"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/09/2022

Jurisprudência 2022 (30)


Recurso de revisão;
documento novo; prova pericial*


1. O sumário de RG 27/1/2022 (1000/20.0T8VCT-A.G2é o seguinte:

I – A força vinculativa do caso julgado só pode ser afastada nos casos excepcionais em que o próprio legislador ordinário previu a possibilidade de não vigorar o princípio da intangibilidade do caso julgado, tal como acontece nos casos de admissão do recurso extraordinário de revisão previsto no art. 696º do CPC.

II – O recurso extraordinário de revisão faculta a quem tenha definitivamente ficado vencido na causa a possibilidade de a reabrir mediante a invocação de fundamentos taxativamente previstos no art. 696º do CPC, as quais se referem à actividade material do juiz, à situação das partes, à formação do material probatório e à preterição do caso julgado.

III – Na primeira fase da tramitação do recurso de revisão – a fase rescindente –, verifica-se se existe ou não fundamento para a revisão, mantendo-se ou revogando-se, em consonância, a decisão recorrida. Na eventualidade do recurso ser julgado provido, segue-se a fase rescisória em que se procede à ressuscitação da instância (expurgada da falsidade que a inquinou) em que se produziu o caso julgado e se julga a mesma acção, mantendo-se intocáveis a causa de pedir, o pedido, os sujeitos e o valor da causa.

IV – O fundamento previsto na al. c) do art. 696º do CPC refere-se a um documento escrito dotado de força probatória plena que seja suficiente para, por si só (alheando-se assim da margem de apreciação do julgador – trata-se de um julgamento produzido pela lei, embora com reflexo na matéria de facto), destruir a prova em que se fundou a decisão.

V – Constitui documento escrito autêntico (cfr. arts. 362º, 363º, 369º e 370º do CC), dotado de força probatória plena (cfr. art. 371º do CC), relatório do INMLCF com o resultado de exclusão do A. da paternidade da R., na sequência de testes de ADN a que ambos voluntariamente se submeteram.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Entende o recorrente que a sentença recorrida enferma de um clamoroso erro de julgamento, ao concluir que “Real e efetiva possibilidade de exercer o direito ao esclarecimento da verdade biológica teve J. M. na acção de investigação, bastando-lhe para tanto haver litigado com o mínimo de diligência”, e, tendo o recorrente invocado a alínea c) do artigo 696° do CPC para o recurso de revisão, ao não considerar como documento os relatórios de exame de ADN: “O relatório dos exames de ADN não corresponde propriamente a documento, sendo habitualmente o resultado de prova pericial e esta é produzida no decurso da causa, não antes desta, e é-o por determinação do tribunal (art. 467º CPC)”.

Quid iuris?

São duas as questões que o recorrente questiona e que estiveram na base da improcedência da acção recorrida: a intangibilidade do caso julgado e não estarmos perante um caso excepcional em que é facultada a reversão (art. 696º do CPC), pois não se verifica a invocada alínea c) do art. 696º do CPC, em virtude de pôr em causa a aceitação de relatórios de exames de ADN como equivalentes a documentos.

Ora, não se questionando a intangibilidade do caso julgado e a existência de casos excepcionais em que é facultada a reversão, já se discute a conclusão de que, in casu, "Real e efectiva possibilidade de exercer o direito ao esclarecimento da verdade biológica teve J. M. na acção de investigação, bastando-lhe para tanto haver litigado com o mínimo de diligência (é no processo que a parte tem de colocar todo o esforço em defesa da respectiva posição, por não existir segunda oportunidade), bem como que "O relatório dos exames de ADN não corresponde propriamente a documento, sendo habitualmente o resultado de prova pericial e esta é produzida no decurso da causa, não antes desta, e é-o por determinação do tribunal (art. 467º CPC)".

Com efeito, perante a transitada decisão de 26-11-1982 proferida na acção de investigação de paternidade e que declarou ser J. M. pai de A. M., não está agora em causa a instauração por aquele de uma nova acção com o mesmo objecto, atento que a decisão definitiva nela proferida constitui caso julgado impeditivo da instauração de uma segunda acção, fazendo precludir o direito daquele de, através desta nova acção e com recurso a novos meios de prova, impugnar a paternidade judicialmente estabelecida. Concordando-se, tal como defendido no Ac. do STJ proferido em 7-03-2019 [In Proc. nº 749/17.9T8GRD.C1.S1 e acessível in www.dgsi.pt.], que “A prevalência do princípio da intangibilidade do caso julgado sobre o direito fundamental à verdade biológica e à identidade e integridade pessoal, inferível do artigo 26º, da Constituição da República Portuguesa, decorre da própria opção feita pelo legislador constitucional, plasmada no nº 3 do citado art. 282º, que proclama categoricamente o princípio da ressalva dos “casos julgados”, apenas admitindo as exceções previstas nesta norma, todas elas ligadas ao domínio do direito penal e do direito sancionatório público, e, nessa medida, insuscetíveis de aplicação analógica a outras áreas do ordenamento jurídico.”. Fazendo, pois, aqui sentido dizer, tal como se refere na sentença recorrida, que é no processo que a parte tem de colocar todo o esforço em defesa da respectiva posição, por não existir segunda oportunidade. Valendo tal entendimento para as situações em que o autor não contestou a acção de investigação de paternidade contra ele proposta pelo Ministério Público ou não se empenhou convenientemente. [...]

