"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/01/2023

Jurisprudência 2022 (108)


Matéria de facto; apreciação da prova;
presunções judiciais


I. O sumário de RG 28/4/2022 (3162/20.7T8GMR.G1é o seguinte:

1. Não há qualquer contradição em dar como provado que, numa acção de anulação de testamento, à data de elaboração do mesmo o testador já estava diagnosticado com a doença de Alzheimer, e dar simultaneamente como não provado que aquando da outorga do testamento, o estado de saúde do testador não lhe permitisse discernir de forma a entender o sentido da sua actuação e proceder de acordo com a sua vontade, e que o testador não estivesse livre e capaz de se autodeterminar de acordo com a sua vontade quando outorgou o testamento referido.

2. A existência de um diagnóstico de Alzheimer prévio à elaboração do testamento não implica uma inversão do ónus da prova, a qual apenas ocorre nos casos previstos no art. 344º CC.

3. O diagnóstico de Alzheimer não é um dado abstracto, é uma situação concreta, que pode variar de caso para caso, para além daqueles traços que são comuns a todos os doentes.

4. O que pode suceder é operar uma presunção judicial, nos termos do art. 349º CC.

5. Essas presunções inserem-se no quadro do julgamento da matéria de facto, e como tal são casuísticas.

6. E assim, o uso de uma presunção judicial que permita extrair do diagnóstico de Alzheimer prévio ao testamento a conclusão de que à data da elaboração deste o testador já não estava capaz de formar de forma livre e lúcida a sua vontade e de a expressar correctamente, depende dos factos concretos que o autor conseguir provar acerca do estado mental do testador à data da declaração de vontade.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. [...] pretende o recorrente que estes factos não provados:

“a) aquando da outorga do testamento, o estado de saúde do testador não lhe permitisse discernir de forma a entender o sentido da sua actuação e proceder de acordo com a sua vontade
b) o testador não estivesse livre e capaz de se autodeterminar de acordo com a sua vontade quando outorgou o testamento referido em 5)
c) o testador tivesse quadros depressivos profundos e fosse facilmente manipulável”

sejam dados como provados.

Mas sem razão.

Em primeiro lugar, estas 3 alíneas podem ser condensadas numa única proposição: que o testador G. J. não estivesse, na data do testamento, capaz de formar a sua vontade de forma livre e esclarecida e proceder de acordo com essa vontade.

Para poder afirmar tal coisa, seria necessário demonstrar uma de duas coisas:

a) que o testador estivesse no momento afectado por uma qualquer incapacidade acidental e transitória;
b) que o testador estivesse nessa altura já a sofrer as consequências de uma doença que lhe retirasse de forma prolongada essa capacidade de percepção, volição e discernimento.

O cenário da alínea a) não foi alegado, pelo que nem se coloca.

Resta-nos o cenário da alínea b).

Só que esse foi o que acabámos de analisar. A posição que o recorrente defende é a de que o seu pai sofria de Alzheimer já desde 1995, pelo que quando elaborou o seu testamento, em 6.3.2008, já a doença o tinha privado da capacidade de entendimento e de formar de forma livre e esclarecida a sua vontade.

O que se provou foi que efectivamente ao testador tinha sido diagnosticada a doença de Alzheimer, mas a data mais recuada que foi possível estabelecer para esse diagnóstico foi Setembro de 2005.

Assim, temos alguém a quem é diagnosticada a doença de Alzheimer em Setembro de 2005, e que em Abril de 2008 faz um testamento. E a questão que se coloca é a de saber se na data em que fez o testamento já a doença o tinha privado da capacidade de formar livre e esclarecidamente a sua vontade e de a manifestar perante terceiros.

A resposta a tal pergunta, não tendo sido possível recorrer a perícia médico-neurológica no momento do testamento, só pode emergir de prova circunstancial, ou seja, de prova que nos diga qual o comportamento do testador no momento em que expressou a sua vontade perante o Notário.

E aqui, voltamos mais uma vez a ter de dizer que concordamos na íntegra com tudo o que se escreveu na sentença recorrida. E quando a decisão recorrida está correcta, o Tribunal de recurso pouco tem a dizer ou acrescentar.

O tribunal recorrido fundamentou assim a decisão:

As testemunhas que estiveram presentes no momento da outorga do testamento foram credíveis nos seus depoimentos, tendo contrariado a tese da incapacidade alegada pelo autor.

