Citação; efeitos;
interpelação para cumprimento
1. O sumário de STJ 27/1/2022 (1522/12.6TBMTJ-B.L1.S1) é o seguinte:
I – A citação do devedor na acção executiva deve considerar-se suficiente para afastar a situação de inexigibilidade, em sentido forte, por aplicação da norma da al. b) do n.º 2 do art.º 610.º CPCiv, solução essa conforme aos fins da acção executiva e a que melhor se coaduna com o que a lei dispõe para as obrigações alternativas da escolha do devedor (art.º 714.º) e para o caso paralelo da prestação de facto sem prazo (art.º 874.º).
II – O mesmo era de aplicar na vigência da redacção de 61 do art.º 804.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ou seja, antes do aditamento do n.º 3 do art.º 804.º CPCiv95/96, por aplicação da norma do art.º 805.º n.º 1 CCiv.
III - No mútuo liquidável em prestações, a lei admite o reembolso antecipado do capital se o devedor não pagar as prestações ou quotas de amortização, pelo que a mesma lei não faz depender o reembolso antecipado da resolução do contrato (art.º 781.º CCiv) – passa a existir, tão só, a imediata exigibilidade de todas as prestações.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"I
Portanto, e em função do adrede decidido, a questão de direito a apreciar situa-se em saber se a obrigação exequenda se tornou exigível em virtude da citação para a execução do Embargante, na qualidade de mutuário, para efeitos do art.º 781.º CCiv e nos termos conjugados dos art.ºs 805.º n.º 1 CCiv e 610.º n.º 2 al. b) CPCiv, como se decidiu no acórdão recorrido, ou se a falta de interpelação do devedor, antes da execução, afecta a validade ou a suficiência do título executivo.
Outro aspecto relevante, para citar o acórdão da Formação, será o de saber em que termos é que deverá ser deduzido o requerimento executivo, nomeadamente quanto à liquidação de prestações vincendas, para que a citação do executado possa equivaler a uma interpelação, para efeitos da norma do art.º 781.º CCiv.
II
Sobre o primeiro aspecto, cita-se o argumentário jusconclusivo do acórdão recorrido:
“Importa ter presente que a acção executiva de que estes autos constituem a oposição, deu entrada em 2012, logo as normas processuais aplicáveis no que concerne aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória é aplicável o CPC/95, por força do artº 6º nº 3 da Lei nº 41/2013, que aprovou o actual CPC, cuja entrada em vigor ocorreu a 1/09/2013 (cf. Artº 8º da Lei nº 41/2013).”“Donde, a questão suscitada deverá ser apreciada à luz do CPC/95, nomeadamente a forma de processo e tramites processuais, principalmente a circunstância de a citação ter sido antecipada em relação à penhora e não nos termos constantes da lei adjetiva actual, como defende o apelante.”“Importa ter presente o constante da decisão recorrida: «(…) no caso, não foi convencionado regime diferente do previsto no art.º 781.º do Código Civil, nada tendo sido acrescentado ao sentido de que sendo a dívida liquidada em prestações a falta do pagamento de uma delas importa o vencimento de todas, ou seja, o vencimento dos empréstimos. Ora, a mera exigibilidade imediata não pode confundir-se com vencimento automático de todas as prestações, o qual só ocorrerá por força da interpelação do devedor pelo credor. Com a interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação, realizando todas as restantes prestações, é que o credor manifesta verdadeiramente a sua vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribuiu. Com efeito, tem-se entendido, maioritariamente, que, no caso de obrigação pecuniária pagável em prestações sucessivas, o vencimento imediato das restantes prestações à falta do pagamento de uma delas, nos termos do art.º 781.º do Código Civil, constitui um caso de exigibilidade antecipada, mero benefício que a lei concede ao credor e que há-de ser exercido mediante interpelação do devedor, ficando aquele com o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas de todas as restantes prestações, cujo prazo ainda se não tenha vencido. Assim, se o mutuante/exequente queria ver imediatamente vencidas todas as prestações subsequentes às não realizadas, devia ter interpelado o devedor (no caso, o embargante) para proceder ao respectivo pagamento. Só com a interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação, realizando todas as restantes prestações, é que o credor manifesta verdadeiramente a sua vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribuiu. Em suma, para o vencimento imediato de todas as prestações, nos termos do art.º 781.º do Código Civil, o credor tem de interpelar o devedor.».“Ao contrário do defendido pelo apelante o direito executivo que a exequente pretende fazer valer na acção reporta-se ao vencimento antecipado das obrigações assumidas, sem que resulte invocada a resolução. Com efeito, o vencimento e a exigibilidade de todas as prestações acordadas no contexto dos contratos de mútuo dados à execução resultaram da verificação do que ficou contratualizado na cláusula 9, alínea a) dos respetivos documentos complementares e, bem assim, do disposto no artigo 781.