"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/06/2022

Jurisprudência 2021 (230)


Audiência prévia; dispensa;
decisão-surpresa; impugnação*


1. O sumário de STJ 16/12/2021 (4260/15.4T8FNC-E.L1.S1) é o seguinte:

I – Encontrando-se a nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar essa infracção às regras do processo é o recurso contra a decisão de mérito, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo.

II – O conhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos obriga, de forma imperativa, o juiz à designação de audiência prévia, a realizar nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer.

III – Havendo o juiz contrariado a tramitação processual até aí seguida (a audiência prévia foi designada várias vezes e entretanto adiada), procedido à (implícita) dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os respectivos requisitos processuais indispensáveis para esse mesmo efeito e passado ao conhecimento imediato do mérito da causa, a respectiva sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil.

IV – A violação das regras processuais que consiste na omissão ilegal da realização de uma diligência obrigatória que deveria ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), comunica-se à decisão de mérito subsequente que é proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria.

V – Tal decisão de dispensa da audiência prévia, que era no caso obrigatória, constituiu uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate da matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscrevendo ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil.

VI – A análise da situação e suas consequências seria completamente diferente se o juiz a quo houvesse, antes de proferir a decisão de mérito, notificado as partes, informando-as deste seu propósito e advertindo-as de que o faria na ausência de oposição destas, o que, a verificar-se, significaria, nessas circunstâncias, a sua anuência a esta agilização do processado, bem como o seu reconhecimento quanto à desnecessidade de alegarem de facto e de direito antes da prolação decisão que, conhecendo do fundo da causa, definiria a sorte do pleito.

VII - A dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.

VIII – O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No acórdão recorrido foi apreciada e decidida, desfavoravelmente ao recorrente, a única questão essencial suscitada no recurso de apelação e que consistia em saber se, sendo obrigatória a designação de audiência prévia, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, a sua não realização e o imediato conhecimento do mérito da causa conduziria à nulidade dessa sentença por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, com a inerente violação do princípio do contraditório e ofensa ao princípio da proibição de decisões surpresa (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil), obrigando à anulação do processado para a realização da diligência indevidamente omitida, sem que em tal aresto tivesse havido lugar à discussão substantiva dos fundamentos que estiveram na base da procedência – em primeira instância – da excepção peremptória de caducidade do direito a instaurar a presente acção.

Ora, esta controvérsia jurídica, que foi directamente suscitada perante o Tribunal da Relação (e de que a primeira instância, pela natureza das coisas, não se ocupou), reveste uma ligação intrínseca e indissociável à decisão final que se debruçou sobre o conhecimento do mérito da causa, que necessariamente influenciou e da qual não pode ser desligada.

É certo que, em teoria, a recorrente poderia perfeitamente ter impugnado na sua revista, a título subsidiário, o fundamento material para a procedência da excepção de caducidade, atacando nesse caso uma decisão (indiscutivelmente) final, o que legitimaria a apresentação da sua revista (e porventura também revista excepcional, nos termos do artigo 672º do Código de Processo Civil).

Só que essa estratégia (de impugnação do mérito quanto à procedência da caducidade) conflituaria em termos lógicos, de forma absolutamente insanável, com a razão de ser da própria revista que foi apresentada, tal como a mesma se encontra concretamente estruturada.

Com efeito, o que o recorrente pretende, desde logo e essencialmente, é que lhe seja reconhecido o direito a exercer previamente à decisão de mérito sobre a excepção de caducidade, o contraditório que lhe assiste nessa matéria, como especialmente lhe é permitido pelo artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, discutindo durante esta diligência (e não noutro momento processual posterior), de facto e de direito, as razões para não se julgar procedente a dita excepção peremptória.

Neste pressuposto, a discussão, em sede de recurso de revista, da questão de fundo (excepção de caducidade do direito a instaurar a presente acção) não faz, considerando este específico contexto, sentido algum, sendo aliás contraditória com a vontade e o direito da parte de só alegar - de facto e de direito - sobre a mesma em audiência prévia, que deveria obrigatoriamente ter tido lugar, em obediência ao disposto no artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, e nunca em fase posterior ao (precoce) conhecimento do mérito, constituindo, por isso mesmo, tal postura (a de decidir, sem mais e inesperadamente, dispensar a audiência prévia já anteriormente designada) uma manifestação de desprezo pelo exercício do seu direito de defesa legalmente consagrado e uma decisão-surpresa proibida pela lei processual.

Daí que a recorrente, estribada num direito processual que a lei lhe atribui e confiando no rigoroso cumprimento da norma que inequivocamente o impõe, haver decidido, legitimamente, abster-se por ora de discutir, em sede de recurso de revista, a questão de fundo respeitante à caducidade do seu direito a instaurar a acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente.

Tudo se passa como se a decisão de fundo sobre a matéria da excepção de caducidade, que não deixa de ser simplesmente implícita por remissão para o decidido em 1ª instância, estivesse directamente contaminada pelo vício resultante da nulidade que consiste na não designação da audiência prévia, encarada como nulidade da própria sentença proferida.

Não pode, nestas circunstâncias, a recorrente ser penalizada com a (formal) inadmissibilidade do seu recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com base no argumento de não estar em causa o conhecimento de uma decisão de mérito, quando, dentro da lógica própria que enforma os fundamentos do seu recurso, a mesma (decisão de mérito) nunca poderia ter sido apreciada e resolvida, dada a antecedente nulidade desse acto de apreciação de fundo (cometida em 1ª instância e corroborada por via do enquadramento jurídico feito no Tribunal da Relação e com o qual a recorrente, alicerçada em diversas decisões de 2ª instância, discorda).

Ou seja, nesta especial perspectiva, será de equiparar o acórdão recorrido a uma decisão final, uma vez que se debruçou sobre a questão jurídica que constitui verdadeiramente a causa imediata, directa e necessária da sorte da lide, tendo a ver, materialmente, com o próprio exercício do contraditório que, sem a realização da audiência prévia em que deveria, segundo o quadro legal aplicável, ter sido exercido, saiu substantivamente prejudicado.

É de facto o princípio da proibição de decisões-surpresa que está aqui directamente em discussão, motivada pela postura do juiz de 1ª instância ao conhecer prematuramente do mérito da causa e inflectir, invertendo, sem qualquer aviso ou anúncio, a tramitação normal dos autos seguida até aí, através de uma actuação inesperada que suprimiu a oportunidade, já anteriormente fixada, de cada uma das partes debater de facto e de direito, em sede de audiência prévia, quanto ao conhecimento de mérito da excepção peremptória da caducidade.

Note-se que neste caso, conferindo, por hipótese, razão à recorrente, por estar em causa uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, e não o cometimento de uma mera nulidade processual por simples erro de procedimento, não fazia nenhum sentido admitir a discussão sobre o mérito da procedência da excepção de caducidade.

