"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/04/2021

Jurisprudência 2020 (194)


Superveniência subjectiva;
alteração da causa de pedir; igualdade das partes*


1. O sumário de RG 20/10/2020 (297/19.2T8PTL-A.G1) é o seguinte:

I É admissível a alteração ou ampliação da causa de pedir com base na alegação de factos supervenientes.

II Dos artºs. 265º, nº. 1, 588º e 611º, nºs. 1 e 2, do C.P.C., resultam as seguintes possibilidades:

- alteração ou ampliação da causa de pedir em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, devendo ser apresentada a aceitação da confissão em 10 dias e simultaneamente ou nos 10 dias seguintes apresentada a alteração ou ampliação;

- se a alteração ou ampliação implicarem a alegação de factos novos supervenientes, deve ser apresentada nos prazos previstos no artº. 588º, consequência ou não de confissão;

- porém se o facto que serve de fundamento à alteração ou ampliação é alegado pelo réu em sede de impugnação indireta, esse facto nem serve para fundamentar essa alteração ou ampliação, nem pode ser atendido ao abrigo da superveniência prevista no artº. 588º do C.P.C.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Conforme bem refere o tribunal recorrido, a possibilidade de apresentação de articulado superveniente está diretamente relacionada com o disposto no artº. 611º, nºs. 1 e 2, do C.P.C., que consagra que a sentença deva ser atual, tomando em consideração todos os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito produzidos até ao encerramento da discussão, desde que, segundo o direito substantivo aplicável, eles influam na existência ou conteúdo da relação controvertida. Desde logo porém estabelece a ressalva da verificação das condições em que pode ser alterada a causa de pedir –artºs. 264º e 265º do C.P.C.-, ou do respeito pelas restrições previstas noutras disposições legais, o que se entende estar a referir-se ao respeito pelo disposto no artº. 588º do C.P.C., além doutros (cfr. António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, “Código de Processo Civil Anotado, Vol I, pag. 732).

Conforme decorre do artº. 588º, nº. 2, citado, a superveniência factual tanto pode ser objetiva, como subjetiva. Ocorre a superveniência objetiva quando os factos têm lugar após o decurso do prazo para a apresentação dos articulados. Verifica-se a superveniência subjetiva quando os factos ocorreram em momento anterior ao prazo para a apresentação dos articulados, mas a parte só deles teve conhecimento posteriormente, sendo que, neste caso, tem de ser efetuada a prova da superveniência.

Do exposto decorre que o articulado superveniente é rejeitado se for extemporâneo ou se os factos aí alegados não interessarem à decisão da causa (do ponto de vista de quem o vem alegar, acrescentamos nós).

Face à ressalva do artº. 611º, nº. 1, citado, esta matéria chama outra à aplicação.

O artº. 260º do C.P.C., estabelece o princípio da estabilidade da instância dizendo que “Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”. Com ele deve ser conjugado o artº. 564º, b), do C.P.C., que estatui que a citação do réu produz, além do mais, o efeito de tornar estáveis os elementos essenciais da causa, nos termos do artigo 260.º

Do exposto decorre que após a citação do réu a modificação dos elementos subjetivos –partes da ação- e objetivos –a causa de pedir e o pedido- só pode ter ocorrer nos casos em que a lei a consente e o seu exercício depende da verificação dos requisitos que a lei impõe, ainda que, uma vez preenchidos os requisitos dos casos legais de modificação, o direito processual de operar essas modificações se assuma como um direito potestativo cujo exercício depende somente da vontade do interessado –cfr. Ac. da Rel. do Porto de 5/5/2016 (www.dgsi.pt).

A modificação dos da causa de pedir e pedido pode ter lugar por acordo das partes ou sem acordo, conforme previsto nos artºs. 264º e 265º do C.P.C..

Restringindo ao que interessa ao caso, segundo o artº. 265º, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor. O pedido pode ser reduzido em qualquer altura e pode ainda ser ampliado até ao encerramento da discussão em 1ª instância desde que a ampliação seja o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.

