdicional na sequência da prolação da decisão final datada de 13-12-2018 e assinada digitalmente (com a ref.ª Citius 139534576).

O artigo 613.º, n.º 1, do Cód. do Proc. Civil (doravante CPC), aplicável aos despachos por efeito da remissão do seu n.º 3, estatui que «proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.»

Porém, do seu nº 2, resulta que «é lícito (...) ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la, nos termos dos artigos seguintes.» [...]

O princípio da extinção do poder jurisdicional, consagrado no citado art.º 613.º do CPC, significa que o “juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.

Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível.”[Cf.. José Alberto dos Reis, ob. cit. [sic],  pág. 126]. 

Como se exarou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Maio de 2011, proferido no Proc.º n.º 666-C/1998.P1 [Desembargador Rodrigues Pires], acessível em www.dgsi.pt., “Este princípio justifica-se por uma razão doutrinal. O juiz, quando decide, cumpre um dever - o dever jurisdicional - que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.

Justifica-se também por uma razão pragmática. Consiste esta na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão”. [ Cf. José Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 127]

De realçar ainda que o poder jurisdicional extingue-se logo que a decisão foi exarada no processo e portanto mesmo antes das partes serem notificadas.[ Cf. José Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 127

Como se disse, a possibilidade de rectificação a que alude o art.º 614.º do CPC restringe-se a situações de erro material, que não se confundem com erro de julgamento.

O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou do despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever «absolvo» e por lapso, inconsideração, distracção, escreveu precisamente o contrário: «condeno».

Já o erro de julgamento é completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode socorrer-se do art.º 615.º para emendar o erro.[ Cf. José Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 130]

Revertendo ao caso concreto, verifica-se que foi incorporada nos autos uma decisão impressa em suporte de papel, assinada digitalmente pela Senhora Juíza a quo e datada de 13-12-2018, pela qual julgou improcedente a acção e absolveu a Ré do pedido e que a 14-12-2018, por razões que desconhecemos mas que para aqui não relevam, foi inserida no Citius uma outra decisão que concluiu pela procedência da acção e pela condenação da Ré/Recorrente a pagar à Autora/Recorrida a quantia de 7.727,50 €, acrescida de juros de mora, desde 3 de Fevereiro de 2018 até integral e efectivo pagamento, às taxas de natureza comercial aplicáveis.

O n.º 2 do artigo 152.º do CPC define a sentença como «o acto pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa».

A palavra sentença é empregada no artigo 607.º e segs. em sentido estrito: designa unicamente a peça escrita que, em seguida ao encerramento do julgamento, o juiz tem de elaborar no processo para decidir a causa. O referido normativo estatui sobre a elaboração da sentença e sua estrutura, dizendo que a mesma começa por um relatório, em que se identificam as partes e o objecto do litígio, enunciando-se, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar (n.º 2). Seguem-se os fundamentos, de facto e de direito, e a decisão (n.º 3).

Ora, analisando a peça escrita elaborada e assinada digitalmente pela Senhora Juíza titular do processo a 13-12-2018, com recurso à aplicação informática Citius, que foi incorporada, em suporte de papel, no processo físico [...], logo se alcança que a mesma tem a estrutura de uma sentença, pela qual se decidiu do mérito da causa, julgando a acção improcedente, por não provada e absolvendo a Ré, aqui Recorrente, do pedido.

Como se refere no despacho recorrido, sobre a matéria rege o artigo 132.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que estabelece que “a tramitação dos processos é efectuada electronicamente em termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, (…)”. [...]

Certo é que no caso, a tramitação electrónica do processo revelava, apenas, a sentença datada de 14-12-2018, 14h40m, notificada a 17-12-2018.

E foi por esta razão que a Senhora Juíza a quo decidiu como decidiu, no despacho recorrido, de 07-11-2020, no sentido de que a sentença válida e eficaz era a prolatada a 14-12-2018, mas fê-lo com ofensa do caso julgado formal (art.º 620.º, n.º 1, do CPC), com excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC) e com desrespeito do princípio do contraditório (art.º 3.º, n.º 3, do CPC).

