"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/04/2021

Jurisprudência 2020 (185)


Matéria de facto;
poderes da Relação; dupla conforme* 


1. O sumário de STJ 24/9/2020 (127/16.7T8VGS.P1.S1) é o seguinte:

I. De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, a imputação de desrespeito pelos poderes da Relação, normativamente disciplinados, é apta a descaracterizar a dupla conformidade entre as decisões das instâncias, enquanto obstáculo à admissibilidade da revista (cfr. art. 671º, nº 3, do CPC) pelo que o presente recurso de revista é admissível pela via normal.

II. Resultando do teor da fundamentação do acórdão recorrido que a Relação procedeu à apreciação dos meios de prova invocados na apelação, não se limitando a aderir ao juízo probatório da 1ª instância, antes formando uma verdadeira convicção própria e autónoma, o acórdão recorrido não merece censura.

III. De acordo com a jurisprudência consolidada não cabe ao STJ sindicar o uso (ou não uso) de presunções judiciais pela Relação, excepto em caso de ilogicidade manifesta. No caso dos autos, apreciado o teor da fundamentação do acórdão recorrido, na parte relevante, considera-se que, diversamente do alegado pelos Recorrentes, não padece tal fundamentação de ilogicidade, manifesta ou não.

IV. Não merece censura a decisão do acórdão recorrido de não reapreciar facto impugnado que se mostra irrelevante para o desfecho da acção.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. Comecemos por apreciar a questão da alegada violação pela Relação das normas legais relativas à reapreciação da matéria de facto, constantes do art. 607º, nº 4, e do art. 662º, nº 1, do CPC.

A este propósito, socorremo-nos das palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 10/09/2019 (proc. nº 1067/16.5T8FAR.E1.S2), cujo sumário está disponível em www.stj.pt, para equacionar os termos em que a questão deve ser apreciada:

“(…) tem entendido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que a intervenção da 2.ª instância em matéria de facto, para ser efectiva, impõe a reapreciação das provas, devendo a mesma ser efectuada pela Relação com base na análise crítica da prova em que se fundamenta a decisão, através da formação de uma convicção própria, não bastando uma mera apreciação do julgamento efectuado.[nota 8: cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 09-09-2014, proc. nº 2380/08.0TBFAG.G1.S1, Relator Gregório Silva Jesus, de 13-09-2016, proc. nº 152/13.0TBIDM.C1.S1, Relator Fonseca Ramos e de 16-11-2017, proc. nº 499/13.5TBVVD.G1.S1, Relator Fernando Bento, disponíveis em www.stj.pt (sumários de acórdãos)]

Com efeito, no seguimento das alterações ao CPC introduzidas pela Reforma de 2013, no âmbito dos seus poderes de reapreciação da matéria de facto, compete à Relação “assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, portanto, desde que dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova encontre motivo para tal, deve introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem”.[nota 9: António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª Edição, págs. 286 e 287.

Daí que, conforme se refere no sumário do Acórdão do STJ de 04-10-2018 [nota 10: cfr. acórdão proferido no proc. nº 588/123TBPVL.G2.S1, Relatora Rosa Tching, disponível em www.dgsi.pt]:

“I - A apreciação da decisão de facto impugnada pelo tribunal da Relação não visa um novo julgamento da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal de 1.ª instância com vista a corrigir eventuais erros da decisão.

II - No âmbito dessa apreciação, incumbe ao tribunal da Relação formar o seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em primeira instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir (als. a) e b) do n.º do art. 662.º do CPC), à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do art. 607.º, n.º 5, ex vi do art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC.”

Importa pois averiguar se a Relação “face à impugnação da matéria de facto operada pelos recorrentes no seu recurso de apelação, cumpriu este seu poder/dever, tendo analisado criticamente a prova produzida no que concerne aos factos impugnados, e, dessa forma, formado uma convicção própria ou autónoma a respeito destes factos, sem que tal constitua um novo julgamento mas corresponda ao efectivo cumprimento destes ditames processuais.

Tendo presente estas orientações e compulsada a fundamentação do acórdão recorrido, na parte relativa à apreciação da impugnação da matéria de facto (que, pela sua extensão aqui não se reproduz), importa apreciar do cumprimento das exigências legais em vigor.

Afigura-se que a fundamentação do acórdão recorrido, ainda que aderindo genericamente ao princípio actualmente vigente segundo o qual a Relação tem de formar uma convicção própria ou autónoma a respeito dos factos impugnados, pontualmente parece reportar-se ainda ao regime processual anterior à reforma de 2013. É o que sucede com a afirmação, a fls. 655, de que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”, remetendo em nota para jurisprudência (“Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt”) anterior à referida reforma legislativa de 2013.

Contudo, esta e outras referências pontuais não são de molde a dar como verificada a alegada violação das normas legais processuais vigentes relativas à apreciação da impugnação da matéria de facto. Com efeito, resulta do teor da fundamentação do acórdão, fls. 659v-663, que a Relação procedeu à apreciação dos meios de prova invocados na apelação, não se limitando a aderir ao juízo probatório da 1ª instância, antes formando uma verdadeira convicção própria e autónoma. Na medida em que, como se salientou supra, a intervenção da Relação não se destina a assegurar um “novo julgamento”, mas antes a reapreciar o julgamento proferido pelo tribunal de 1ª instância, tendo em vista corrigir eventuais erros da decisão, o acórdão recorrido não merece censura.

Quanto à sub-questão da alegada irregularidade do acórdão recorrido por (também a respeito do juízo probatório sobre os pontos 9 e 10 dos factos provados e os pontos P, Q, R e U dos factos não provados) não ter não estabelecida presunção judicial (cfr. art. 351º do CC) no sentido propugnado pelos apelantes, é manifesta a sua improcedência.

Com efeito, e de acordo com a jurisprudência consolidada, não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso (ou não uso) de presunções judiciais pela Relação, excepto em caso de ilogicidade manifesta. Ora, apreciado o teor da fundamentação do acórdão recorrido, na parte relevante (fls. 655-663), considera-se que, diversamente do alegado pelos Recorrentes, não padece tal fundamentação de ilogicidade, manifesta ou não.

Conclui-se, assim, pela não verificação da alegada violação das normas processuais respeitantes à (re)apreciação do juízo probatório sobre os pontos 9 e 10 dos factos provados e os pontos P, Q, R e U dos factos não provados."

*3. [Comentário] O acórdão não suscita nenhuma objecção (a questão relativa à dupla conforme tem a solução que aqui sempre se defendeu), a não ser na parte relativa ao conhecimento das presunções judiciais pelo STJ.

Como já se referiu noutras ocasiões, a afirmação de que "não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso (ou não uso) de presunções judiciais pela Relação, excepto em caso de ilogicidade manifesta" é um bordão linguístico muito recorrente, mas que se nega a ele mesmo. Para verificar se há "ilogicidade manifesta" na inferência realizada através da presunção judicial é preciso começar por realizar essa inferência e, depois, avaliar se ela padece de "ilogicidade manifesta".
 
MTS