A causa de pedir é o ato ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer, direito que não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um ato ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir – o ato ou facto jurídico concreto em que o autor se baseia para formular o seu pedido, de que emerge o direito que se propõe fazer declarar –cfr., entre muitos outros, José Alberto dos Reis, “Comentário ao CPC”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pag. 369 e 374 e seg.; Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pags. 110 e seg.; Antunes Varela, e Outros, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, pags. 232 e segs. e J. Lebre de Freitas, “CPC Anotado”, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pags. 321 e seg..

Como se sumariou no Ac. da Rel. do Porto de 9/7/2014 (dgsi.pt), “A causa de pedir corresponde ao conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer, mas só alguns destes factos –os essenciais- é que servem a função de individualização da causa de pedir, sendo esta que interessa à verificação da exceção de caso julgado.” , ou seja, os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido, ou factos principais: artºs. 552º, nº. 1, d), 5º, nº. 1, 574º, nº. 1, e 581º, nº. 4, todos do C.P.C.).

Diz-se então que a nossa lei processual civil consagrou a teoria da substanciação.

É sabido que a causa de pedir numa ação de responsabilidade civil é complexa e abrange todos os pressupostos dessa responsabilidade civil.

No caso dos autos não é controvertido que a ação tal como configurada pelo A. através da estruturação da causa de pedir evidenciada pelos factos essenciais alegados, é uma ação de responsabilidade civil contratual.

E no caso em apreço, quando se pretende invocar como fundamento dos pedidos o facto de a entidade emitente do produto em que o A. investiu ser a XIF “desde o início”, quando na p.i. se alega que teria havido alteração superveniente da entidade emitente (de X para XIF), estamos necessariamente perante uma alegada superveniência subjetiva pois a emissão do produto em causa nos autos reporta-se a fevereiro de 2012, a ação é de 2019, mas o A. diz que só com a apresentação da contestação do R. recorrente soube que a entidade emitente do produto foi sempre a XIF.

E efetivamente a pronúncia sobre a admissibilidade do articulado não pode deixar de passar pela análise da causa de pedir, já que dúvidas não há que o A. passa a estribar o seu pedido numa outra causa, para além da violação dos deveres de informação quanto

- à alteração da entidade emitente do produto;

- à possibilidade de resgate do produto.

Cremos porém que vir agora, e face ao alegado em contestação, dizer que passa a invocar a falta de informação quanto à entidade emitente do produto ser a XIF desde o início, acrescentando que se o soubesse não teria subscrito o produto (o que remete para o regime do erro do artº. 251º do C.C. e para a responsabilidade pré-contratual conforme artº. 227º, nº. 1, C.C., sem nos preocuparmos aqui com a correta integração da conduta das R.R., designadamente se obrigacional no caso do 1º R., e sem apelo às normas que regem as suas condutas designadamente as do CVM), é algo incompatível com a inicial alegação de alteração superveniente dessa entidade. Não estamos por isso perante uma ampliação da causa de pedir, mas antes perante uma alteração da mesma, nesse segmento –a causa de pedir tem agora um outro fundamento fáctico, incompatível com um outro constante da p.i. (ou se diz que houve alteração, ou se diz que desde o início foi sempre a mesma entidade, pretendendo daí retirar as devidas ilações; está a evidenciar-se uma outra conduta ilícita que substitui aquela).

A introdução da referência que o A. faz no pedido à violação de deveres pré-contratuais não é porém relevante, uma vez que o tribunal não está adstrito à qualificação jurídica feita pelas partes e essa introdução não ter qualquer relevância prática, não significando na verdade qualquer alteração ou ampliação do pedido, visto este como o efeito prático jurídico visado (cfr. artº. 5º, nº. 3, C.P.C.). Nessa medida entendemos que não houve verdadeira alteração do pedido e por isso consideramos prejudicadas as razões apresentadas pelo recorrente para a sua inadmissibilidade.

