"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/09/2022

Jurisprudência 2021 (240)


Restituição provisória da posse;
esbulho; violência


1. O sumário de RP 15/12/2021 (769/21.9T8VFR.P1) é o seguinte:

I - Para deferir a restituição provisória da posse, a violência, caracterizadora do esbulho, pode ser exercida sobre pessoas e sobre coisas, mas neste segundo caso a violência só releva se tiver por fim intimidar o possuidor, limitando a sua liberdade de determinação.

II - Se a acção recair sobre coisas e não directamente sobre pessoas, esta só poderá ser havida como violenta se, indirectamente, coagir o possuidor a permitir o desapossamento, pois apenas assim estará em causa a liberdade de determinação humana.

III - Há esbulho, para efeito de aplicação do referido art.º 377º do Código de Processo Civil, sempre que alguém foi privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar.

IV - O acto de estacionar um veículo automóvel, impedindo a entrada e vedando o acesso do requerente ao prédio do qual é proprietário, traduz-se num acto de esbulho violento, dado intimidar o possuidor, coagindo-o a suportar o desapossamento.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 377.º do Código de Processo Civil que: “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.

A restituição provisória de posse exige para a sua procedência a verificação cumulativa de vários pressupostos: a) Posse, b) Esbulho, c) Violência (vide, Moitinho de Almeida, Restituição de Posse, página 22).

A posse é um poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real - art. 1251º do C. Civil.

O esbulho consiste na perda de retenção ou fruição, ou a sua possibilidade de o fazer, da coisa ou direito.

Por outro lado, ocorre a violência quando se use de coacção física ou moral, nos termos do art. 255º do C. Civil, se forem praticados actos que constranjam a vontade do possuidor, obrigando este a submeter-se ao desapossamento.

Noutros termos, o esbulho caracteriza-se, pela privação total ou parcial, do poder do possuidor de exercer os actos correspondentes ao direito real que se traduzem na retenção, fruição do objecto da coisa ou da possibilidade de o continuar a exercer.

Mas esta privação só pode constituir fundamento de restituição provisoria de posse se for ilícita ou violenta - artigo 1279 do Código Civil.

A exequibilidade prática de tal direito encontra-se garantida pelo disposto nos art.s 377º do C. P. Civil e agora, mesmo que não exista violência, também pelo processo cautelar comum, previsto nos art.s 362 e segs. do mesmo código por via do disposto no art. 379º.

Resulta da matéria de facto que a requerente demonstrou a aquisição do prédio objecto destes autos e também demonstrou que apos a sua aquisição passou a tratar da sua limpeza e conservação e pagou os impostos e nessa medida é patente que demonstrou os dois elementos da posse o corpus e o animus.

Os requeridos tinham invocado a existência de um contrato de arrendamento como justo título para a posse que alegavam exercer sobre o imóvel objecto dos autos, mas tal como os próprios referem nas alegações de recurso, esse contrato não ficou provado, e nessa medida os recorrentes não demonstraram terem justo título para a posse.

O segundo elemento necessário para que seja decretada a restituição provisória da posse é o esbulho.

No âmbito desta providência é necessário, ainda, que o esbulho seja violento, nos termos do artigo 393.º do CPC e do artigo 1279.º do Código Civil, segundo o qual “o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.”

A violência está definida no artigo 1261.º, n.º 2, do Código Civil. Segundo aí se refere “considera-se violenta a posse, quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255.º”.

É matéria controvertida, tanto na doutrina como na jurisprudência, a questão de saber se, na caracterização da violência, esta tanto pode ser exercida sobre pessoas, como sobre as coisas, ou se o conceito deve ser limitado à coacção exercida sobre o possuidor.

A violência está definida no art. 1261°, n.º 2, do Código Civil, considerando-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do art. 255°.
Ora, de acordo com o n.º 2 do citado artigo, a ameaça integradora da coacção moral tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do esbulhado ou de terceiro.

Assim, não pode afastar-se liminarmente a relevância da acção do esbulhador sobre a coisa, havendo que analisar, em concreto, em que medida a violência exercida afecta a relação do possuidor com essa mesma coisa, adiantando-se que a caracterização como esbulho violento, para efeitos do disposto no artigo 1279º do Código Civil, não se limita ao uso da força física contra as pessoas, sendo ainda de considerar violento o esbulho quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios ou à natureza dos meios usados pelo esbulhador e, por isso, há-de considerar-se privado da posse, em virtude de acção violenta dos esbulhadores, exercida sobre a coisa.

Teremos de ter em atenção que uma acção concretizadora de esbulho se não pode confundir com um acto de turbação da posse, porquanto se, porém, o possuidor não perde o contacto com a coisa possuída, mas é meramente inquietado na sua posse por alguém não legitimado a fazê-lo, temos a turbação (Guerra da Mota; Acção Possessória; pág. 134).

Só de acções de restituição provisória de posse ou acções de esbulho violento se pode falar se o possuidor, mercê de acto violento, perde o contacto com a coisa possuída.

Para outros desenvolvimentos, vide o Ac da RG, processo: 3208/19.1T8GMR.G2, Relator: PAULO REIS, 17-10-2019: «Sumário: I- A violência que caracteriza o esbulho, suscetível de determinar a providência cautelar de restituição da posse, tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre coisas; II- Para integrar o conceito de violência no esbulho é suficiente a verificação de uma ação física exercida sobre determinada coisa como meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade ao impedi-la, face aos meios utilizados, de aceder ou utilizar a coisa que vinha possuindo.».

No caso dos autos resulta que o requerido estacionou um veículo que vedou a entrada do prédio objecto desta providência, tendo impedido o legal representante da requerente de aceder ao prédio e impedido a entrada do camião que pretendia entrar a mando do legal representante da requerente, e nessa medida esse acto traduz-se num acto de esbulho violento ao implicar que o possuidor haja ficado privado da posse que tinha."

[MTS]