º do CC, e não da resolução contratual que não constitui agasalho do direito invocado pela exequente.”“O busílis da questão reside nesta problemática: saber se a citação vale como interpelação.”“A resposta é, em nosso entender, neste caso positiva, pois toda a construção jurídica efectuada no âmbito do recurso pelo apelante assenta nas normas do CPC actual e não das que advém da aplicação do CPC, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12.12.”“Sob aplicação da lei adjetiva vigente à data da interposição da acção, a citação do Recorrente ocorreu antes do início das diligências executivas, pois o agente de execução, com data de 13-07-2012, informou e certificou nos autos que foi concretizada a citação do executado, sendo que a penhora do imóvel hipotecado apenas ocorreu em 02.08.2018.”“Ora, é certo que o então artigo 804.º, n.º 3 do CPC/95, até 2003, acautelava expressamente a possibilidade de a interpelação ser substituída pela citação, operando-se então o vencimento da obrigação com a citação no processo executivo. Possibilidade que está de igual modo hoje prevista no artigo 610.º, n.º 2, alínea b) do CPC.”“A reforma de 2003 suprimiu o nº 3 do artº 804º, que dispunha que se considerava “vencida com a citação do executado” a obrigação cuja “inexigibilidade derive da falta de interpelação”. Tal ocorreu com a redação introduzida no artigo 804.º pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8.3, situação que se manteve inalterada na redação decorrente do Decreto-Lei nº 226/2008, de 20.11, e assim permaneceu até ao atual CPC de 2013.”“Comentando essa eliminação, Carlos Lopes do Rego sublinhou que «no essencial, tal regime se mantém, por força do estipulado no artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil, que confere plena relevância à interpelação judicial – a qual, como é óbvio, se poderá naturalmente consubstanciar na citação para o processo executivo.» (Requisitos da Obrigação Exequenda, publicado na Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, n.º 7, 2003, Almedina, pp. 70-71).”“Realçou, porém, a estrutura do processo previsto nos artigos 812.º-A, n.º 1, alíneas c) e d), e 812.º-B do CPC, introduzida pelo citado Decreto-Lei n.º 38/2003: «não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efetivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extra-judicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva.» (obra e pp. citadas).”Tem-se por adequada a exposição supra, à qual se adere, sem prejuízo de outros argumentos que juntamos infra.
III
É certo que, tendo em conta a redacção do art.º 802.º CPCiv61, que permaneceu vigente até à reforma de 2013, não poderia promover-se uma execução enquanto a obrigação não fosse exigível – como afirma o acórdão recorrido, e é inteiramente de subscrever, é tão inexigível a obrigação que ainda não está vencida, como aquela que depende, para a sua exigibilidade (em sentido forte) de um comportamento adicional, interpelativo, do credor.
E não menos certo é que a reforma de 2003, que suprimiu o n.º 3 do art.º 804.º (o qual considerava “vencida com a citação do executado” a obrigação cuja “inexigibilidade derive da falta de interpelação”), veio aproximadamente repor a redacção dos n.ºs 1 e 2 do art.º 804.º CPCiv, tal como existente antes da reforma de 95/96.
Ora, mesmo na vigência da redacção de 61 dada ao art.º 804.º n.ºs 1 e 2 CPCiv, ou seja, antes do aditamento do n.º 3 do art.º 804.º CPCiv95/96, a quase generalidade da doutrina sempre entendeu que valia como interpelação a citação para a acção executiva, como interpelação judicial que é, por aplicação da norma do art.º 805.º n.º 1 CCiv – assim, Castro Mendes, Acção Executiva, Lições de 69/70, pg.9, e Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 1986, pgs. 202 e 206ss. – na jurisprudência, p.e., o Ac.R.P. 26/6/90 Col.III/227 (Matos Fernandes), optando pelo que considerou “a opção menos conceptualista e literal, em salvaguarda do desejável princípio da economia processual”.
Mesmo José Alberto dos Reis, no seu Processo de Execução, 1.º. 1985, pg.467, defendendo embora que, requerida pelo credor, antes da interpelação do devedor, a execução para pagamento de uma dívida sem prazo certo, se infringia o disposto no art.º 802.º CPCiv (promovia-se a execução sem que a obrigação se tivesse tornado exigível – e, portanto, cabia ao juiz indeferir liminarmente a petição), também entendia que não existia fundamento decisivo para que a citação, posto que tivesse sido efectuada, não produzisse, na acção executiva, o efeito que as normas dos art.ºs 481.º al. c) (na redacção de 39 – 485.º al. c), na redacção de 61) e 662.º n.º2 al. b) CPCiv produziam na acção declarativa.