Dispõe o artº. 265º, nº. 1, já citado, que na falta de acordo –sendo este o caso- a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita nos 10 dias a contar da aceitação.

Tem vindo a ser discutida a conjugação do artº. 611º, com os artºs. 265º e 588º, todos do C.P.C., uma vez que este último não coloca os entraves que resultam do outro (além da situação obvia de que o artº. 265º só vale para o demandante e o artº. 588º vale para demandante e demandado). E aceita-se a tese que defende que os factos constitutivos cuja alegação superveniente é permitida tanto podem destinar-se a completar a causa de pedir inicial, como podem implicar uma efetiva alteração ou modificação da causa de pedir –tese de Miguel Teixeira de Sousa, em oposição à tese de Castro Mendes, e Lopes Cardoso, obras citadas no “Código Processo Civil Anotado” de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, pag. 615 e 616 do Vol 2º da 3ª edição, criticamente analisadas por estes autores que aderem à posição de Miguel Teixeira de Sousa. Ou seja, a alteração ou ampliação da causa de pedir é também admissível com base em factos supervenientes.

Mas já assim não é quando o facto em questão faz parte daqueles que o R. pretende alegar a título de impugnação indireta. [...]

Tratando-se por isso de impugnação motivada, esse facto é antes um facto instrumental, e, sendo-o, não pode justificar a utilização de um articulado superveniente para ser “aproveitado” pelo A.. Ele já está no processo, ainda que não estivesse o tribunal podia atender ao mesmo por ser instrumental probatório (artº. 5º, nº. 2, a), C.P.C.), o que não pode é ser fundamento do mérito da ação do ponto de vista da pretensão do A., por a tal obstar a estabilidade da causa de pedir invocada que não pode por esta via ser alterada.

O artº. 588º, nº. 1, abarca factos constitutivos da situação jurídica do autor, ou factos modificativos ou extintivos dessa situação (superveniência objetiva); bem como os factos constitutivos que o autor só conheça depois de apresentado o último articulado, ou factos impeditivos, modificativos ou extintivos que o réu só conheça depois do seu último articulado, embora ocorridos antes (superveniência subjetiva); a parte a quem o facto aproveita pode alega-lo em articulado superveniente e ele será tomado em consideração, se for provado, em sede de sentença ao abrigo do artº. 611º; este apenas não abarca os factos impeditivos de ocorrência superveniente, apenas abrangendo os de conhecimento superveniente (…) –cfr. obra citada de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, págs. 614 e 558 a 560.

O que nos levaria, se não tivéssemos já concluído pela inadmissibilidade do seu aproveitamento pelo A. no caso, para a questão da prova da superveniência.

Ao contrário do que sugere o 1º R. no seu recurso, as menções feitas pelo A. quer na p.i. quer na resposta às exceções e que o 1º R. destaca, não podem ser interpretadas, no contexto dos factos alegados pelo A., no sentido de que este já sabia que a entidade emitente era a XIF; o A. soube a partir de determinado momento que a entidade em causa era a XIF, mas tal não significa que ficasse a saber que era a XIF desde a sua subscrição do produto em 2012 (nem tal não decorre com clareza da carta de 4/1/2018), antes sendo essa versão compatível com o facto de poder pensar que, em momento posterior a 2012, tenha havido “substituição” da entidade emitente –o que é diferente de saber que desde o início, desde a subscrição em 2012, a entidade emitente era a XIF. Neste ponto assistiria razão ao A., se necessária fosse essa análise, não o dispensando contudo de fazer prova do conhecimento superveniente. Ou seja, não decorrendo da leitura das peças que já sabia, também não colhe a evidência de que não sabia, tal como consta do despacho recorrido -veja-se a alegação do 1º R. quanto ao código que acompanha o produto, que serve de seu “bilhete de identidade”, relativamente ao que não basta a mera alegação do A. de que não tinha meios/capacidade de conhecer/interpretar, afirmação que carece de prova que o A. não se dispôs a fazer no articulado que apresentou –nº. 5 do artº. 588º; havendo quem considere a hipótese dessa prova ainda ser feita por imperativo do artº. 411º do C.P.C., opinião que não partilhamos mas que aqui não cumpre aprofundar por não se suscitar.