Em bom rigor, esta questão do conhecimento do fundo da causa, pela própria natureza das coisas, nunca estaria aqui, em termos expressos e directos, verdadeiramente em discussão.

Com efeito, ou o Tribunal da Relação qualificava o vício cometido como nulidade processual e considerava-o sanado pela intempestividade da sua invocação (como sucedeu); ou julgava procedente a apelação e ordenava simplesmente a realização da audiência prévia que havia sido omitida.

No primeiro caso, a apelação improcedia, sem o Tribunal da Relação ter de se preocupar com a matéria da excepção de caducidade, omissa nas conclusões do recurso; no segundo, a apelação procederia com a remessa dos autos à 1ª instância para a realização de audiência prévia, não havendo coisa alguma a apreciar relativamente à decisão de mérito sobre a mesma excepção peremptória da caducidade.

Daí concluir-se que o acórdão da Relação, com as características singulares que apresenta, constitui uma decisão final, impugnável nos termos gerais do artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil.

Cumpre referir, a este propósito, que a admissibilidade do recurso de revista nestas exactas circunstâncias já foi reconhecida e teve lugar no âmbito do processo nº 17937/16.8T8LSB.E1.S1, dando azo ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 2018, em que foi relator Alexandre Reis, donde consta a este respeito:

“(...) Não tendo o Sr. Desembargador admitido o recurso, ao abrigo dos artigos 641º, nº 2, alínea a), e 671º, nº 3, por considerar verificar-se o requisito da “dupla conforme”, o A. deduziu reclamação, que foi parcialmente atendida, determinando-se a admissão do recurso circunscrita ao segmento do respectivo objecto referente ao decidido pela Relação sobre a questão da não realização da audiência prévia, bem como, nos termos do artigo 615º, nº 4, à pronúncia sobre as nulidades imputadas ao acórdão recorrido e sobre a arguida inconstitucionalidade (do artigo 195º)”(vide ainda, em sentido algo divergente, o que se consignou na revista excepcional proferida no processo nº 10/14.0TVLSB.L2.S1, proferida em 7 de Março de 2019, onde foi relator Garcia Calejo, e em que pode ler-se: “I – A decisão objecto de recurso incidiu sobre uma decisão interlocutória – dispensa de realização da audiência prévia – que é enquadrável na previsão contida no artigo 671º, nº 2, do CPC. A admissibilidade da revista está dependente do preenchimento dos pressupostos definidos nessa disposição, ou seja, nos casos em que seja sempre possível o recurso (alínea a)) e contradição de acórdãos nos termos definidos na alínea b))”).

No mesmo sentido, diversos arestos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, e que serão identificados infra, já se ocuparam da questão nulidade da decisão final consistente na prolação de uma denominada decisão surpresa, enquanto vício do próprio acto jurisdicional de julgamento, enquadrável na alínea d), 2ª parte, do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

Ainda que se entendesse, por hipótese, que se trata aqui de uma decisão meramente interlocutória – sendo a decisão final aquela que conheceu implicitamente da excepcão de caducidade, confirmando o decidido por via da negação da qualificação da nulidade reconhecida no acórdão recorrido como nulidade da sentença por excesso de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil) -, estaríamos então perante uma manifesta situação de oposição de julgados, tendo em conta o acórdão fundamento invocado pelo recorrente (Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Dezembro de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 11749/17.9T8LSB.L1-7) e perante a possível (e largamente discutida) aplicação do artigo 671º, nº 1, alínea a), por remissão para a alínea d) do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil, entendido então em sentido amplo, não restrito às situações de irrecorribilidade em função de disposição legal especial.

Cumpre outrossim notar que, conforme se referiu, a decisão de 1ª instância não versou, apreciando, a questão jurídica fulcral que é agora objecto do recurso de revista.

O que sucede é que a sentença recorrida, alterando a tramitação até aí seguida nos autos (com a sucessiva designação de audiências prévias que vieram a ser adiadas face à ordenada suspensão da instância), decidiu inesperadamente proferir decisão de mérito sem se preocupar minimamente em observar o disposto no artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil.

A parte vencida interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando-se na violação do princípio do contraditório que subjaz ao não acatamento da obrigação legal e imperativa de lhe ser concedida a possibilidade (prévia) de intervir activamente na discussão de facto e de direito antes do conhecimento – ainda que parcial – do mérito, bem como na decisão-surpresa em que nitidamente se manifesta (pela tramitação processual seguida não se anteveria a inesperada e incoerente opção do julgador em decidir de mérito com menosprezo pela lógica intrínseca do processo e em concreto pelo dever de marcação/realização da audiência prévia já sucessivamente designada).

Invocou para o efeito a nulidade da própria decisão de mérito desfavorável que considerou ferida processualmente por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil.

O Tribunal da Relação apreciou unicamente esta controvérsia jurídica que se prende intrinsecamente com o exercício do direito ao contraditório.

Neste sentido, julgou improcedente a apelação por considerar que estaria em causa uma mera nulidade processual, subsumível ao disposto no artigo 195º do Código de Processo Civil, e não perante uma verdadeira nulidade da sentença a invocar em sede de recurso.
Daí ter considerada intempestiva tal arguição.

Daqui resulta, por um lado, o afastamento de qualquer hipótese de dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, e, por outro, que, conforme se salientou supra, o acórdão recorrido constitui a decisão final no processo, uma vez que negando efectiva relevância (por invocado efeito preclusivo da não invocação da nulidade processual no prazo de dez dias) à violação processual suscitada pelo recorrente (consistente no conhecimento pelo juiz a quo do mérito da causa num momento processual em que ainda não o podia fazer) consolidou de forma derradeira a decisão de improcedência da presente acção, por aquele único motivo, sem conhecer materialmente de qualquer outra matéria que, em todas as situações concebíveis, estaria sempre logicamente arredada da discussão e nessa mesma medida prejudicada. 

Por tudo isto, entendermos ser de considerar a admissibilidade da presente revista, nos termos gerais dos artigos 671º, nº 1, do Código de Processo Civil, passando-se a conhecer do objecto do recurso (numa matéria que tanta contradição e instabilidade tem gerado nas diversas instâncias, com decisões insanavelmente antagónicas e altamente prejudiciais para a segurança e certeza na aplicação da lei, a que urge pôr cobro por via da mais do que oportuna intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça).

Sendo a presente revista admissível nos termos gerais, inexiste fundamento legal para a revista excepcional (interposta a título meramente subsidiário).

Reforce-se igualmente que o acórdão recorrido não constituiu dupla conforme, tornando-se, por isso, inviável (e prejudicada) a interposição de revista excepcional nos termos dos artigos 671º, nº 3, e 672º, do Código de Processo Civil.

Com efeito, a decisão de 1ª instância, sem dar sequência à tramitação até aí seguida nos autos, consistiu na imediata apreciação do mérito da excepção de caducidade, sem prévia observância do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, com prejuízo para o exercício do contraditório que teria lugar nessa audiência prévia (inesperadamente omitida) e acabando, neste sentido, por se assumir como uma decisão surpresa.