Ora, o que está aqui em causa é um recurso extraordinário de revisão.

Como já se escreveu [Neste sentido, vide, Manuel de Andrade, in, Noções Elementares, Coimbra Editora, 1979, págs. 306 e 318], “O recurso extraordinário de revisão é um expediente processual que faculta a quem tenha ficado vencido num processo anteriormente terminado a sua reabertura, mediante a invocação de certas causas taxativamente invocadas na lei, no artigo 696º do Código de Processo Civil.

Podem agrupar-se em quatro categorias, consoante se referem

1) - à atividade material do juiz;
2) - à situação das partes;
3) - à formação do material instrutório;
4) - à preterição do caso julgado.

Normalmente, a marcha do processo reparte-se por duas fases.

A fase rescindente, que se destina a apreciar o fundamento do recurso, isto é, a reconhecer ou não como verificado o fundamento da revisão, de acordo com uma das situações elencadas no referido artigo 696º, mantendo-se ou revogando-se a decisão contestada.

Se o recurso não for provido, termina então aqui a revisão.

A fase rescisória existe se o recurso for provido, reabrindo-se a anterior instância onde foi produzido o caso julgado, expurgada da falsidade que inquinou aquele e com a finalidade de, agora, uma outra vez, se julgar a mesma ação. Não se trata de uma nova instância, mas do ressuscitar da mesma instância, mantendo-se, pois, quanto ao valor, sujeitos, pedido e causa de pedir.

No caso concreto em apreço, está em causa a terceira categoria de causas da revisão, ou seja, a formação do material instrutório, prevista na alínea c) do citado artigo 696º.

Nos termos do corpo deste artigo e da alínea em questão, “a decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando (…) se apresente um documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.”

Deste normativo, ressalta à evidência que o que está em causa é a existência de um documento e de um documento em sentido estrito, ou seja, de um documento escrito.

Por outro lado, e conforme é unânime na doutrina e na jurisprudência, o “documento há-de ser tal, que por si só tenha força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença; quer dizer, o documento deve impor um estado de facto diverso daquele em que a sentença assentou” – Alberto dos Reis “in” Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, página 356.

Dito doutro modo “estamos, em suma, no patamar da prova legal e vinculada – da prova plena – à qual é, em absoluto alheio qualquer tipo de julgamento de facto produzido pelo julgador, à luz da sua liberdade de apreciação (…). O julgamento – quanto ao pertinente documento – se bem que com reflexo no facto, é de direito, produzido pela própria lei” – Brites Lameiras “in” Notas Práticas ao Regime dos Recurso em Processo Civil, 2ª edição, página 295.”.

Vejamos, agora, a outra questão do recurso: o documento invocado pelo recorrente.

Como já supra referido, o recurso de revisão de sentença regulado nos arts. 696º e ss. do CPC é o meio processual destinado a impugnar decisões que já tenham transitado em julgado. Trata-se de um recurso extraordinário, como bem se compreende. Só em situações muito delimitadas é que é possível pôr em causa, o princípio da estabilidade e segurança jurídica inerente ao trânsito em julgado de uma decisão, assentando o recurso de revisão no princípio da justiça material, permitindo a alteração de uma decisão que se encontra errada.

O recorrente requereu ao abrigo do disposto no art. 696º, c) do CPC, a revisão da sentença proferida em 26-11-1982, apresentando como documento o relatório do INMLCF datado de 27-01-2020, com o resultado de exclusão do A. da paternidade da R., na sequência de testes de ADN a que ambos voluntariamente se submeteram.

Como assertivamente refere o recorrente nas suas alegações, trata-se inequivocamente de documento escrito autêntico (cfr. arts. 362º, 363º, 369º e 370º do CC), que faz prova plena dos factos aí atestados pela entidade documentadora (cfr. art. 371º do CC).

Dispõe a al. c) do art. 696º do CPC, que “a decisão transitada em julgado pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”.

A procedência do pedido de revisão depende assim de três requisitos:

- que se apresente documento novo;
- que a parte não dispusesse nem tivesse conhecimento dele;
- que, por si só, o documento seja suficiente para modificar a decisão em sentido para si mais favorável.

A “novidade” significa que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde socorrer-se dele e desde que não tenha podido juntá-lo ao processo por facto que não lhe seja imputável.

