"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/09/2022

Jurisprudência 2022 (24)


Procedimento de injunção;
âmbito de aplicação


1. O sumário de RC 25/1/2022 (8509/20.3YIPRT.C1) é o seguinte:

I) O procedimento especial de injunção é o processo próprio para exigir judicialmente o cumprimento das seguintes obrigações: obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a € 15 000; obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, e pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, independentemente do valor da dívida.

II) Não basta que uma pessoa celebre uma transacção que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração para ficar preenchido o conceito de empresa e para que essa transacção seja qualificada como comercial. É ainda necessário que: i) essa pessoa actue enquanto organização no âmbito de tal actividade ou de uma actividade profissional autónoma, o que implica que a referida pessoa, independentemente da sua forma e estatuto jurídico no direito nacional, exerça uma actividade económica de forma estruturada e estável, actividade essa que não se deve limitar a uma prestação pontual e isolada; ii) a transacção em causa se inscreva no âmbito da referida actividade.

III). Não é um contrato entre empresas e não é transacção comercial o contrato de empreitada celebrado entre um empresário em nome individual que se dedica à actividade de construção civil no âmbito da qual outorgou em tal contrato, e outra pessoa singular que pretende destinar o produto da empreitada (moradias) à venda ou arrendamento, mas em relação à qual não se prova que se dedica à construção de edifícios para venda.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em primeiro lugar, a prova produzida – constituída especialmente pelas declarações do réu, pelos depoimentos das testemunhas D. , E. , F. e até pelas declarações do próprio autor - aponta no sentido de que, tendo por referência esse ano, bem como os seguintes, o réu estava emigrado na Alemanha há vários anos.

E quanto à actividade profissional dele em tal país, o mesmo declarou - sem que este tribunal tenha razões para duvidar da veracidade que disse - que tinha, desde 1978, uma empresa de distribuição de produtos alimentares e bebidas.

Em segundo lugar, dando crédito ao que disse o autor e a sua filha E. , o réu é proprietário de vários imóveis Portugal. Com efeito, o réu afirmou: “eu tenho vivendas no Algarve, em tenho vivendas em Coimbra, tenho vivendas na Figueira da Foz e tenho vivendas em Pombal, e tenho um prédio em Pombal, mas tenho tudo alugado”. Por sua vez, a testemunha E. afirmou que o pai tinha um imóvel na localidade de Pedrógão Grande e outro no Algarve.

Esta realidade é, no entanto, insuficiente para se presumir que o réu dedicava-se, no ano de 2003, à construção de imóveis para venda e arrendamento. [...]

Em terceiro lugar, as circunstâncias em que o réu adjudicou ao autor a construção das moradias em questão nos autos e as circunstâncias em que decorreu tal construção não são próprias de alguém que se dedica à construção de imóveis para venda. Se, na realidade, o réu se dedicasse à construção de casas para venda, o que seria normal é que fosse ele próprio a construir ou a escolher o empreiteiro; o que seria normal é que, uma vez adjudicada a empreitada, acompanhasse de perto a execução da obra.

Não se passou nada disto. Sabe-se pelo exame do próprio contrato de arrendamento que não foi ele quem subscreveu o contrato. O contrato foi subscrito por D. em nome do dono da obra. Sabe-se pelas declarações do autor, da testemunha D. e do próprio réu que quem escolheu o empreiteiro foi o tal Sr. J. e sabe-se também pelas declarações das mesmas pessoas que, enquanto a obra estava a ser construída, o réu estava emigrado na Alemanha e quem acompanhava a execução dela, representando o réu nos contactos com o empreiteiro, era o tal “Sr. J. ”.

Em consequência do exposto, altera-se a decisão proferida sob a alínea b) julgando-se não provado que o réu se dedicava em 2003 à construção de imóveis para revenda e arrendamento.

Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, cabe agora responder à questão de saber se o procedimento de injunção era admissível para exigir judicialmente aos réus o pagamento da quantia de 19 600 euros.

A resposta é negativa.

Como resulta do exposto acima, o recurso ao procedimento de injunção para exigir judicialmente o pagamento da quantia de 19 600 euros seria admissível se o contrato de onde emerge a obrigação de pagamento de tal quantia fosse de qualificar como transacção comercial para efeitos do Decreto-lei n.º 32/2003. Sucede que não é.

Segundo a alínea a) do artigo 3.º do diploma acabado de citar, entende-se por “transacção comercial qualquer transacção entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração”. E de acordo com a alínea b) do mesmo preceito, entende-se por “empresa qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular”.

Seguindo o acórdão do Tribunal de Justiça a União Europeia proferido em 15 de Dezembro de 2016, no processo n.º C-256/15, no que diz respeito à interpretação do conceito de transacção comercial e de empresa para efeitos da Directiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Junho, não basta que uma pessoa celebre uma transacção que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração para ficar abrangida pelo conceito de empresa e para que essa transacção seja qualificada como comercial na acepção do artigo 2.º, n.º 1, da citada directiva. É ainda necessário que essa pessoa actue enquanto organização no âmbito de tal actividade ou de uma actividade profissional autónoma. E esta exigência implica – continuando a seguir o acórdão - que a referida pessoa, independentemente da sua forma e estatuto jurídico no direito nacional, exerça uma actividade económica de forma estruturada e estável, actividade essa que não se deve assim limitar a uma prestação pontual e isolada, e que a transacção em causa se inscreva no âmbito da referida actividade.