Posto isto, e independentemente da falta de prova do conhecimento superveniente que o A. não estava dispensado de fazer, o articulado superveniente devia ter sido rejeitado por se não se tratar no caso da alegação de um facto constitutivo do direito do A. que possa ser levado em conta em sede de decisão a proferir, face à necessária conjugação dos artºs. 588º, nº. 1, e 611º, todos do C.P.C..

Em suma: nem a alteração da causa de pedir é permitida pelo artº. 265º do C.P.C.; nem pela conjugação dos artºs. 588º e 611º do mesmo o A. pode vir invocar a seu favor o “facto superveniente”, uma vez que o facto em causa não pode ser configurado e tido como constitutivo do direito do A., e, assim, também este articulado não é admissível.

Vislumbram-se por isso face aos artigos citados as seguintes possibilidades:

- alteração ou ampliação da causa de pedir em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, devendo ser apresentada a aceitação da confissão em 10 dias e simultaneamente ou nos 10 dias seguintes apresentada a alteração ou ampliação;

- se a alteração ou ampliação implicarem a alegação de factos novos supervenientes, deve ser apresentada nos prazos previstos no artº. 588º, consequência ou não de confissão;

- porém se o facto que serve de fundamento à alteração ou ampliação é alegado pelo réu em sede de impugnação indireta, esse facto nem serve para fundamentar essa alteração ou ampliação, nem pode ser atendido ao abrigo da superveniência prevista no artº. 588º do C.P.C."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a posição da RG.

b) O Autor alega (se também prova, isso é outra questão) que só em função da contestação de uma das Rés ficou a saber que a emitente de certas obrigações que aquele subscreveu era uma certa entidade.

Trata-se, em termos subjectivos, de um facto superveniente (art. 588.º, n.º 2, CPC). Note-se que o conhecimento desse facto poderia ter sido obtido de qualquer outra forma, mesmo fora do processo. Seria, então, sem dúvida um facto (subjectivamente) superveniente. Não pode ser a circunstância de o conhecimento ter sido obtido através da contestação de uma das Rés que impede essa mesma qualificação.

Nesse sentido, a RG deveria ter aceitado a alteração da causa de pedir. 

c) Não tendo aceitado a alteração da causa de pedir, a RG criou a seguinte situação:

-- O facto não pode ser utilizado pelo Autor como causa de pedir; logo, o facto não pode ser utilizado pelo Autor como fundamento da procedência da acção;

-- O facto pode ser utilizado pela Ré como impugnação de factos alegados pelo Autor; portanto, o facto pode ser utilizado pela Ré como fundamento da improcedência da acção.

Quer dizer: a RG construiu um sistema em que o facto só pode ser utilizado a favor de uma das partes. Trata-se de uma solução dificilmente compatível com o princípio da igualdade das partes (art. 4.º CPC).

d) Três breves observações:

-- O facto que é alegado por uma das Rés não é um facto instrumental (ou probatório), dado que não se destina a possibilitar, através da inferência própria da presunção natural, a prova de um outro facto;

-- A incompatibilidade entre a causa de pedir inicial e a nova causa de pedir não impede a alteração da causa petendi; é certo que essa incompatibilidade impede a ampliação da causa de pedir, mas é preciso não esquecer que, além da ampliação, também é admissível a alteração da causa de pedir;

-- A alteração da causa de pedir não é acompanhada necessariamente da alteração do pedido; portanto, não pode ser recusada a alteração da causa de pedir com o argumento de que o Autor não alterou o pedido.
 

MTS