Há ofensa de caso julgado formal, porque a decisão recorrida contraria a decisão proferida no processo pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 12-06-2019, e transitada em julgado, que indeferiu liminarmente o recurso de apelação dirigido contra a sentença proferida a 14-12-2019, 14h40m, por considerar que a Ré não tinha legitimidade para o recurso em face da sentença autuada nos autos e prolatada a 13-12-2018, que julgou improcedente a acção e a absolveu do pedido.

Nessa decisão de indeferimento liminar, o Exmo. Desembargador Relator não deixou de ponderar a questão de a sentença estar ou não inserida no CITIUS como bem resulta do seguinte excerto:

“O Citius existe por causa da Justiça e não a Justiça por causa do Citius.

A sentença que consta dos autos e que deve ser tomada em consideração data de 13 de Dezembro de 2018 e absolveu a Ré, isto é, MESOSYSTEM, LDA do pedido. (…)”

Esta decisão da Relação de Lisboa, de 12-06-2019, transitou em julgado [...] e com ela formou-se caso julgado formal, com força obrigatória dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida (art.º 620.º, n.º 1, do CPC).

Tendo decidido em termos diferentes, a decisão recorrida, de 07-11-2019, ofendeu o caso julgado formal e a obediência devida às decisões dos tribunais superiores.

É nesta perspectiva que o caso sub judice tem de ser encarado: da ofensa de decisão anterior transitada em julgado. Ou seja, o enfoque não deve ser feito, como faz a Recorrente, na violação do princípio da extinção do poder jurisdicional, sobre o qual fizemos umas breves considerações, para se afirmar a validade da primeira decisão em detrimento da segunda.

Na verdade, essa discussão está-nos vedada a partir do trânsito em julgado da decisão do Exmo. Relator desta Relação de Lisboa, de 12-06-2019, sobre a qual se formou caso julgado formal. Para aqui nem sequer releva saber da bondade desta decisão ou da decisão recorrida, de sentido inverso, sendo apenas de referir que esta última ofendeu o caso julgado e a obediência que era devida à decisão deste tribunal superior.

Mas a decisão recorrida também se pronunciou sobre matéria de que não deveria ter tomado conhecimento e na sua prolação foi desrespeitado o princípio do contraditório (falta de audição prévia das partes), pois não era expectável que a Ré, ou mesmo a Autora, perspectivassem sequer uma decisão como a aqui posta em crise, na medida em que a decisão da Relação de Lisboa teve como fundamento precisamente a ilegitimidade da Ré/Recorrente por constar dos autos, em suporte de papel, sentença assinada e datada de 13-12-2018 que decidira a favor da Ré.

Na verdade, como bem alega a Recorrente, o tribunal recorrido proferiu o despacho de 07-11-2019 sem dar às partes a oportunidade de se pronunciarem previamente sobre a questão, constituindo a decisão proferida uma verdadeira decisão-surpresa, pois não era possível a qualquer das partes perspectivar, sequer, uma decisão como a prolatada e aqui em crise, após a decisão do Senhor Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-09-2019, que rejeitou liminarmente o recurso interposto pela Ré contra a sentença de 14-12-2018, fundamentando esta decisão na existência de sentença, autuada nos autos, que absolve a Ré do pedido.

E fê-lo, como se disse, pondo em causa a decisão judicial proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que vincula a 1.ª instância.

O princípio do contraditório é estruturante do nosso direito processual, tanto assim que surge consagrado no art.º 3º do Código de Processo Civil como forma de evitar a chamada “decisão-surpresa”, constituindo inclusivamente uma manifestação do direito fundamental de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa.

Nos termos do n.º 3 do art.º 3º o juiz deve observar e fazer cumprir o princípio “ao longo de todo o processo”. [...]

Por conseguinte, manifesto se torna que estamos confrontados com uma decisão-surpresa, vício que acarreta a nulidade da decisão em crise, por excesso de pronúncia (art.ºs 615.º, n.º 1-d, 2.ª parte, ex vi do 613.º, n.º 3, 666.º e 685.º, todos do CPC), e que é conceptualmente autónomo e distinto do vício processual que lhe deu causa (a falta audição prévia das partes) e que é sancionado pelos artigos 3.º, n.º 3 e 195.º, n.º 1, do CPC.