A recorrente, na sua apelação, circunscreveu as suas conclusões à matéria da preterição da audiência prévia obrigatória, considerando enfermar a sentença recorrida de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil

O acórdão recorrido apenas se ocupou desta temática (qualificação da invalidade consistente na preterição indevida da audiência prévia obrigatória, nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº 1, alínea b), conjugada com a tempestividade da arguição da nulidade, acabando por concluir que o erro processual cometido se encontrava sanado pela sua não invocação dentro do prazo legal destinado para o efeito).

É óbvio que, pela sua própria natureza, esta questão, que constitui a única de que o Tribunal da Relação de Lisboa conheceu, não foi objecto de qualquer pronúncia em 1ª instância (como logicamente, por força das próprias circunstâncias que envolvem a situação sub judice, não podia ter acontecido).

Simultaneamente, e neste mesmo contexto, o acórdão recorrido não se debruçou, em termos substantivos, sobre a questão da procedência da excepção de caducidade do direito a instaurar a presente acção, que não constava do objecto do recurso de interpelação interposto.

O que significa que o Tribunal da Relação conheceu em primeira e única mão sobre a questão em que consistiu o objecto do presente recurso de revista.

Pelo que é inconcebível, neste caso particular, entender que o tribunal de 2ª instância teria confirmado, sem fundamentação essencialmente divergente, o decidido em 1ª instância, quando não disse uma palavra sobre o mérito da decisão que julgou procedente a excepção de caducidade em referência.

Pelo que, não se constitui, naturalmente, dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo, e, nesta sequência, havendo lugar à revista normal, inexiste fundamento para a interposição de revista excepcional que, aliás fora apresentada a título subsidiário, tal como de resto, e muito bem, entendeu o juiz desembargador relator ao admitir a presente revista."

*3. [Comentário] O STJ decidiu indiscutivelmente bem, atendendo a que o tribunal de 1.ª instância apreciou o mérito da causa sem ter justificado a dispensa da audiência prévia. Noutros termos: o tribunal de 1.ª instância proferiu uma decisão-surpresa.

A situação teria sido diferente se o tribunal de 1.ª instância tivesse proferido, erradamente, uma decisão de dispensa da audiência prévia. Neste caso, tratar-se-ia de uma decisão ilegal e impugnável nos termos gerais.

MTS


29/06/2022

Jurisprudência 2021 (229)


Título executivo;
livrança; aval; embargos de executado


1. O sumário de RC 15/12/2021 (2550/20.3T8SRE-A.C1) é o seguinte:

I- A livrança que contenha os requisitos essenciais referidos nos artºs 75º e 76º da LULL, constitui título cambiário autónomo e abstracto, integrado no elenco dos títulos executivos por via do disposto no artº 703º, nº 1, c) do C.P.C., incorporando no título o direito nele representado, com plena autonomia da relação fundamental subjacente.

II- Prestado aval ao subscritor da livrança, a obrigação do avalista é uma obrigação de garantia do pagamento da obrigação cambiária avalizada, no seu vencimento, e não da obrigação relação subjacente (artº 32º da LULL), mantendo-se esta obrigação de garantia, mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não um vício de forma (artºs 75º e 76º da LULL).

III- Dado o carácter autónomo e abstracto do título de crédito e a função de garantia do aval, só podem os avalistas opor-se à execução desta obrigação, se estiverem nas relações imediatas com o portador da livrança (artº 17º da LULL e 731º do C.P.C.), cabendo-lhes, nesse caso, o ónus de alegar e provar os factos referentes ao preenchimento abusivo do pacto de preenchimento e os meios de defesa oponíveis à relação causal, porque constituindo exceções de direito material (artº 342º, nº 2 do C.C.).

IV- Não constando da petição de embargos os factos relativos ao pacto de preenchimento e à relação causal, nem que o avalista se encontre nas relações imediatas com o portador da livrança, não é esta omissão suprível, quer por via de contestação aos embargos, quer por despacho de aperfeiçoamento, impondo-se a rejeição liminar dos embargos, com fundamento na manifesta improcedência das exceções invocadas (artº 732º, nº 2, c) do C.P.C.).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No que se reporta aos avalistas dispõe o artº 32º do LULL que estes são responsáveis da mesma forma que a pessoa por si avalizada e que a sua obrigação se mantém, mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não um vício de forma, ou seja, por vícios respeitantes ao próprio título de crédito, nomeadamente e, reportando-nos às livranças, pela ausência dos requisitos essenciais referidos nos artºs 75º e 76º da LULL.

A obrigação do avalista é, assim, de garantia do pagamento da obrigação cambiária avalizada no seu vencimento [[DELGADO, Abel, Lei Uniforme Sobre Cheques, Anotada], pág. 175] e não da obrigação causal. Como ensina o Prof. Paulo Melero Sendim, “À declaração cambiária do avalista não se põe a questão da sua causa; eventuais relações extracambiárias obrigacionais podem apenas relevar para o direito de reembolso do avalista no eventual regresso, por se ter gorado a garantia que deu.” É que o aval consiste tão só numa declaração pessoal de confiança dada ao portador da livrança de que o subscritor a pagará, sem que necessite de qualquer relação subjacente.

Ou seja, o aval garante o direito de crédito cambiário com o seu valor patrimonial, constituído por uma pessoal confiança do seu dador em que a letra será honrada no seu vencimento pela pessoa avalizada, na imediata medida e razão da obrigação deste, constituindo uma obrigação solidária da obrigação do avalizado, mas independente desta.

Só assim não sucederá, no âmbito das relações imediatas, quando entre o portador e os obrigados cambiários não se interpõe qualquer outro e, quando os sujeitos da relação cambiária são concomitantemente os sujeitos da relação causal. Neste caso, cfr. se refere no Ac. do STJ de 14/09/21[---], não existindo “interesses de terceiros de boa fé a defender, os princípios da literalidade, abstração e autonomia que caracterizam os títulos cambiários deixam de funcionar, podendo fundar-se a defesa nas excepções emergentes da relação causal.”

Daqui decorre que a livrança desde que contenha os requisitos essenciais previstos no artº 76º da LULL, vale como título executivo, sem que do título, ou do requerimento executivo, tenha de constar a obrigação subjacente, ou a menção a eventuais acordos celebrados relativamente ao seu preenchimento, ou qualquer facto relativo ao vencimento da obrigação causal. Não se trata de um título executivo complexo, (não se confundindo com o contrato de mútuo que eventualmente lhe subjaza), não necessitando de se fazer acompanhar de qualquer documento referente à obrigação causal.

O que significa que apresentado título de crédito para pagamento da obrigação cambiária dele constante, contra os subscritores e avalistas, pretendendo os avalistas opor ao portador os meios de defesa baseados na relação causal e em eventual violação de pacto de preenchimento, terão de alegar nos respectivos embargos que apresentem, que a livrança não entrou em circulação e, por essa via, os factos concretos referentes a eventual pacto de preenchimento da livrança, ou as excepções opostas à relação causal.