E acrescentava – “Não há fundamento decisivo para que a citação não produza, na acção executiva, o efeito que as alíneas citadas lhe atribuem na acção declarativa. O credor devia interpelar o devedor antes de entrar na via da execução; mas desde que o executado é citado para pagar dentro de dez ou cinco dias, não se vê razão para que a citação não haja de substituir a interpelação e equivaler a ela, uma vez que recaia sobre o exequente a responsabilidade pelas custas e honorários do advogado do executado”.
Elucidativamente, escrevia Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, IV, pg.11, ao pronunciar-se sobre se as regras do processo declarativo ofendiam o preceito categórico do art.º 802.º CPCiv: “Deve dizer-se que, em princípio, a solução negativa é a que melhor se ajusta ao texto do art.º 802.º: se a execução só pode promover-se sendo exigível a obrigação, o que só sucede quando esta está vencida, nas obrigações puras, em que o devedor só fica constituído em mora depois de interpelado, a execução só pode promover-se após aquela interpelação.”
“Mas talvez não seja a de seguir.”
“Efectivamente, parece demasiado formal.”
“Não se vê razão para não se considerar, neste caso, a citação como a interpelação judicial a que se refere o n.º 1 do art.º 805.º do Código Civil.”
Por outro lado, Artur Anselmo de Castro (A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1970, pg.53), criticando a posição de José Alberto dos Reis quanto ao inicial dever de o juiz indeferir in limine a petição, entendia que a citação do devedor deveria considerar-se suficiente para afastar a situação de inexigibilidade na acção executiva, por não haver razão que justifique a não aplicação em processo executivo da norma da al. b) do n.º 2 do art.º 662.º CPCiv, acrescentando: “aliás, esta solução, já de si mais conforme com os fins da acção executiva, quando se sabe que o devedor não quer pagar, é a que melhor se coaduna com o que a lei dispõe para as obrigações alternativas da escolha do devedor (art.º 803.º) e para o caso paralelo da prestação de facto sem prazo (art.º 939.º)”. [..]
V
A posição que adoptámos, tal como exposto em III da presente fundamentação, é a que decorre da larga maioria das decisões disponíveis para consulta, dos tribunais superiores, salientando-se entre outras (mutatis mutandis, sobretudo na destrinça entre notificação do devedor e notificação necessária do fiador): [...]
Acresce que, no caso dos autos, nem sequer se pode discutir, por apoio na posição de Lopes do Rego (Requisitos da Obrigação Exequenda, Themis, n.º 7, 2003, pgs. 70-71), que, “pela estrutura do processo previsto nos artigos 812.º-A, n.º 1, alíneas c) e d), e 812.º-B do CPC, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003: não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efetivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extra-judicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva.”
Na verdade, a citação do Embargante e Executado no processo foi efectuada em momento anterior e prévio à realização da penhora, pelo que outros considerandos nesta matéria resultariam em ostensivo obiter dictum.
Não deixe de se salientar, porém, que certas decisões têm aceitado o efeito de interpelação da citação efectuada após a penhora – nesse sentido, veja-se o Ac. S.T.J. 16/2/2020, pº 5995/03.0TVPRT-B.P1.S1 (desta mesma Secção do S.T.J., relatado pela Consª Catarina Serra).
VI
Quanto à questão de saber em que termos deverá ser deduzido o requerimento executivo, nomeadamente quanto à liquidação das prestações vincendas, para que a citação possa equivaler a uma interpelação.
Pensamos que o Exequente se houve dentro dos limites da cláusula 9.ª, al.a), do contrato, onde se lê que a hipoteca poderá ser executada se não forem pagas as prestações nas datas previstas, caso em que a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento imediato de todas.
Trata-se, manifestamente, de uma cláusula de estilo, que não afasta, e apenas reforça, o regime geral do art.º 781.º CCiv.
Nesse sentido, o teor do petitório executivo líquida o valor em dívida, por acordo com a citada cláusula do contrato e com a norma legal aplicável.
Não se trata, assim, como afirmámos, de exercitar o direito potestativo relativo à resolução do contrato, mas apenas interpelar quanto à perda de benefício do prazo, decorrente do contrato.
Nesse sentido, não se impunha a comprovação da interpelação prévia (art.º 804.º n.ºs 1 e 2 CPCiv03 ou actual art.º 715.º n.ºs 1 e 2 CPCiv), ou mesmo o pedido de citação com especificações diversas daquelas que constam da liquidação efectuada, por aplicação da norma do art.º 781.º CCiv."
[MTS]
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