"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/09/2022

Jurisprudência 2022 (31)


Gestão processual;
adequação formal


I. O sumário de RE 10/2/2022 (1620/21.5T8STB.E1) é o seguinte:

1 - Constatando o tribunal a existência do fundamento legal da antecipação da produção de prova, pode aquele, ao abrigo do dever de gestão processual conjugado com o disposto no artigo 547.º do CPC, ordenar oficiosamente a realização antecipada de determinado meio de prova indicado pela parte, nomeadamente antes da prolação do despacho saneador ou até de despacho pré-saneador, se aquela antecipação for a forma de assegurar a satisfação do fim do processo.

2 - Tratando-se da prova pericial o artigo 476.º, n.º 1, do CPC permite ao juiz indeferir a perícia se a mesma for impertinente ou tiver fins dilatórios. No caso o autor requereu a realização de perícia, através da colheita de ADN de ambas as partes (autor e réu), sendo este um meio de prova expressamente admitido nas ações relativas a filiação (artigo 1801.º do Código Civil) pelo que dúvidas não há que se trata de um meio de prova pertinente para aquilatar se o réu é efetivamente filho do autor.

3 - O artigo 612.º do CPC trata da questão da simulação de um litígio mediante prévio acordo entre as partes processuais, pressupondo, por conseguinte, um conluio entre elas para obterem um resultado proibido por lei. No caso, não se tratará de um caso de uso indevido do processo previsto naquele preceito legal na medida em que resulta das próprias alegações de recurso que não existe qualquer conluio entre autor e réu. Na verdade, o que o apelante invoca é uma (suposta) má-fé processual do autor (artigo 542.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d), do CPC), ou seja, que o autor visa obter um objetivo ilegal com a propositura da presente ação, um fim não tutelado pela lei. Na medida em que a paternidade jurídica não resulta diretamente da fecundação, sendo aquela determinada por meios indiretos, e assentando a paternidade estabelecida em relação ao marido da mãe numa presunção de fidelidade da primeira relativamente ao segundo com quem teve relacionamento sexual na época da conceção, surgindo dúvidas sobre a exclusividade das relações de sexo – e na sua petição inicial o autor invoca essa dúvida – não se vislumbra como pode defender-se que a instauração da presente ação de impugnação da paternidade presumida em relação ao marido da mãe deve ser considerada um ato de má-fé processual.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O apelante defende que o despacho recorrido é ilegal porquanto:

(i) foi determinada a realização de exame pericial de ADN às partes sem que tenham sido previamente apreciadas as exceções de caducidade do direito de ação e de ineptidão da petição ou falta de factualidade material concreta alegada invocadas na contestação;
(ii) foi desvalorizada e não valorada a declaração de parte / confissão do réu vertida na contestação, a qual, caso tivesse sido valorada determinaria a inutilidade superveniente da lide e, consequentemente, a desnecessidade da prova pericial cuja realização foi ordenada;
(iii) foi ignorada a recusa fundamentada e perentória do réu em submeter-se ao exame pericial, sendo a realização de exame pericial ao réu/apelante ofensiva dos seus direitos de personalidade, identidade pessoal, familiar e patrimonial, os quais foram invocados pelo réu/apelante na contestação;
(iv) permite que o autor se sirva do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei.

Apreciando.

Invocando a violação dos artigos 591.º, alíneas b) e d), 595.º e 596.º, todos do CPC, o apelante defende que o tribunal de primeira instância não podia ordenar a realização de exames periciais sem antes conhecer das exceções invocadas por ele na respetiva contestação, nomeadamente a caducidade do direito de ação e a ineptidão da petição inicial. Ou seja, na perspetiva do apelante só após a prolação do despacho saneador, onde o tribunal teria de conhecer das exceções por si invocadas e acima referidas, e apenas se a ação houvesse de prosseguir, poderia o tribunal a quo ordenar a realização de exame pericial às partes.

Porém, desde já se adianta que o apelante carece de razão.

Está em causa a realização (antecipada) de exame pericial às partes através da colheita do respetivo ADN.