Não necessitando, conforme refere ABEL DELGADO [Ibidem pág. 73], o pacto de preenchimento de revestir forma escrita, podendo inclusive ser um acordo tácito, porque da sua violação, resultam efeitos extintivos ainda que parciais da obrigação exequenda, já que conforme defende PAULO SENDIM [Letra de Câmbio, vol. I, pág. 217], a obrigação peticionada ficará reduzida aos termos acordados no pacto, segundo o brocardo utile per inutile non vitiatur.

Nesta medida, pretendendo o embargante invocar meios de defesa com base nessa relação causal e nos acordos outorgados com vista ao preenchimento da livrança, deverá, sob pena de indeferimento liminar dos embargos, alegar os factos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito que o exequente pretende exercer (artº 342º, nº 1 e 2 do C.C.)[---].

Este ónus de alegação dos factos essenciais e constitutivos dos fundamentos de embargos, não pode ser suprido nem por despacho de aperfeiçoamento, nem por eventual contestação que venha a ser oposta pelo exequente (à semelhança da possibilidade prevista para as petições iniciais, no artº 186º, nº 3 do C.P.C.), uma vez que a sua existência é condição prévia de admissão dos embargos.

Acresce que, prevendo a lei, em casos especiais, a inversão do ónus de prova, não prevê a inversão do ónus de alegação, de indicação concreta dos factos que integram as excepções de direito material, opostas à obrigação causal.

Quer isto dizer que a total ausência de factos concretos que integrem os meios de defesa invocados pelos embargantes, não é, à semelhança do disposto para a acção declarativa, objecto de despacho de aperfeiçoamento, pois que só a deficiência e não a total ausência de causa de pedir, pode ser objecto de aperfeiçoamento.

Recorde-se que os embargos de executado constituem uma contra-acção, de natureza declarativa a correr por apenso ao processo de execução, mediante o qual o executado/embargante visa “visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do crédito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da execução.” [LEBRE DE FREITAS, José, A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª ed., Almedina, pág 193] podendo os executados suscitar não só questões jurídicas de conhecimento oficioso, como alegar factos novos e invocar questões que, não sendo de conhecimento oficioso estão na sua libre disponibilidade (é o caso do benefício da excussão prévia de bens, de prévia interpelação do devedor e da prévia resolução do contrato, da perda do benefício do prazo, etc).

Nesta oposição, podem os executados, porque em sede de título de crédito, deduzir todos os fundamentos de oposição que lhes seria lícito invocar, como meio de defesa, em sede de ação declarativa (artº 731º do C.P.C.). Por essa razão, quando invocadas exceções de direito material, o opoente está onerado com o dever de alegação e prova, dentro dos limites impostos pelos fundamentos admissíveis de oposição à execução, face ao título em causa, dos factos concretos que integram as aludidas exceções. O embargante está onerado, caso queira ver a sua pretensão recebida, de invocar a causa de pedir das exceções de direito material em causa (artº 576º, nº 3 do C.P.C.), idóneas ao fim visado, ou seja, a extinção total ou parcial da execução. Neste campo, conforme já referido, têm plena aplicação as regras respeitantes ao ónus de alegação e prova constantes do artº 342º, nº 1 e 2 do C.P.C., que determina que o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito e extintivos, modificativos e impeditivos do direito contra si invocado, cabe ao que alega o direito ou a excepção.

Ora, conforme afirmado na decisão a quo, o ónus de alegação e prova da existência e conteúdo do pacto de preenchimento, cabe ao executado/embargante, como lhe caberá face à autonomia, abstração e literalidade do título, o ónus de alegação e prova dos factos relativos à relação causal. Não basta assim, ao embargante, alegar de fora genérica e vaga a existência de exceções de direito material, opostas ao título, impondo-se-lhe a alegação de factos jurídicos concretos, que então se enquadrarão na respectiva norma jurídica, permitindo ao tribunal que se pronuncie sobre o mérito da causa, quer em sentido positivo, quer em sentido negativo. [Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, II, pág. 381 (citando como exemplo factos constitutivos de nulidade de um contrato e pedido de cumprimento do mesmo)]

Incumprindo este ónus de alegação de factos concretos, impõe-se o seu indeferimento liminar, não com fundamento na nulidade decorrente de ineptidão, mas de improcedência da aludida exceção, uma vez que a petição de embargos, embora no plano formal constitua uma verdadeira petição de ação declarativa, a que são aplicáveis as exigências de forma referidas nos artºs 552º e 147º do C.P.C. “no plano material a oposição consubstancie uma reacção à pretensão executiva” (ac. do TRC de 03/03/21 citado), equiparada assim a uma contestação. Esta equiparação da petição de embargos à contestação decorre da circunstância de se excluir o disposto no artº 669º, nº 2 do C.P.C. (cfr. previsto no artº 728º, nº 3 do C.P.C.), da natureza processual do prazo para dedução de embargos (artº 728º, nº 1 e 138º, nº 1 do C.P.C.) e do princípio da concentração da defesa, previsto no artº 573º, nº 1 do C.P.C. [Sobre a equiparação da petição de embargos à contestação vide PINTO, Rui, A Ação Executiva, Reimpressão, AAFDL, 2020, págs. 408/409.1]

Quer isto dizer que não são aplicáveis à petição de embargos as causas que conduziriam a nulidade, por ineptidão, da petição inicial de ação declarativa, previstas no artº 186º do C.P.C.

O que não significa que esteja o embargante desonerado de alegar os factos referentes às exceções de direito material que opõe ao título, mas antes que, não o fazendo, a falta de alegação destes factos conduz ao indeferimento liminar dos embargos, por manifesta improcedência.

Nessa medida, analisando o teor da petição de embargos, verifica-se que os embargantes não indicam quaisquer factos relativos ao pacto de preenchimento da referida livrança, nem os factos referentes à obrigação causal, mesmo após proferido despacho de aperfeiçoamento pelo juiz a quo (embora a considerar esta uma verdadeira petição inicial, a que seria aplicável o regime da ineptidão por falta de causa de pedir, como o considerou o juiz a quo, não fosse esta ineptidão passível de despacho de aperfeiçoamento).

Impõe-se assim, conforme decidiu o tribunal a quo, indeferir os embargos liminarmente, por manifesta improcedência das exceções invocadas (artº 732º, nº 1, c) do C.P.C.)"

