"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/09/2022

Jurisprudência 2022 (16)


Procedimentos cautelares;
prova documental*


1. O sumário de STJ 12/1/2021 (172/20.8T8CCH.E.E1.S1) é o seguinte:

Nos procedimentos cautelares, é admissível a junção de documentos posteriormente aos articulados iniciais e até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, nos termos gerais do artigo 423º, nº 2, do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Delimitado nos termos sobreditos no ponto III o objeto do presente recurso, vejamos, então, se, tal como decidiu o acórdão recorrido, o regime dos procedimentos cautelares impede a junção de documentos após a apresentação dos dois articulados iniciais e até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, nos termos gerais do art. 423º, nº 2, do CPC.

Trata-se de questão que está longe de ser pacífica na jurisprudência.

Com efeito, tal como nos dá conta Abrantes Geraldes [In “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Vol. (3ª edição revista e actualizada) 5- Procedimento Cautelar Comum, Almedina, págs. 131 e 132.], já no domínio do Código de Processo Civil, anterior à reforma de 1995, formaram a este respeito duas correntes jurisprudenciais.

Uma delas, sustentada, entre outros, no Acórdão da Relação do Porto, de 11.10.93 [In CJ, ano 1993, tomo IV, pág. 222.] que, colocando o acento tónico na natureza e a celeridade que o legislador quis imprimir ao processo cautelar, considerou inadmissível a junção de elementos de prova fora do requerimento inicial ou da oposição.

Uma outra, perfilhada, designadamente nos Acórdãos do STJ, de 18 de Abril de 1991 (processo nº. 80361) [Acessível in A.J. 18-20] e de 09.02.95 (proferido no processo nº 086375 e que revogou o citado Acórdão da Relação do Porto, de 11.10.93) [---] e no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20.06.91 [In CJ, ano 1991, tomo III, pág. 156], que, dando prevalência à regra geral consignada no art. 523º, nº 2 [Que dispunha “Se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1ª instância, mas a parte será condenada em multa, exceto se provar que os não pode oferecer com o articulado], do CPC, defendeu que nos procedimentos cautelares era possível a junção de documentos para além do último articulado, desde que fossem oferecidos até ao encerramento da discussão.

Esta divergência jurisprudencial persistiu após a reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95, de 12,12 e pelo DL nº 180/96, de 25.09, tornando-se, porém, maioritária [Cfr, entre outros, Acórdãos da Relação de Lisboa, de 20.10.1998; de 22.06.2010 (processo nº 573/08.0TBLNH-B.L1.S1) e de 20.02.2011, os dois primeiros pulicados in www.dgsi.pt e o último in CJ, ano 2001, tomo I, pág. 125; Acórdão da Relação do Porto, de 17.01.2002 e de 17.03.2009, publicados, respetivamente, in CJ, 2002, tomo I, pág. 259 e www.dgsi.pt e Acórdão da Relação de Évora, de 17.01.2002, in CJ, tomo I, pág. 259. No sentido de que no âmbito dos procedimentos cautelares as partes devem apresentar simultaneamente com a petição inicial ou com a oposição todos os meios de prova, incluindo a documental, sendo inaplicável, por isso, a disposição do artº 523º, nº 2 do CPC, decidiu o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22.06.1999 (processo nº 1060/99), cujo sumário está publicado in www.dgsi.pt.] a tese segundo a qual, em processo cautelar, era admissível a apresentação de prova documental nos termos da regra geral do nº 2 do citado at. 523º [Cuja redação manteve-se inalterada], o que passou a ser sustentado também por Lebre de Freitas [Cfr. Código de Processo Civil, Anotado, Vol. II, pág. 15.].

Estas duas correntes continuam a persistir no domínio do novo Código de Processo Civil, havendo quem defenda, como faz o acórdão recorrido, que «O artigo 365.º, n.º 1, estabelece que, com a petição inicial, o requerente da providência oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão. Daqui decorre que o requerente da providência tem o ónus de oferecer toda a prova – com ressalva do que diremos no ponto seguinte a propósito do depoimento de parte – com a petição inicial. Nomeadamente, toda a prova documental deverá ser junta pelo requerente com este articulado.

Atentas as já salientadas natureza urgente dos procedimentos cautelares e exiguidade dos prazos legais para a sua decisão em primeira instância (artigo 363.º), deve considerar-se inaplicável, seja subsidiariamente, seja por analogia, o regime estabelecido no artigo 423.º, n.ºs 2 e 3. O regime subsidiário do dos procedimentos cautelares é o dos incidentes da instância e não o do processo declarativo comum (artigo 365.º, n.º 3). No que toca à aplicação analógica do artigo 423.º, n.ºs 2 e 3, a mesma deve ser afastada, desde logo, pela inexistência de uma lacuna sobre esta matéria no regime dos procedimentos cautelares, já que o momento próprio para a junção de documentos se encontra previsto na lei de forma que tem de ser considerada plena ou completa atentas as referidas urgência e submissão a prazos legais excepcionalmente curtos. (…)

O requerente tem o ónus de se munir de todos os documentos que considere necessários para a prova sumária dos factos que alega até ao momento em que instaura o procedimento, tal como o requerido tem o ónus de o fazer dentro do prazo da oposição. Não há lugar para a junção de documentos em momento ulterior, a qual, devido às exigências decorrentes do princípio do contraditório, potenciaria o retardamento da decisão da providência de forma incompatível com o disposto no artigo 363.º – atente-se, nomeadamente, no regime constante do artigo 424.º, que continua, na prática, a proporcionar o protelamento do encerramento da audiência final de forma significativa».

