"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/09/2022

Jurisprudência 2022 (22)


Execução para prestação de facto;
facto fungível; avaliação


1. O sumário de RC 25/1/2022 (4074/18.0T8CBR-B.C1) é o seguinte:

I) Na execução para prestação de facto por terceiro, o tribunal não fixa o custo das obras a realizar, confirmando ou alterando o valor apresentado pelo perito da avaliação que necessariamente tem de realizar-se.

II) O custo da prestação avaliado pelo perito funciona como estimativa, que poderá ser corrigida para mais ou para menos, em sede de prestação de contas.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] A perícia que está em questão nos autos está prevista no n.º 1 do artigo 868.º do CPC. Para se perceber a função dela importa ter presente os seguintes aspectos do regime da execução para prestação de facto.

Se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir, o credor pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação (1.ª parte do n.º 1 do artigo 868.º do CPC).

No caso de optar pela prestação de facto por outrem, cabe ao exequente requerer a nomeação de perito que avalie o custo da prestação (n.º 1 do artigo 870.º, do CPC).

Segue-se daqui que a função da perícia é a de avaliar o custo da prestação por outrem.

Depois de realizada a avaliação procede-se à penhora dos bens necessários para o pagamento da quantia apurada, seguindo-se os demais termos do processo de execução para pagamento de quantia certa (n.º 2 do artigo 870.º do CPC).

E depois de realizadas as obras, o credor presta contas ao juiz do processo (n.º 1 do artigo 871.º do CPC), assistindo ao executado a faculdade de as contestar.

Depois de julgadas e aprovadas as contas pelo juiz, o crédito do exequente é pago pelo produto da execução dos bens penhorados (n.º 1 do artigo 872.º do CPC).

Se o produto não chegar para o pagamento, seguem-se, para se obter o resto, os termos estabelecidos no artigo 870.º (n.º 2 do artigo 872.º do CPC).

Destas disposições resulta o seguinte:

· Após a realização da perícia, o tribunal não procede à fixação do custo das obras a efectuar nem, para usarmos as palavras do recorrente, dá “por bom o valor que a peritagem alcançou”;

· O custo da prestação avaliado pelo perito funciona como estimativa, que poderá ser corrigida para mais ou para menos, em sede de prestação de contas.

Citam-se em abono desta interpretação, na jurisprudência, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8-10-1992, no recurso n.º 0046956, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 4-10-2007, no processo n.º 1454/07-2, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 27-02-2014, no processo n.º 30/11.7YYLSB-B.L1-8, todos publicados em www.dgsi.pt. E citam-se na doutrina, a título de exemplo, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa e José Lebre de Freitas. Os primeiros escrevem em anotação ao artigo 870.º do CPC o seguinte sobre o valor da avaliação” A avaliação assim feita destina-se a fornecer uma estimativa do custo provável das despesas, não sendo definitivo o valor indicado pelo perito, até porque haverá lugar á prestação de contas em incidente próprio [Código de Processo Civil Anotado Volume II, Almedina, página 306]. O segundo escrevia a propósito das disposições do CPC de 1961 em matéria de execução para prestação de facto: “Aprovadas as contas pelo juiz, o crédito que delas resultar para o exequente (e que poderá ser superior ou inferior ao montante da avaliação efectuada pelos peritos) é pago pelo produto obtido na execução do custeamento (art. 937-1) e, se ele não chegar, proceder-se-á a nova avaliação e, se necessário, à penhora de novos bens do executado, sempre por nomeação do exequente, até que este seja integralmente pago (art. 937-2”) – A acção Executiva, depois da reforma da reforma, 5.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra Editora, página 390].

Segue-se do exposto que não cabia ao juiz fixar, após a avaliação, o custo das obras a realizar ou dar por bom o custo a que chegou a perícia.

O segundo argumento – continuando a seguir a ordem das conclusões - é constituído pela alegação de que, julgados que foram procedentes os embargos, havia que avaliar, no processo de execução, o custo da prestação do facto por outrem.

O argumento do recorrente seria em parte exacto se o custo da prestação por outrem não tivesse sido avaliado em sede de embargos de executado. E seria em parte exacto porque resulta da combinação do n.º 1 do artigo 868.º, do CPC, com os artigos 869.º e 870.º, do mesmo diploma, que o momento próprio para requerer prestação do facto por outrem e a avaliação do custo dessa prestação é findo o prazo estabelecido para a oposição à execução, ou julgado esta improcedente, no caso de a execução ter sido suspensa.

Visto que, no caso, o recebimento dos embargos não suspendeu a execução, o exequente não teria de aguardar pela decisão de improcedência dos embargos para optar pela prestação do facto por outrem. Podia fazer tal opção findo o prazo estabelecido para a oposição.

Sucede que, no caso, o custo da prestação por outrem foi avaliado validamente pela perícia realizada nos embargos. Na verdade, era lícito ao tribunal a quo, ao abrigo dos poderes de gestão processual (n.º 1 do artigo 8.º do CPC), determinar, como determinou expressamente, que a perícia efectuada em tal processo tivesse também como objecto a avaliação do custo necessário à reparação dos defeitos, a que estavam obrigados os executados.