[MTS]


28/06/2022

Bibliografia (1023)


-- Recuerda Girela. M. A. (Ed.) El poder de los Tribunales (Aranzadi: Pamplona 2022)


Jurisprudência 2021 (228)


Matéria de facto;
"juízos conclusivos"; matéria de direito

1. O sumário de RL 2/12/2021 (96185/19.6YIPRT.L1-2) é o seguinte:

I - Um facto ou uma alegação de facto não poderá deixar de ser uma realidade objetiva passível de ser apreendida por um qualquer meio de prova, distinguindo-se das questões jurídicas, cuja resposta é dada por via da interpretação e aplicação das regras de direito aos factos considerados como provados.II - Assim, discutindo-se nos autos se a Autora tem direito a exigir da Ré o valor peticionado relativo às prestações mensais do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes por falta de denúncia válida do mesmo, não se pode responder a tal questão na decisão da matéria de facto, fazendo aí constar que os meses de junho a setembro de 2019 foram “corretamente faturados” e que as faturas originadas pela prestação de serviços respeitantes a tais meses, cujo “total em dívida é de 20.284 €”, se encontram por liquidar.

III - Sendo a revogação unilateral do contrato de prestação de serviço consentida pela lei, face ao preceituado no art. 1170.º do CC, aplicável por via do disposto no art. 1156.º do CC, impõe-se concluir que, no seguimento da receção pela Autora (cf. art. 224.º do CC) da declaração pela qual a Ré revogou unilateralmente o contrato, este veio a cessar a sua vigência no dia 1 de junho de 2019, não mais estando as partes obrigadas ao seu cumprimento.

IV - Tendo o contrato findado, procede a exceção perentória deduzida pela Ré e improcede necessariamente a pretensão da Autora, assente num pressuposto fáctico que não se verifica, o de que o contrato de prestação de serviços continuava em vigor e, por isso, a Ré estaria obrigada a cumpri-lo, realizando a prestação pecuniária contratualmente estipulada (cf. art. 762.º do CC).

V - Questão diferente, mas que não cabe aqui apreciar (sendo mesmo questão nova), é a de saber se dada a forma como a Ré veio fazer cessar o contrato, com a sua revogação unilateral, ainda que lícita, incorreu na obrigação de indemnizar a Autora. Com efeito, não constitui o objeto do litígio, conformado pelo pedido formulado e respetiva causa de pedir indicados no requerimento de injunção, saber se a Autora tem direito a uma indemnização (pretensão que, aliás, não podia fazer através de procedimento de injunção), pelo que constituiria uma violação dos princípios do contraditório, do dispositivo e da estabilidade da instância apreciar se a Ré devia ser condenada no pagamento das quantias peticionadas, mas agora a título de indemnização de (supostos) danos pela revogação unilateral/resolução do contrato.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em primeiro lugar, importa que nos detenhamos nas alíneas e), f) e g) da decisão da matéria de facto, apreciando se, como defende a Ré, devem ser eliminadas/alterada(s).

A resposta deve ser afirmativa, já que o seu conteúdo não corresponde, verdadeiramente, a nenhum facto substantivamente relevante, mas antes a conclusões jurídicas que só em sede de fundamentação de direito poderão ser retiradas dos factos provados.

Com efeito, preceituam os n.ºs 3 e 4 do art. 607.º do CPC que, na sentença, o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”; e que, “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.

É sabido que nem sempre é fácil destrinçar matéria de facto e matéria de direito, sendo muitas vezes a própria natureza do litígio que funciona como critério orientador. Por exemplo, numa ação de despejo em que não se discuta a existência de uma relação jurídica locatícia é pacífico que a expressão “renda” pode ser utilizada na decisão da matéria de facto; ao invés, já será de evitar numa ação de reivindicação em que exista controvérsia sobre a verificação de certos factos atinentes a um alegado acordo e à sua qualificação como contrato de arrendamento.

Mas um facto ou uma alegação de facto não poderá deixar de ser uma realidade objetiva passível de ser apreendida por um qualquer meio de prova, distinguindo-se das questões jurídicas, cuja resposta é dada por via da interpretação e aplicação das regras de direito aos factos considerados como provados. Daí que, quanto a estas, independentemente de impugnação da decisão da matéria de facto no recurso (que no caso até existiu), o Tribunal superior não fique vinculado ao que foi decidido na sentença – cf. art. 5.º, n.º 3, do CPC.

A jurisprudência tem vindo a entender que tudo se passa como se a resposta a tais questões (supostamente) de “facto” fosse de considerar não escrita. Nesta linha, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 07-10-2013, no proc. n.º 488/08.1TBVPA.P1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do respetivo sumário: “Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 1.09.2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos. Neste sentido, a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado.” E o acórdão do STJ de 07-05-2014, no proc. n.º 39/12.3T4AGD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citando-se parte do respetivo sumário: “I - Compete ao Supremo Tribunal de Justiça, por tal constituir matéria jurídica, apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado – consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objeto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita.”

Sobre esta problemática, também se reveste de interesse o artigo de Paulo Ramos de Faria, “Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto)”, publicado na Revista JulgarOnline, novembro de 2017, em que o autor explica a razão de ser do preceito constante do art. 646.º, n.º 4, do anterior Código de Processo Civil, concluindo que “é manifestamente errada a inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto. Sinalizado o erro, tais proposições devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes – vale qualquer predicação que evidencie a sua inidoneidade para, no lugar de um facto, servir de premissa ao silogismo judiciário –, mas nunca por inexistentes ou não escritas.”

No caso dos autos, face ao objeto do litígio e ao objeto do recurso, é manifesto que as referidas alíneas da decisão da matéria de facto, mais do que contendo um inócuo juízo puramente conclusivo, entram de forma ostensiva no domínio da questão de direito a decidir, cuja resposta apenas poderá ser dada partindo dos factos concretos atinentes à vigência e conteúdo do contrato celebrado entre as partes, aos quais há que aplicar as regras de direito com a liberdade que promana do art. 5.º, n.º 3, do CPC. Verifica-se inclusivamente ter sido dado como provado um valor errado da fatura n.º 170, o que, só por ostensivo lapso de escrita ou confusão entre facto e direito, se pode explicar e cuja retificação já se fez.

Pelo exposto, determina-se a alteração da decisão da matéria de facto:

- eliminando a alínea g);

- agrupando as alíneas e) e f) numa única alínea [designada pela letra e)] e retificando o seu conteúdo, que passa a ser:

“e) - A Ré não pagou as quantias referentes aos meses de junho a setembro de 2019, que a Autora faturou, com a emissão das seguintes faturas:

- N.º 132, datada de 04-07-2019, com vencimento a 04-08-219, no valor de 6.642 €;

- N.º 155, datada de 01-08-2019, com vencimento a 01-09-2019, no valor de 6.642 €;

- N.º 170, datada de 30-08-2019, com vencimento a 30-09-2019, no valor de 6.642 €”.


