"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/09/2022

Jurisprudência 2022 (21)


Modificaçao do pedido;
admissibilidade


1. O sumário de RL 2/2/2022 (23308/19.7 T8LSB.L2-A-8) é o seguinte:

- A apropriação de determinada quantia da conta bancária, pertencente à herança, integra-se no mesmo complexo de factos da causa de pedir inicial (reivindicação de bens da herança, apropriação ilícita desses bens pelas RR.), constituindo a sua restituição, por um lado, mero desenvolvimento do pedido de condenação na restituição da quantia inicialmente peticionada e, por outro lado, concretização do pedido de condenação na restituição das quantias, propriedade da herança, que, entretanto, se viessem a apurar, pelo que deve a ampliação do pedido ser admitida.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na petição inicial foram formulados os seguintes pedidos:

- declaração de que todas as quantias que constituem e constituíram a conta bancária à ordem nº …. da Caixa de Credito Agrícola, tituladas pelas AA. e co tituladas pelas RR. pertencem exclusivamente e integram a herança aberta por óbito de AC, falecido em 19.06.2003;

 - condenação solidária das RR. a restituírem de imediato as referidas quantias no valor total de 17 079,52 € (dezassete mil e setenta e nove euros e cinquenta e dois cêntimos), por delas se apropriarem ilegitimamente, acrescido dos juros legais devidos desde a data de citação e até integral pagamento.

 condenação solidária das RR. a devolver quaisquer outras quantias, propriedade desta herança e que, entretanto, se venham a apurar, acrescida dos juros legais devidos desde a data de citação e até integral pagamento.

 - condenação solidária das RR. no pagamento, a titulo de indemnização, da quantia a liquidar em execução de sentença, a titulo de danos, incómodos e prejuízos que as AA. têm vindo a sofrer com todo este comportamento ilegal e ilegítimo das RR.

Para tanto alegaram, em síntese, que intentaram uma ação judicial que correu os seus termos no Juízo 1 - Central cível do Tribunal Judicial Comarca de … sob o número 5555, peticionando que as RR., solidariamente, restituíssem a quantia de 21 170,64 € à herança, por delas se haverem apropriado ilegitimamente e a título próprio. As partes efetuaram transação, homologada por sentença, em 13 de outubro de 2017 e transitado em julgado, da qual consta, além do mais, o seguinte:

“1- As partes declaram que, com os termos do acordo que segue, consideram prestadas e justificadas as contas devidas referentes à conta bancária da herança do falecimento de AC identificada no artigo 5º da petição inicial e até à presente data (13.10.2017).(…)
 
5- As partes obrigam-se a modificar as regras de movimentação da dita conta bancária identificada em 1º; A mesma passará a ser movimentada exclusivamente pela R., cabeça de casal, CC.
 
6- Acordam ainda as partes que os valores monetários dessa conta bancária apenas serão utilizados pela cabeça de casal para proceder a pagamentos de despesas correntes ou administração ordinária da herança, onde aí devem ser depositadas todas as receitas da herança, bem como eventualmente para pagar as despesas da tia Maria.”

Mais alegaram que o ponto 6 do citado acordo não está a ser cumprido, pois as RR. continuam a utilizar as referidas quantias em seu benefício próprio e exclusivo, aproveitando-se agora dos poderes de movimentação exclusivos que lhe foram concedidos através do acordo citado. [...] 

As RR. apresentaram contestação, por exceção e por impugnação. Arguiram o caso julgado por efeito das decisões proferidas no proc. nº …… (execução e embargos). Mais invocaram a inutilidade superveniente da lide, uma vez estar em curso processo de inventário, o qual deu entrada a 17 de outubro de 2019, e que corre termos no Cartório Notarial do F., sendo no inventário que estas questões devem ser debatidas, pelo que a presente ação deixa de ter qualquer efeito útil. No mais, impugnaram a factualidade atinente à apropriação das quantias monetárias.

Em 30/01/2020 foi proferida decisão que declarou a extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide.

Por acórdão desta Relação foi a referida decisão revogada e determinado o prosseguimento dos autos.

*

A factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a que consta do relatório antecedente.

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelas apelantes e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).

Assim, a única questão a decidir consiste em aferir da verificação dos pressupostos da admissibilidade da ampliação do pedido.

Nos termos do disposto no nº. 2 do art. 265º. do CPC., o autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.

Observado o requisito temporal - a ampliação foi requerida até ao encerramento da discussão em 1ª instância – há que aferir do requisito substantivo.

Como já ensinava Alberto dos Reis, Comentário ao Código de processos Civil, vol. III, pág. 93-94, “limite de qualidade de nexo a ampliação há-de ser o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, quer dizer, a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial.

Exemplo característico: pediu-se em acção de reivindicação, a entrega do prédio; pode mais tarde fazer-se a ampliação, pedindo-se também a entrega dos rendimentos produzidos pelo prédio durante a ocupação ilegal. (…)

Em vez de ser uma consequência, pode ser um desenvolvimento. Pediu-se o pagamento de uma dívida; pode depois alegar-se que a dívida vencia juros e pedir-se o pagamento destes (…).

A ampliação pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão primitiva se modifica para mais; a cumulação dá-se quando a um pedido, fundado em determinado acto ou facto, se junta outro, fundado em acto ou facto diverso”.

E como refere Castro Mendes, in Direito Processual Civil, Vol. II, p. 347-348:

“Exemplo de ampliação, no sentido rigoroso do termo, haverá “verbi gratia” se se pedir 100 contos de indemnização por certo acto danoso, que posteriormente é causa de novo prejuízo no valor de 20: o pedido de indemnização pode ser ampliado para 120 contos.

