"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/01/2022

A posição em juízo do administrador do condomínio: et tu, Legislator?


1. O art. 2.º L 8/2022, de 10/1, deu nova redacção ao art. 1437.º CC. A nova versão do preceito é a seguinte:

Representação do condomínio em juízo

1 - O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele.

2 - O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.

3 - A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos.

Muito recentemente houve a oportunidade de publicar um post sobre a equivocada interpretação jurisprudencial da anterior versão do art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC (clicar aqui). Verifica-se agora que, infelizmente, as confusões se estendem ao legislador, pelo que tudo o que se disse no referido post pode ser transposto para a nova versão do art. 1437.º CC.

2. a) A novas redacções dos n.º 1 e 2 do art. 1437.º CC não são, sob o ponto de vista semântico, isentas de críticas:

-- No n.º 1, onde está "devendo" estaria muito melhor "que deve", de molde a evitar que se seja levado a ler o "devendo" como referido ao condomínio;

-- O afirmado no n.º 2 leva a concluir, numa interpretação literal, que, quando o administrador age "mandatado pela assembleia de condóminos", não pode actuar "como representante da universalidade dos condóminos".
 
b) Analisado globalmente, o novo art. 1437.º CC tem a vantagem de esclarecer que o administrador intervém em juízo sempre que esteja no exercício das suas funções, pelo que deixa de se justificar qualquer discussão sobre os casos em que se pode verificar essa intervenção do administrador em juízo. 

3. Infelizmente, a redacção dos n.º 1 e 2 do art. 1437.º CC padece de uma inaceitável confusão de conceitos. Isto porque, segundo a lição elementar da Ciência Processual Civil, quem é demandante ou demandado não pode ser, ao mesmo tempo, representante.

Com efeito, como se referiu no post acima citado, das duas, uma:

-- O administrador actua em juízo como parte demandante ou demandada; nesta hipótese, quem é parte é o administrador, e não o condomínio, pelo que a acção é proposta pelo ou contra o administrador; mas quem é parte não pode ser ao mesmo tempo representante; a ser considerado representante, caberia aliás perguntar quem é que esse representante representa em juízo, dado que o condomínio não se encontra presente na acção;
 
-- O administrador actua em juízo como representante do condomínio; neste caso, a parte demandante ou demandada, necessariamente presente em juízo, é o condomínio e o administrador é o seu representante; é assim que sucede em toda e qualquer situação de representação em juízo; por exemplo: a parte demandante ou demandada é o filho e os progenitores são os seus representantes; a parte demandante ou demandada é a sociedade e o gerente é o seu representante.

Em suma: de acordo com os ensinamentos básicos da Ciência Processual Civil, quem é parte não pode ser representante e quem é representante não pode ser parte. Estes ensinamentos não podem deixar de de ser considerados na interpretação do disposto nos 1 e 2 do novo art. 1437.º CC.

4. Procurando dar um sentido útil ao disposto nos n.º 1 e 2 do novo art. 1437.º CC não pode deixar de se dizer o mesmo que já se devia dizer a propósito da anterior redacção do preceito. Em concreto:

-- Os n.º 1 e 2 do art. 1437.º CC atribuem legitimidade activa ou passiva ao administrador do condomínio; quando se diz que alguém pode ou deve demandar ou pode ou deve ser demandado está-se necessariamente a referir a legitimidade processual; como se referiu no referido post, falar neste contexto da capacidade judiciária do administrador é fonte das maiores perplexidades e confusões;

-- Os n.º 1 e 2 do art. 1437.º CC atribuem ao administrador do condomínio -- ou seja, a esse administrador como parte processual -- a qualidade de substituto processual do condomínio; mais até:
 
 -- Dado que o administrador não está em juízo defendendo interesses próprios, mas antes os interesses alheios do condomínio, o que se consagra nos referidos preceitos é o que em termos doutrinários se qualifica como substituição processual representativa (como também se verifica, por exemplo, quanto ao administrador de insolvência);
 
-- Porque o n.º 2 do novo art. 1437.º CC permite que o administrador do condomínio seja "mandatado pela assembleia de condóminos", este preceito consagra, nesta parte, um caso de substituição processual voluntária.

Não pode deixar de se salientar que estes resultados interpretativos não são uma questão de opinião. Eles são impostos por premissas básicas da Ciência Processual Civil. Assim, é tudo uma questão de a seguir ou de a ignorar.

MTS