*3. [Comentário] a) A 1.ª instância tinha dado como provado, além do mais, o seguinte (mantém-se os rasurados constantes do relatório do acórdão):

"e) - A Ré não pagou as quantias referentes aos meses de junho a setembro de 2019, apesar de terem sido corretamente faturados.
 
f) - Tal prestação de serviços originou a emissão das seguintes faturas, que se encontram por liquidar: Faturas:

 - [N.º] 132 [datada de] 04-07-2019 [com vencimento a] 04-08-219 [no valor de] 6.642 €;

 - [N.º] 155 [datada de] 01-08-2019 [com vencimento a] 01-09-2019 [no valor de] 6.642 €;

 - [N.º] 170 [datada de] 30-08-2019 [com vencimento a] 30-09-2019 [no valor de] 6.000 € [face ao acordo das partes nos articulados e ao documento 1 junto aos autos pela Autora, o valor correto é 6.642 €].

 g) - O total em dívida é de 20.284 €; [...]"


A RL alterou esta matéria dada como provada nestes termos:

"Pelo exposto, determina-se a alteração da decisão da matéria de facto:

- eliminando a alínea g);

- agrupando as alíneas e) e f) numa única alínea [designada pela letra e)] e retificando o seu conteúdo, que passa a ser:

“e) - A Ré não pagou as quantias referentes aos meses de junho a setembro de 2019, que a Autora faturou, com a emissão das seguintes faturas:

- N.º 132, datada de 04-07-2019, com vencimento a 04-08-219, no valor de 6.642 €;

- N.º 155, datada de 01-08-2019, com vencimento a 01-09-2019, no valor de 6.642 €;

- N.º 170, datada de 30-08-2019, com vencimento a 30-09-2019, no valor de 6.642 €”.

b) A RL fundamentou a alteração na circunstância de os factos considerados provados pela 1.ª instância serem "juízos conclusivos". Não cabe agora discutir o que sejam "juízos conclusivos" e, portanto, juízos proibidos em matéria de facto (juízos que, a existirem, proscrevem, por exemplo, a afirmação de que "o acidente ocorreu num dia chuvoso" ou de que "o trabalhador sofreu ferimentos graves"). Devidamente analisado, o acórdão mostra um outro iter decisório.

A RL entendeu que o contrato de prestação de serviços entre as partes tinha sido resolvido e, por isso, o réu nada tinha a prestar ao autor. Nesta óptica, é claro que determinados meses nunca podiam "ter[...] sido corretamente facturados". 

Então, o que fez verdadeiramente a RL? O que a RL fez foi entender que, em função do julgamento de direito (resolução do contrato), não era possível dizer que determinados meses tinham sido "corretamente faturados". Supõe-se que, evitando, naturalmente, um preciosismo inconsequente, a RL jamais teria feito a mesma censura se tivesse concluído que, em função da matéria de direito, os meses que não se podia dizer que tinham sido "corretamente faturados" afinal tinham sido mesmo correctamente facturados.

Permite-se sublinhar este aspecto. Por muita aversão que exista em relação aos "juízos" ou aos "factos conclusivos", duvida-se que alguma vez seja feita alguma censura a esses "juízos" ou "factos" se, afinal, eles forem compatíveis com o julgamento da matéria de direito. Dificilmente se aceita que alguma Relação se disponha a eliminar, numa parte do seu acórdão, um alegado "juízo conclusivo" para, depois, o admitir, numa outra parte do mesmo acórdão, como "juízo de direito". A ser assim, o controlo dos "juízos conclusivos" fica limitado às situações em que os mesmos sejam incompatíveis com a decisão em matéria de direito

c) Em suma: em vez de confirmar a impossibilidade de dar como provados "juízos conclusivos" (seja isso o que for), o acórdão é antes um bom exemplo da relação mútua que tem de haver entre a matéria de facto e a matéria de direito e da necessidade de considerar cada uma delas em função da outra.

MTS


27/06/2022

Alteração ao CPC (11)

 

L 12/2022, de 27/6

A Lei 12/2022, de 27/6 (Orçamento do Estado para 2022) introduz as seguintes alterações no CPC:


Artigo 329.º
Norma revogatória em matéria fiscal

1 - São revogados: [...] f) A alínea g) do n.º 8 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho. 




Artigo 330.º

Produção de efeitos em matéria fiscal

[...] 4 - As alterações ao artigo 227.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e ao artigo 738.º do Código de Processo Civil produzem efeitos 12 meses após a publicação da presente lei. 

 

Artigo 333.º

Alteração ao Código de Processo Civil

O artigo 738.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, passa a ter a seguinte redação:

«Artigo 738.º

[...]

[...] 

8 - [...]

a) [...]

b) O limite máximo e mínimo da impenhorabilidade é apurado globalmente, para cada mês, pela entidade que os deva pagar;

c) A entidade pagadora dos rendimentos deve comunicar ao agente de execução, previamente a qualquer pagamento ao executado, o montante total a pagar, o valor impenhorável apurado e o montante do valor a penhorar, determinado de acordo com o presente artigo;

d) O agente de execução com base nas informações prestadas, confirma ou apura o valor a penhorar e comunica-o à entidade pagadora, no prazo de dois dias úteis a contar da comunicação referida na alínea anterior;

e) No caso da falta da comunicação referida na alínea anterior a entidade pagadora efetua o pagamento ao executado de acordo com o valor apurado na alínea c);

f) [Anterior alínea c).]

g) (Revogada.)

 

9 - O incumprimento do determinado no presente artigo pela entidade pagadora determina a sua execução nos autos, como infiel depositária dos valores que deveriam ter sido penhorados e/ou entregues e não o foram.»   

 

Jurisprudência europeia (TJ) (266)


 

Reenvio prejudicial – Acordos, decisões e práticas concertadas – Artigo 101.° TFUE – Diretiva 2014/104/UE – Artigos 10.°, 17.° e 22.° – Ações de indemnização por infração às disposições do direito da concorrência da União Europeia – Prazo de prescrição – Presunção ilidível de danos – Quantificação dos danos sofridos – Transposição tardia da Diretiva – Aplicação no tempo – Disposições substantivas e processuais



TJ 22/6/2022 (C-267/20, Volvo AB (publ.) et al./RM) decidiu o seguinte:

O artigo 10.° da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que constitui uma disposição substantiva, na aceção do artigo 22.°, n.° 1, desta diretiva, e que está abrangida pelo seu âmbito de aplicação temporal uma ação de indemnização que, embora tenha por objeto uma infração ao direito da concorrência que cessou antes da entrada em vigor da referida diretiva, foi intentada após a entrada em vigor das disposições que a transpõem para o direito nacional, na medida em que o prazo de prescrição aplicável a essa ação ao abrigo das anteriores regras não decorreu antes da data do termo do prazo de transposição da mesma diretiva.

O artigo 17.°, n.° 1, da Diretiva 2014/104 deve ser interpretado no sentido de que constitui uma disposição processual, na aceção do artigo 22.°, n.° 2, desta diretiva, e que está abrangida pelo seu âmbito de aplicação temporal uma ação de indemnização que, embora tenha por objeto uma infração ao direito da concorrência que cessou antes da entrada em vigor da referida diretiva, foi proposta após 26 de dezembro de 2014 e após a entrada em vigor das disposições nacionais que a transpõem para o direito nacional.