Acresce a favor da validade de tal avaliação, que foi o exequente, ora recorrente, quem requereu no processo de embargos a realização de perícia e que propôs como questão a responder pelo perito o custo dos trabalhos necessários à reparação dos defeitos.

O terceiro conjunto de argumentos de que se socorre o exequente, ora recorrente, para pedir a revogação da decisão recorrida é constituído pela alegação de que a perícia realizada nos embargos não foi a que a exequente requereu, nem com o perito que indicou, nem mensurou todos os danos.

Estes argumentos não colhem.

Em primeiro lugar, e como resulta do já exposto, a perícia realizada nos embargos, que avaliou o custo da prestação, foi requerida pelo exequente, ora recorrente. Daí que se compreenda mal à luz do dever de boa fé processual que impende sobre as partes (artigo 8.º do CPC) que o recorrente venha dizer que a perícia realizada no apenso não é aquela que ele requereu.

Em segundo lugar, é exacto que a avaliação realizada no processo de embargos não foi levada a cabo pelo perito indicado pelo exequente, ora recorrente. Trata-se, no entanto, de uma circunstância irrelevante. E é irrelevante porque não resulta do n.º 1 do artigo 870.º do CPC que o exequente, ao requerer a prestação de facto por outrem, tem o direito a que a avaliação seja feita pelo perito que ele indicar.

A nomeação do perito cabe ao juiz, como resulta da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 870.º do CPC, na linha do que prescreve o n.º 1 do artigo 467.º do mesmo diploma.

Só na hipótese de haver acordo das partes sobre a identidade do perito a designar – hipótese que não se verificou no caso, pois a executada opôs-se à nomeação do perito indicado pelo ora recorrente – é que o n.º 2 do artigo 467.º do CPC, impõe ao juiz o dever de nomeá-lo, salvo se fundadamente tiver razões para pôr em causa a sua idoneidade ou competência.

Também não vale contra a decisão recorrida a alegação de que a perícia realizada “não mensurou todos os danos”. Trata-se de uma alegação não fundamentada, visto que o recorrente não especificou quais os danos que não foram mensurados, não cabendo a este tribunal entrar em suposições ou conjecturas sobre os danos em causa. A verdade é que, desconsiderando a falta de fundamentação de tal alegação, sempre se poderá dizer, contra a alegação do recorrente, que o perito avaliou o custo de todos os trabalhos necessários para reparação dos defeitos. Basta comparar os trabalhos que estão por realizar e o relatório pericial para se concluir sem qualquer dúvida que a perita avaliou o custo de todos os trabalhos que são necessários para corrigir as anomalias.

Por último, a recorrente contesta a decisão com a alegação de que, ao não admitir a realização da perícia, a decisão recorrida ofendeu o caso julgado formado pela sentença proferida na acção declarativa com processo comum n.º 726/14.1T8FIG do juízo Local e Cível da Figueira da Foz, juiz 2, e da sentença proferida nos embargos (apenso A), violando o disposto nos artigos 619.º e 621.º, ambos do CPC.

O argumento não tem o mais leve apoio nos factos e nos preceitos invocados.

Em primeiro lugar, dispondo o artigo 619.º do CPC sobre o valor da sentença transitada em julgado que tenha decidido sobre a relação material controvertida, não se vê – e o recorrente também não explica – em que é que o despacho recorrido que indeferiu a realização de uma perícia, põe em causa a força obrigatória da sentença proferida na acção declarativa e nos embargos de executado.

Em segundo lugar, dispondo o artigo 621.º do CPC sobre o alcance do caso julgado e afirmando a 1.ª parte do preceito que a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, não se vê - e o recorrente também não explica - em que é que a sentença proferida na 1.ª instância e a que julgou improcedentes os embargos, que não se pronunciaram em momento algum sobre o requerimento indeferido pela decisão recorrida, viram o alcance do seu caso julgado ser ofendido por ela (decisão recorrida).

Considerando a noção de caso julgado constante do n.º 1 do artigo 580.º do CPC, combinado com o artigo 581.º do mesmo diploma, e a finalidade do caso julgado (n.º 2 do artigo 580.º do mesmo diploma), seria pertinente invocar ofensa do caso julgado formado pelas decisões proferidas na acção declarativa e nos embargos de executado se o despacho recorrido tivesse decidido as mesmas questões que foram decididas por aquelas sentenças ou se o acatamento destas implicasse necessariamente a realização da perícia indeferida, hipóteses que claramente não se verificam. Não há identidade entre as questões decididas na acção declarativa e nos embargos e a que foi decidida pelo despacho recorrido. E a sentença condenatória proferida na acção declarativa e a que julgou improcedentes os embargos não vinculavam o tribunal a quo a deferir a realização da perícia indeferida."

[MTS]