O que é necessário é que a ampliação ou o pedido cumulado seja desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, e que por conseguinte tenham essencialmente origem comum – causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelo menos integradas no mesmo complexo de factos.”

“Há, no entanto, duas maneiras de conceber o nexo de consequência ou de desenvolvimento a que se refere (para o pedido) a norma em apreço, consoante o conceito de que se parta de causa de pedir nesta matéria de alteração do objecto.

Assim o adverte Mariana França Gouveia fazendo notar que no instituto de alteração do objeto e da cumulação sucessiva são susceptíveis de utilização dois diferentes conceitos de causa de pedir que desembocam, um numa causa de pedir mais estreita, e outro, numa mais ampla.

Respetivamente, e como essa autora o refere, «ou se entende que a causa de pedir se identifica com a previsão da norma, ou melhor, com o acervo de factos constitutivos que compõem essa previsão; ou se entende que a causa de pedir, enquadrando todos esses factos constitutivos, se identifica com aquela que é comum ao objecto inicial e sucessivo». Concluindo: «Na primeira hipótese, só não haverá alteração da causa de pedir nos casos em que se mantêm idênticos todos os factos essenciais (…). Na segunda hipótese, a causa de pedir altera-se apenas se nenhum dos factos constitutivos das várias normas for idêntico».

E esclarece este último ponto, acrescentando: «Ou seja, se houver coincidência meramente parcial entre as previsões normativas onde se inserem os factos alegados, já não haverá alteração».

A circunstância de o legislador de 2013 (não obstante ter prescindido da possibilidade da alteração conjunta, e à partida inteiramente livre, do pedido e da causa de pedir, na réplica, por já não admitir esse articulado com essa função) ter mantido a norma do nº 6 do anterior art. 273º (que corresponde à do nº 6 do atual art. 265º), permitindo assim, como já se referiu, a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida, parece que implicará a sua adesão, pelo menos nesta matéria, ao acima referido conceito amplo de causa de pedir.

Que é aquele a que Mariana França Gouveia adere na matéria em apreço, quando procede à definição da causa de pedir através do facto principal comum a ambas as pretensões. Acrescentando: «Pretensões processuais, se houver também alteração do pedido, pretensões materiais, se houver apenas alteração da norma invocada». E mais adiante conclui: «A causa de pedir, para efeitos de cumulação sucessiva e alteração do objecto, superveniente ou não, deve ser definida como o facto principal comum às pretensões materiais alegadas originária e sucessivamente, em substituição ou em cumulação». – Ac. RC de 26/01/2021, www.dgsi.pt.

Revertendo ao caso dos autos.

Na petição inicial as AA. formularam, além do mais, o(s) pedido(s) de condenação solidária das RR. a restituírem as quantias de que se apropriaram pertencentes à herança deixada por óbito de AC, de que AA. e RR. são as únicas herdeiras, no montante global de € 17.079,52, por delas se terem apropriado ilegitimamente (designadamente mediante levantamentos e transferências bancárias), acrescido dos juros legais devidos desde a data de citação e até integral pagamento, bem como de condenação solidária das RR. a devolver quaisquer outras quantias, propriedade da herança e que, entretanto, se venham a apurar.

A petição inicial foi apresentada em 07/11/2019.

Na ampliação do pedido, deduzido em 13/04/2021, as AA. vieram alegar que no dia 11/12/2020 tiveram conhecimento de que as RR. efetuaram uma transferência bancária da conta da herança no valor de 5.000,00 € (cinco mil euros), para provisão despesas e honorários de advocacia para intervenção no processo de inventário nº 0000 e intervenção na presente ação, quantia que foi utilizada pelas RR., em 27 de novembro de 2020 para pagar aos seus mandatários, pelo que deve ser contabilizada na presente ação e de acordo com o peticionado 3º parágrafo, passando a reclamar a quantia de € 22.079,52.

A apropriação da quantia de € 5.000,00 da conta bancária, pertencente à herança, integra-se no mesmo complexo de factos da causa de pedir inicial (reivindicação de bens da herança, apropriação ilícita desses bens pelas RR.), constituindo a sua restituição, por um lado, mero desenvolvimento do pedido de condenação na restituição da quantia de € 17.079,52 e, por outro lado, concretização do pedido de condenação na restituição das quantias, propriedade da herança, que, entretanto, se viessem a apurar.

Verifica-se, assim, que não foi deduzida causa de pedir diversa, uma vez que, como se refere no acórdão da RC de 26/01/2021, acima citado, “nestas situações de consequência e desenvolvimento, o autor tem necessariamente que no âmbito da mesma causa de pedir, trazer aos autos factos que ainda não alegara, e que se consubstanciem, relativamente aos primitivamente alegados, como consequência ou desenvolvimento daqueles.”

Nos termos do disposto no artº 611º, nº 1 do CPC “deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão”, o que se conjuga com o princípio da economia processual, na vertente de procurar solução definitiva num único processo do maior número de litígios existentes entre as mesmas partes.

É exatamente o que se passa na ação. É inaceitável, além do mais, à luz deste princípio, que as AA. tenham que instaurar novo processo para possam fazer valer a pretensão de restituição relativamente a uma transferência bancária; mais, que o tenham de fazer sempre que tenham conhecimento de uma transferência ou levantamento de quantia monetária pertencente à herança, na pendência da presente ação."

[MTS]