O artigo 17.°, n.° 2, da Diretiva 2014/104 deve ser interpretado no sentido de que constitui uma disposição substantiva, na aceção do artigo 22.°, n.° 1, desta diretiva, e que não está abrangida pelo seu âmbito de aplicação temporal uma ação de indemnização que, embora intentada após a entrada em vigor das disposições que transpõem tardiamente a referida diretiva para o direito nacional, tenha por objeto uma infração ao direito da concorrência que cessou antes da data do termo do prazo de transposição da mesma.



Jurisprudência europeia (TJ) (265)

 
Procedimiento prejudicial — Cooperación judicial en materia civil y mercantil — Reglamento (CE) n.º 44/2001 — Reconocimiento de una resolución dictada en otro Estado miembro — Motivos de denegación del reconocimiento — Artículo 34, punto 3 — Resolución inconciliable con una resolución dictada previamente entre las mismas partes en el Estado miembro requerido — Requisitos — Observancia, por parte de la resolución dictada previamente en los términos de un laudo arbitral, de las disposiciones y de los objetivos fundamentales del Reglamento (CE) n.º 44/2001 — Artículo 34, punto 1 — Reconocimiento manifiestamente contrario al orden público del Estado miembro requerido — Requisitos

(Versão portuguesa ainda não disponível)


TJ 20/6/2022 (C-700/20, London Steam-Ship Owners’ Mutual Insurance Association / Kingdom of Spain) decidiu o seguinte:

1) El artículo 34, punto 3, del Reglamento (CE) n.º 44/2001 del Consejo, de 22 de diciembre de 2000, relativo a la competencia judicial, el reconocimiento y la ejecución de resoluciones judiciales en materia civil y mercantil, debe interpretarse en el sentido de que una sentencia dictada por un tribunal de un Estado miembro en los términos de un laudo arbitral no constituye una resolución, a los efectos de este precepto, cuando un tribunal de ese Estado miembro no habría podido dictar una resolución con un resultado equivalente al de dicho laudo sin contravenir las disposiciones y los objetivos fundamentales de este Reglamento, en particular el efecto relativo de la cláusula compromisoria insertada en un contrato de seguro y las normas de litispendencia que figuran en su artículo 27, de modo que tal sentencia no puede en ese caso impedir el reconocimiento en dicho Estado miembro de una resolución dictada por un tribunal de otro Estado miembro.

2) El artículo 34, punto 1, del Reglamento n.º 44/2001 debe interpretarse en el sentido de que, en el caso de que el artículo 34, punto 3, de este Reglamento no resulte aplicable a una sentencia dictada en los términos de un laudo arbitral, el reconocimiento o la ejecución de una resolución dictada en otro Estado miembro no puede denegarse por su contrariedad con el orden público fundada en que esa resolución quebrantaría la fuerza de cosa juzgada de dicha sentencia.


Jurisprudência 2021 (227)


Habilitação-incidente;
herança; repúdio

1. O sumário de RL 2/12/2021 (1872/18.8T8LRS-B.L1-2é o seguinte:

A habilitação incidental, sem oposição pelos habilitados, apenas terá relevância demonstrativa de aceitação da herança se for acompanhada de outras atuações que revelem, com toda a probabilidade, a aceitação da herança.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do art.º 2024.º do Código Civil, diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.

O fenómeno jurídico da sucessão inicia-se com o falecimento do autor da sucessão (art.º 2031.º). Nesse momento “abre-se a sucessão”, sendo “chamados” à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (art.º 2032.º n.º 1 do CC).

Por força do princípio da liberdade individual, a aquisição da titularidade das relações jurídicas deixadas vagas pelo de cujus depende de um ato voluntário de aceitação, não operando por força da lei. Se os primeiros sucessíveis não quiserem ou não puderem aceitar, serão chamados os subsequentes, e assim sucessivamente; a devolução a favor dos últimos retrotrai-se ao momento da abertura da sucessão (n.º 2 do art.º 2032.º do CC).

A voluntariedade da efetivação da sucessão expressa-se no art.º 2050.º n.º 1 do CC: “O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material”. Acrescentando-se, no n.º 2, que os efeitos da aceitação “retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão”.

A aceitação da herança é irrevogável (art.º 2061.º).

O legislador rodeia-se de cuidados quanto à forma da aceitação.

Sob a epígrafe “Formas de aceitação” o art.º 2056.º do CC dispõe o seguinte:

1. A aceitação pode ser expressa ou tácita.

2. A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir.

3. Os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança”.

A aceitação expressa é, pois, um negócio formal, um ato jurídico unilateral que deve assumir a forma escrita.

Quanto à aceitação tácita, é aplicável, à partida, a regra geral prevista no art.º 217.º do CC:

1. A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácitaquando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.

2. O carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz”.

Sendo certo que o silêncio só vale como declaração negocial “quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção”.

O n.º 3 do art.º 2056.º arreda que seja considerado ato tácito de aceitação da herança a simples prática de atos de administração da herança pelo sucessível. Esta explicitação harmoniza-se com o disposto no art.º 2047.º do CC, em cujo n.º 1 se estabelece que o sucessível chamado à herança, se ainda não tiver aceitado nem repudiado, não está inibido de providenciar acerca da administração dos bens, se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos. A legitimação de tal atuação poderá acarretar a invocação do título de herdeiro (até no confronto com outros herdeiros - n.º 2 do art.º 2047.º) sem que ela seja acompanhada da intenção de aquisição da herança.

A lei prevê no art.º 2049.º n.º 2 do CC um mecanismo de formalização de aceitação tácita da herança:

Notificação dos herdeiros

1. Se o sucessível chamado à herança, sendo conhecido, a não aceitar nem a repudiar dentro dos quinze dias seguintes, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, mandá-lo notificar para, no prazo que lhe for fixado, declarar se a aceita ou repudia.

2. Na falta de declaração de aceitação, ou não sendo apresentado documento legal de repúdio dentro do prazo fixado, a herança tem-se por aceite. (…)”.

A lei estabelece a presunção inilidível de que o silêncio do sucessível face à solene interpelação do tribunal para declarar se aceita ou não a herança constitui manifestação de aceitação da herança.

Note-se que tal presunção só poderá verdadeiramente assentar num manifesto sentido normal da atitude do interpelado se ele tiver sido notificado com a indicação da cominação legal do seu silêncio.

Que assim é indicia-o a solução contrária (à solução prevista no n.º 2 do art.º 2049.º do Código Civil português) prevista no Codice Civile italiano: Segundo o respetivo art.º 481.º, quem nisso tiver interesse pode fazer notificar judicialmente o chamado para este declarar, num determinado prazo, se aceita ou renuncia à herança. Se, decorrido o prazo, nada disser, “il chiamato perde il diritto di accettare”.

Exposto este quadro, haverá que verificar se o apelante adotou algum comportamento do qual se deva deduzir a aceitação da herança.