Exame pericial que foi, de facto, ordenado pelo tribunal a quo antes da prolação do despacho saneador, sede própria para o conhecimento das exceções invocadas pelo réu (cfr. artigos 595.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).

A produção antecipada da prova está expressamente contemplada no artigo 419.º, do Código de Processo Civil, o qual dispõe o seguinte:

«Havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspeção, pode o depoimento, a perícia ou a inspeção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a ação».

Tal preceito legal permite a produção dos meios probatórios nele referidos antes do momento processual em que normalmente seriam produzidos desde que estiver em risco a conservação da fonte de prova (impossibilidade) ou a facilidade de a produzir (grande dificuldade) – assim, Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, 2017, p. 231.

Já Alberto dos Reis [Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª Edição, 1950, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, pp. 331 e seguintes.] ensinava que «os princípios de orientação a que o Código obedeceu nesta matéria foram dois:

1.º Tratando-se de prova por depoimento de parte ou de testemunhas, o momento oportuno ou desejável para a produção é a audiência de discussão e julgamento;
2.º Tratando-se de prova por inspeção (exames, vistorias, avaliações, inspeção judicial), o período normal de produção começa com a abertura da instrução propriamente dita (…).
Pode, porém, suceder que a produção de determinada prova apresente caráter de urgência, incompatível com a espera do momento normal ou oportuno; pode dar-se o caso de haver risco de perda de prova, se houver de aguardar-se o momento próprio para a sua produção.
A lei provê a este perigo, permitindo a produção antecipada. (…) O fundamento legal da antecipação está assim designado: justo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de inspeção ocular» [...]

A partir de uma primeira leitura das disposições conjugadas dos artigos 419.º (o qual prevê o fundamento da produção antecipada de prova) e 420.º (o qual estatui a forma da antecipação da prova), ambos do CPC, poderia resultar a conclusão de que a antecipação da produção dos meios de prova ali previstos teria de ser requerida pela(s) parte(s).

Julgamos, porém, que a antecipação da produção de prova pode ser oficiosamente determinada pelo tribunal desde que, na pendência da causa, aquele constate que existe um justo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a produção de determinado meio probatório, no período normal da instrução do processo.

É que se o tribunal pode determinar oficiosamente qualquer diligência que às partes seja lícito requerer, como se depreende do disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil, parece-nos que também poderá determinar oficiosamente a antecipação de produção de um meio probatório que aquelas hajam indicado, verificado o respetivo fundamento legal. E julgamos, até, que o próprio dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º do Código de Processo Civil – e que foi invocado pelo tribunal a quo no despacho recorrido – o exigirá.

O dever de gestão processual implica uma direção ativa e dinâmica do processo com vista a alcançar quer uma rápida e justa composição do litígio quer uma melhor organização do trabalho do tribunal. Como referem João Correia / Paulo Pimenta / Sérgio Castanheira, Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2013, p. 23, «a satisfação do dever de gestão processual destina-se a garantir uma mais eficiente tramitação da causa, a satisfação do fim do processo ou a satisfação do fim do ato processual» [...].

Também Paulo Ramos / Ana Luísa Loureiro [Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Volume I, 2014, Almedina, pp. 47 e seguintes.] referem que a norma do artigo 6.º, n.º 1, do CPC é uma norma habilitadora de caráter abrangente concebida para permitir ao juiz temperar ou mitigar o formalismo processual, autorizando a modificação da tramitação processual normal através de uma adequação formal (esta consagrada no artigo 547.º do CPC [...]), desde que sejam respeitados os princípios processuais.

Assim, constatando o tribunal a existência do fundamento legal da antecipação da produção de prova, pode aquele, ao abrigo do dever de gestão processual conjugado com o disposto no artigo 547.º do CPC, ordenar oficiosamente a realização antecipada de determinado meio de prova, nomeadamente antes da prolação do despacho saneador ou até de despacho pré-saneador, se essa for a forma de assegurar a satisfação do fim do processo."

[MTS]