E, por outro lado, quem continue a considerar, como acontece nos Acórdãos do Tribunal Relação, de 23.04.2020 (processo nº 543/18.0T8OLH-K.E1) e de 12.03.2015 (processo nº 55/14.0TBAVS.E1) [---], que, ante a alteração do regime que constava do art. 523º do CPC de 1961 [Em cujo nº 2 se passou a estabelecer que «Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada m multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado».], «o regime dos procedimentos cautelares não impede a junção de documentos após a apresentação dos dois articulados iniciais e até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, nos termos gerais do art. 423º, nº 2, do CPC.».

Tomando posição sobre esta questão e na busca da melhor solução, não deixaremos de perfilhar, de harmonia com o disposto no art. 9º do C. Civil, aquela que melhor se coaduna com o espírito da lei, melhor garante a unidade do sistema jurídico e satisfaz os interesses protegidos por cada uma das normas dos arts. 363º e 423º, ambos do CPC, por forma a obter-se um ponto de equilíbrio entre a urgência e a celeridade que o legislador quis imprimir ao processo cautelar e a necessidade de assegurar a descoberta da verdade e alcançar a justa composição do litígio.

Daí que, no confronto destas duas correntes, se propenda para sufragar o entendimento daqueles que defendem a admissibilidade da junção de documentos após a apresentação dos dois articulados iniciais e até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, nos termos gerais do art. 423º, nº 2, do CPC.

É que, não obstante a remissão feita pelo nº 3 do art. 365, para os arts. 293 a 295º, todos do CPC, deixar claro que os meios de prova devem ser oferecidos com a petição e com a oposição, daí não se retira que, no âmbito dos procedimentos cautelares, não possam ter aplicação também as normas de carácter geral da ação declarativa em tudo aquilo que seja compatível com a celeridade da tutela cautelar urgente e se mostre necessário para dar consistência ao princípio da verdade material.

E do art. 293º, nº 1 também não se extrai qualquer proibição no sentido de que, após aqueles articulados, as partes poderem apresentar documentos, embora sob sanção de multa, sendo certo que, como sublinhou o citado Acórdão do STJ, de 09.02.1995, «não se pode privar a parte de, depois de apresentar o seu articulado, juntar documentos que se considerem necessários para esclarecer a questão e habilitar o juiz a proferir decisão justa», tanto mais que «a parte pode estar impossibilitada de juntar o documento em devido tempo, ou seja com o articulado. Basta, para tanto, que o documento ainda não exista e isto acontece quando se forma posteriormente ao oferecimento do articulado ou, então, que a parte não disponha dele quando apresentou o articulado».

De resto sempre se dirá, ainda na esteira deste mesmo acórdão, que se é possível nos próprios recursos, quer na Relação, quer no Supremo, verificado o condicionalismo previsto nos artigos 651º, nº 1 e 680º, nº 1, ambos do CPC, produzir prova documental, mal se compreenderia que ela não pudesse ser produzida na primeira instância depois de apresentado o requerimento da providência cautelar, embora com observância do disposto no artigo 424 do Código de Processo Civil.

E a verdade é que nem sequer se vê que a aplicação do disposto no art. 423º, nº 2, do CPC, aos procedimentos cautelares contenda com o escopo destes, ou seja, a apreciação sumária e célere de uma situação merecedora de proteção jurídica, pois que com a requerida junção não se adia a realização das diligências de produção de prova, apenas impondo-se conceder prazo à parte contrária para se pronunciar sobre os documentos cuja junção se requer, nos termos do disposto no art. 424º, do CPC.

Daí que, por tudo isto e porque mostra-se justificada pelo Tribunal de 1ª Instância a admissão dos documentos juntos pela ora recorrente, seja de concluir pela procedência do presente recurso, impondo-se, nesta parte, a revogação do acórdão recorrido."


*3. [Comentário] Apenas um argumento suplementar em apoio da solução que fez vencimento no acórdão. É verdade que, como se diz no acórdão recorrido, o regime subsidiário dos procedimentos cautelares é o dos incidentes da instância (art. 365.º, n.º 3, CPC), e não o do processo declarativo comum. No entanto, importa ter presente que o art. 423.º CPC não pertence hoje (e bem) à tramitação do processo comum, mas antes à "instrução do processo" e, portanto, às "disposições gerais e comuns".

MTS