Tendo o executado Augusto (…) falecido na pendência da execução, a execução foi suspensa. A fim de que esta pudesse prosseguir, o exequente deduziu incidente de habilitação, identificando os herdeiros da parte falecida. Nestes termos os requeridos foram citados “para contestarem a habilitação” (n.º 1 do art.º 352.º do CPC). A falta de contestação não tem efeito cominatório: a lei estipula que se a habilitação tiver por base certidão de sentença ou escritura de habilitação, “verifica-se se o documento prova a qualidade de que depende a habilitação, decidindo-se em conformidade” (n.º 3 do art.º 353.º do CPC); se a habilitação não assentar em nenhum dos ditos documentos, o juiz decidirá o incidente após se produzir a “prova que no caso couber” (n.º 1 do art.º 354.º do CPC).

In casu, o ora apelante nada disse no âmbito do incidente de habilitação. E, tendo sido proferida sentença de habilitação, na qual foi julgado habilitado a prosseguir os termos da execução, juntamente com outros, no lugar do executado falecido, o ora apelante não interpôs recurso da decisão.

Significará isto que o habilitado aceitou a herança?

Afigura-se-nos que não.

Em parte alguma do processo o ora apelante foi interpelado para tomar posição acerca da aceitação da herança. Mais, não se vislumbra que o apelante tenha praticado qualquer ato no âmbito da execução, ou fora dela, do qual se possa inferir essa aceitação. O apelante não interveio na escritura de habilitação referida no n.º 6 da matéria de facto supra. O apelante não interveio na execução. A única atuação processual do apelante, após a decretação da sua habilitação, consistiu na junção aos autos, volvidos alguns meses, da escritura de repúdio da herança, acompanhada do pedido da sua absolvição da instância, por falta de legitimidade.

Conforme o STJ ajuizou no acórdão de 08.7.1975, processo 065465 (consultável, tal como os adiante citados, em www.dgsi.pt), “[a] habilitação, tomada isoladamente, não é índice, só por si, seguro da aceitação tácita da herança, isto porque, tendo a aceitação tácita de traduzir-se por actos inequívocos, a habilitação significa apenas que o indivíduo é investido na qualidade de herdeiro, não definindo a sua posição relativamente à herança”. Tal entendimento foi reiterado pelo STJ no acórdão de 19.3.2019, processo 384/17.1T8GMR-A.G1.S1, no qual se ponderou que “… a não oposição por parte das Recorrentes com a consequente procedência da habilitação judicial apensa à acção (…) não assume, por si só, relevância para inferir uma aceitação da herança por parte das mesmas (uma vez que o incidente visa tão só assegurar a legitimidade processual das partes)”.

A habilitação incidental, sem oposição pelos habilitados, apenas terá relevância demonstrativa de aceitação da herança se for acompanhada de outras atuações que revelem, com toda a probabilidade, a aceitação da herança. Foi o que ocorreu em alguns dos acórdãos citados na decisão recorrida e pela apelada: cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 13.3.2007, processo 993/2007-1 e acórdão da Relação do Porto, de 26.5.2009, processo 4593/03.2TBSTS-C.P1. - no primeiro caso o herdeiro habilitado interveio nessa qualidade na audiência de discussão e julgamento; no segundo caso o herdeiro habilitado interveio na execução como herdeiro e executado durante mais de três anos, até repudiar a herança.

No sentido do ora aqui propugnado cfr. também o acórdão da Relação de Coimbra, de 24.02.2015, processo 176/07.6TBVLF.C1; acórdão da Relação do Porto, de 05.7.2006, processo 0633036; acórdão da Relação de Guimarães, de 01.3.2018, processo 384/17.1T8GMR-A.G1; acórdão da Relação de Coimbra, de 11.5.2010, processo 2431/07.6TBVLS-B.C1; acórdão da Relação do Porto, de 19.12.2012, processo 9386/07.5TBMAI-C.P1; acórdão da Relação do Porto, de 15.12.2020, processo 3286/17.8T8MTS.P1.

Na doutrina, o Professor Castro Mendes entende que o sucessor habilitado em incidente de habilitação pode, posteriormente, repudiar a herança (cfr. Direito Processual Civil, II volume, Edição da Associação Académica da FDUL, 1978/79, pp. 252-253).

Esta posição é maioritária, mas não unânime.

Na doutrina, o Conselheiro Salvador da Costa considera que a sentença proferida no incidente de habilitação, declarativa de que certas pessoas são herdeiras da parte falecida, pressupõe que aceitaram a herança, apesar de não terem sido citadas com a cominação prevista nos artigos 2049.º n.º 1 do CC e 1039.º, n.º 1 (Os Incidentes da Instância, 2017, 9.ª edição, 2017, Almedina, p. 212).

Na mesma senda se seguiu no acórdão da Relação de Guimarães, de 04.10.2017, processo 1336/15.1T8VRL.G1 e no acórdão da Relação de Lisboa de 06.12.2005, processo 9068/2005, assim como na sentença recorrida.

Quanto a nós, adotamos a posição que se afigura ser maioritária.

Conforme fazem notar Antunes Varela e Pires de Lima (Código Civil Anotado, volume VI, 1998, Coimbra Editora, pp. 78 e 79) a regra da voluntariedade da sucessão traduz a máxima romana de que a aquisição do domínio sobre os bens da herança dá-se ex voluntate accipientis et non ex vi legis (ou ipso iure) aut ope iudicis.

Ao dar o apelante como habilitado nestes autos o juiz não se lhe substituiu na aceitação da herança – não tinha poderes para tal.

O apelante não manifestou, no processo ou fora dele, a intenção de aceitar a herança do primitivo executado Augusto (…). Pelo contrário, outorgou escritura de repúdio da herança, nos termos previstos no art.º 2063.º do CC e com os efeitos previstos no art.º 2062.º do CC.

Conforme afirma o Professor Castro Mendes (ob. e local citados) “[o] repúdio da herança representa o desaparecimento – embora não físico, mas jurídico – dos sucessores habilitados”.

O apelante foi declarado processualmente legitimado para prosseguir na execução (ao lado de outros) no lugar do executado falecido. Porém, ocorreu ato superveniente, extintivo, com efeitos retroativos, da qualidade do apelante enquanto sucessível da parte falecida. Conforme se realçou no acórdão da Relação do Porto, de 19.12.2012, acima citado, “…tendo sido repudiado pelos oponentes o direito à herança, os bens que eventualmente pudessem constituir o seu acervo jamais serão transmitidos àqueles, frustrando-se desse modo, em relação aos bens que viessem a receber do autor da herança, o cumprimento dos encargos com a obrigação exequenda – artigos 2071º do CC e 827º, n.º 1, do CPC [art.º 744.º n.º 1 do CPC de 2013].”

Tal implica a extinção da instância quanto ao repudiante, por impossibilidade superveniente da lide (art.º 277.º / e) do CPC – cfr. acórdão da Relação do Porto, de 23.3.2020, processo 4307/16.7T8LOU-B.P1)."

[MTS]