Tendo presente este conceito de transacção comercial e de empresa, é de afirmar que o contrato de empreitada em causa nos autos não foi um contrato entre empresas e, por isso, não é de considerar como transacção comercial. É que se o autor cabe claramente no conceito de empresa, visto que se provou que se dedicava, como empresário em nome individual, à actividade de construção civil e que foi no exercício dela que celebrou com o réu o contrato com vista à execução de um edifício composto por duas moradias, já o mesmo não se pode dizer em relação ao réu. Na verdade, embora se tenha julgado provado que o réu solicitou ao autor a edificação de duas moradias geminada para as vender ou arrendar, não ficou demonstrada a alegação de que ele, réu, se dedicava à construção de edifícios para venda. E sem esta prova não se pode afirmar – como fez o requerente - que o contrato em causa nos autos se inscreva no âmbito de tal actividade. Por outras palavras, a realidade que se apurou não permite concluir que quando celebrou o contrato de empreitada, o réu era um empresário da construção civil e que tenha sido no exercício desta actividade que solicitou ao autor a edificação das duas moradias.

Logo, o contrato em causa não cabe no conceito de transacção comercial para efeitos do Decreto-Lei n.º 32/2003. E não caindo nele, não era admissível exigir judicialmente ao réu o pagamento da quantia de € 26 622,86 através da providência de injunção.

Esta inadmissibilidade configura uma excepção dilatória inominada que determina a absolvição da instância dos réus (n.º 2 do artigo 576.º do CPC). Citam-se, a título de exemplo, deste entendimento o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 26-09-2005, no recurso n.º 0554261, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 20-05-2014, no processo n.º 30092/13.6YIPRT.C1, e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 21-04-2016, no processo n.º 184887/14.1YIPRT.L1-8, todos publicados em www.dgsi.pt. Na doutrina cita-se em abono deste entendimento Salvador da Costa, páginas 172 de “A Injunção e As Conexas Acção e Execução, Almedina”.

Não se ignora que a dedução da oposição determinou, no caso, a remessa dos autos para o tribunal competente, com aplicação, aos termos posteriores do processo, da forma de processo comum e que o processo comum de declaração é apropriado para conhecer da acção destinada a exigir o pagamento da quantia de € 26 622,86, ainda que esta não proceda de transacção comercial na acepção da alínea a) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 32/2003.

E também não se ignora que o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão proferido em 14-02-2012, no processo n.º 319937/10.3YIPRT.L1.S1. publicado em www.dgsi.pt decidiu que “remetidos os autos para o tribunal competente e aplicando-se o processo comum ordinário face à dedução de oposição ao pedido de injunção de valor superior à alçada da Relação (cf. o disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro) a questão que consiste em saber se a transação comercial que esteve na origem do crédito reclamado é ou não daquelas que permitem a injunção, não exerce qualquer influência no mérito da causa, saber se o pedido de pagamento deve ou não deve proceder, nem exerce qualquer influência na tramitação da causa visto que estamos em processo comum e não em processo especial”.

No entender deste tribunal, a remessa dos autos ao tribunal competente com aplicação, aos termos posteriores do processo, da forma de processo comum não satisfaz por completo os direitos processuais dos réus. Com efeito:

· Se a acção seguisse desde o início os termos do processo comum, como deveria ter seguido, os réus teriam a faculdade de a contestar no prazo de 30 dias a contar da citação [n.º 1 do artigo 569.º do CPC), ao passo que, no caso, dispuseram apenas de 15 dias para deduzir oposição [n.º 1 do artigo 12.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro];

 · Se a acção seguisse desde o início os termos do processo comum, como deveria ter seguido, os réus seriam citados apenas para a contestar, ao passo que, no caso, foram notificados para em 15 dias pagarem ao requerente a quantia pedida ou deduzirem oposição à pretensão;

 · Se a acção seguisse desde o início os termos do processo comum, como deveria ter seguido, no caso de não ser contestada, a consequência seria a confissão dos factos articulados pelo autor [n.º 1 do artigo 567.º do CPC], ao passo que, no procedimento de injunção, na hipótese de não ser deduzida oposição, o requerimento inicial passa a ter força executiva (n.º 1 do artigo 14.º do [n.º 1 do artigo 12.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro].

Segue-se do exposto que o recurso à providência de injunção ou à acção declarativa com processo comum para exigir o pagamento da quantia de € 26 622,86 não era indiferente para os direitos processuais dos réus.

Ora, estes tinham não só o direito de se opor a que lhes fosse exigido o pagamento através da providência de injunção, como o direito de serem demandados através do processo comum de declaração.

E, assim, aplicando ao caso, com as devidas adaptações, a regra do n.º 2 do artigo 193.º do CPC, de acordo com a qual em caso de erro na forma do processo ou no meio processual não devem aproveitar-se os actos já praticados, se do facto (isto é, se do aproveitamento) resultar uma diminuição das garantias do réu, não é de aproveitar o requerimento de injunção e os actos subsequentes."

[MTS]