A propósito da confusão entre nulidades processuais e nulidades de sentença (ou de despachos – cf. artigo 613.º/2 do CPC), transcreve-se aqui o Comentário “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária” do Professor Miguel Teixeira de Sousa (no Blog IPPC).

“O CPC trata das nulidades processuais nos art.ºs 186.º a 202.º e das nulidades da sentença e do acórdão nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º. Perante isto, pode colocar-se a questão: por que motivo têm tratamento em diferentes lugares do CPC as nulidades processuais e as nulidades da sentença? Ou noutra formulação: dado que a sentença é um acto processual, qual o motivo para que a nulidade da sentença não esteja tratada em conjunto com as nulidades processuais? Ou noutra formulação ainda mais precisa: constando do art.º 195.º CPC uma regra geral sobre a nulidade dos actos, qual a justificação para que exista uma regulamentação específica sobre a nulidade da sentença?

A resposta tem a ver com a dupla perspectiva pela qual a sentença pode ser considerada (assim como qualquer outro acto processual) e é a seguinte: a sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.

Disto decorre que uma sentença pode constituir uma nulidade processual, se for considerada na perspectiva da sentença como trâmite: basta, por exemplo, que ela seja proferida fora do momento apropriado na tramitação processual. Um exemplo (naturalmente académico): se, no procedimento comum, o juiz proferir uma decisão logo a seguir ao termo da fase dos articulados, verifica-se uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, porque foi praticado um acto que a lei, naquele momento, não permite.

Importa notar, no entanto, que, atendendo à diferença da sentença como trâmite e como acto, a nulidade processual do art.º 195.º CPC nada tem a ver com a nulidade da sentença dos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC. É fácil verificar que assim é.

A nulidade processual decorrente do disposto no art.º 195.º, n.º 1, CPC existe mesmo que a sentença não padeça de nenhum outro vício, nomeadamente daqueles que estão enumerados no art.º 615.º CPC. Quer dizer: a sentença pode conter toda a fundamentação exigível, pode não padecer de nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão, pode não conter nenhuma omissão ou nenhum excesso de pronúncia e pode não condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, mas, ainda assim, porque é proferida fora do momento adequado, verifica-se a nulidade processual imposta pelo art.º 195.º, n.º 1, CPC.

Voltando ao exemplo (académico) acima referido: o proferimento da sentença logo depois da fase dos articulados constitui uma nulidade processual; no entanto, essa sentença pode não padecer de nenhum dos fundamentos de nulidade enumerados no art.º 615.º, n.º 1, CPC.

O inverso também é possível (e é, aliás, a situação mais frequente): se a sentença é proferida no momento processualmente adequado, mas se a mesma não contém toda a fundamentação exigível, padece de uma contradição entre os fundamentos e a decisão, contém uma omissão ou um excesso de pronúncia ou condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, não há nenhuma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, embora se trate de sentença que é nula segundo o disposto nos art.ºs 615.º, n.º 1, 666.º e 685.º CPC.

3. Assente esta distinção básica entre a sentença considerada como trâmite e a sentença considerada como acto, importa tratar agora do problema relacionado com as decisões-surpresa e com a sua correcta solução jurídica. A questão a resolver é a seguinte: uma decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC ou uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC?

Segundo se pode imaginar, as dificuldades sentidas pela jurisprudência decorrem da circunstância de a decisão-surpresa resultar da omissão da audição prévia das partes e de, portanto, parecer que a ela está subjacente uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC. Há aqui, no entanto, uma confusão que importa procurar desfazer.

A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa).

Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência.

Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.

Note-se que, como se tem vindo a repetir neste Blog, esta solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo.[…]

4. Uma última observação: é preciso ler com muito cuidado toda e qualquer doutrina e toda e qualquer jurisprudência que se tenha pronunciado sobre o problema antes de ter surgido no panorama legislativo português a temática da decisão-surpresa.

Efectivamente, não se pode dizer que já antes não houvesse casos que, agora, seriam enquadráveis na decisão-surpresa. O que faltava na altura era a visão de que a decisão-surpresa constitui, em si mesma, um vício processual autónomo e próprio.”

[MTS]