In casu, o documento ainda não existia, até porque à data em que a acção foi julgada - princípios dos anos 80 -, ainda não existiam exames de ADN [...], que apenas surgiram em meados da década de 90.

Conforme resulta claramente do texto legal não é qualquer documento que pode fundamentar um recurso de revisão, mas só aquele que por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, devendo ser suficiente para destruir a prova em que a sentença se fundou. Se o documento, quando relacionado com os demais elementos probatórios produzidos em juízo, não tiver força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença, não há razão para abrir um recurso de revisão [Cfr. Ac. da RL de 2-06-2004, proferido no Proc. nº 619/2004-4 e disponível em www.dgsi.pt.].

A este propósito veja-se o que afirma Rodrigues Bastos [Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, 3ª ed., pág. 319.] que “não preenche este fundamento a apresentação de documento com interesse para a causa que, relacionado com outros elementos probatórios produzidos em juízo, fosse susceptível de determinar uma decisão mais favorável para o vencido; para servir de fundamento à revisão, é necessário que o documento, além do carácter de superveniência, faça prova de um facto inconciliável com a decisão a rever, isto é, que só por ele se verifique ter esta assentado numa errada averiguação de facto relevante para o julgamento de direito.”

Por sua vez Luís Filipe Brites Lameiras [Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, p.197.] que defende que o documento que for junto para fundamentar a revisão tem de possuir “uma força probatória qualificada, auto-suficiente e impossível de destruição – só por si ele é suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável. Estamos em suma, no patamar da prova legal e vinculada – da prova plena – à qual é, em absoluto alheio, qualquer tipo de julgamento de facto produzido pelo julgador, à luz da sua liberdade de apreciação (artº 655º). O julgamento – quanto ao pertinente documento -, se bem com reflexo no facto, é de direito, produzido pela própria lei”.

Quanto à suficiência, o Código de 1939 exigia que o documento tivesse a virtualidade de “destruir” a prova em que a decisão revidenda se havia fundado.

O Código de 1961, e as alterações ulteriores, vieram “aligeirar” esse requisito: - não se exige já que o documento altere radicalmente a situação de facto em que assentou a sentença [acórdão] revidenda, basta que lhe implique uma modificação dessa decisão em sentido mais favorável à parte vencida [Neste sentido, vd. Acórdão do STJ de 17-09-2009, in Proc. nº 09S0318, disponível em www.dgsi.pt.].

Ainda, a propósito da suficiência, no Ac. do STJ de 18-12-2013 [In Proc. nº 3061/03.7TTLSB-B.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt.], entendeu-se que:

“O requisito da suficiência tem de ser entendido como exigência de que o documento apresentado disponha de total e completa suficiência probatória, no sentido de que, se esse documento tivesse sido tomado em consideração pelo tribunal que proferiu a decisão revidenda, essa decisão nunca poderia ter sido aquela que foi – e isto sem fazer apelo a outros elementos de prova, sejam eles documentais, testemunhais ou periciais –, por constituir prova plena de um facto inconciliável com a decisão a rever”. Para decidir se um documento é suficiente, “importa colocarmo-nos nas vestes do tribunal que apreciou a factualidade trazida para os autos com vista a saber, se estando na posse desta declaração, a mesma iria alterar o sentido fáctico da decisão. Não se pondo em causa a autenticidade da mesma, outro tanto já não se pode dizer da credibilidade tendo em vista o objectivo que se pretende atingir”.

“Alberto dos Reis (Código do Processo Civil Anotado, Vol. VI, pág. 357) também ensina: “O magistrado para julgar se o documento é decisivo, deverá pô-lo em relação com o mérito da causa, deverá proceder ao exame do mérito e indagar qual teria sido o êxito da causa se o documento houvesse sido apresentado. Feito este exame, ou o magistrado se convence de que se o documento estivesse no processo, a sentença teria sido diversa e, neste caso, deve admitir a revogação; ou se convence de que, não obstante a produção do documento, a sentença seria a mesma, porque assenta sobre outras bases e está apoiada em razões independentes do documento – e neste caso deve repelir a revogação” [Como se defende no Ac do STJ de 20-03-2014, in Proc. 2139/06.0TBBRG-G.G1.S1, de onde foi retirado o extracto transcrito.].

Tendo o apelante junto relatório do INMLCF datado de 27-01-2020, com o resultado de exclusão do A. da paternidade da R., na sequência de testes de ADN a que ambos voluntariamente se submeteram, é bom de ver que tal documento, só por si, tem força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença que se pretende rever.

Concluímos, assim, relativamente à fase rescindente, que existe fundamento para o recurso ser provido, com a consequente revogação da decisão contestada.

Termos em que será julgado procedente o recurso.

*[Comentário] Nada se tem a objectar à solução propugnada no acórdão. A mesma encontra-se expressamente defendida em Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil II (2022), 213.

MTS