Desde logo, o Sr. Notário, C. R., foi peremptório em afirmar que não hesitaria em recusar o testamento se não estivesse absolutamente certo da livre vontade do testador. É, de resto, essa a sua prática habitual: quando se lhe suscitam dúvidas quanto à capacidade do testador -designadamente se o mesmo padece de alguma doença que pode ser incapacitante-, faz-se acompanhar de médicos, recusando o acto se estes não atestarem a capacidade. Por vezes, mesmo conhecendo a capacidade do testador, visando acautelar impugnações futuras, designadamente se aquele for muito idoso, faz-se também acompanhar de médicos que atestam a capacidade para o acto.

Daí que, se previamente à celebração do testamento lhe tivesse sido comunicado que o testador padecia de Alzheimer (como se viu supra, em Setembro de 2005 já estaria medicado para a doença), só celebraria o testamento se médicos atestassem a capacidade.
 
Porém, uma vez que nada lhe foi referido nesse sentido, seguiu os procedimentos habituais, falando com o testador durante algum tempo, para perceber a sua vontade, só depois celebrando o acto.

Nessa conversa não se lhe suscitou qualquer dúvida, quer quanto à capacidade do testador, quer quanto à sua real vontade, pois, como se disse já, se tal dúvida tivesse, não celebraria o testamento.

Ora, estando em causa um notário, experiente e visivelmente preocupado em não desvirtuar a vontade dos testadores, não há razão alguma para duvidar de que manteve com o autor do testamento um tipo de conversa que lhe permitiu, por um lado, perceber se o mesmo estava capaz, por outro, se o texto do testamento correspondia efectivamente ao que aquele pretendia.

H. C., advogado que esteve nesse acto, também foi muito claro no seu depoimento.

Foi o próprio quem elaborou o testamento, nos termos que lhe foram solicitados.

Conheceu o testador em 2004, no escritório do Dr. L. L., onde o depoente exercia e exerce advocacia, nada fazendo suspeitar que pudesse ter alguma doença incapacitante.

O ano de 2007 terá sido aquele em que G. G. foi pela última vez ao escritório do Dr. L. L., de quem era amigo pessoal. Nessa altura apresentava dificuldades, mas apenas de locomoção. E terá sido por causa dessa menor mobilidade que, em Março de 2008, o testamento foi outorgado na casa onde o testador residia durante grandes períodos de tempo, que era a casa do ora réu [artigo 6)]”.

Não temos muito mais a acrescentar.

Apenas realçar que o depoimento mais importante e decisivo, nesta matéria, foi o da testemunha C. T., o Notário que elaborou o testamento. Pela sua preparação técnica e pela sua experiência profissional, esta testemunha era a que melhor estava em condições de se aperceber se o testador estava ou não estava na plena posse das suas capacidades intelectuais. Do seu depoimento retira-se o seguinte:

-os factos ocorreram há 13 anos;
-fui à casa do testador;
-o formalismo que eu sigo é sempre o mesmo: faço ao testador as perguntas normais para ver se sabe o que quer e se está orientado no espaço e no tempo;
-quando tenho dúvidas levo médicos;
-neste caso não tive qualquer dúvida quanto às capacidades do testador;
-se as tivesse tido tinha recusado elaborar o testamento e tinha chamado médicos;
-lembro-me dos testamentos que são complicados, pelas mais variadas razões (testador surdo-mudo, etc) mas dos normais não me lembro, pelo que este foi normal;
-não sei porque é que o testador não assinou: às vezes dizem que tremem muito, não conseguem assinar, e eu digo que não há problemas, põem o dedo;
-este para mim não foi um testamento complicado;
-para mim o testador estava na plena posse das suas capacidades.

E não se tente desvalorizar este depoimento com o argumento de que a testemunha disse que já não se recordava da situação em concreto. É verdade que disse. Mas até isso lhe dá credibilidade. Poderia ser estranho se a testemunha se recordasse com detalhe de um testamento, igual a tantos outros, que fez há 13 anos. E a lógica do depoimento da testemunha é imbatível: embora não se recorde deste testamento em concreto, garante que segue sempre o mesmo formalismo, sendo o primeiro passo tentar aperceber-se da capacidade do testador para o acto. E se fez o testamento foi porque nada na conversa nem no comportamento do testador o fez suspeitar de que o mesmo não estivesse totalmente capaz de lhe transmitir de forma livre e esclarecida a sua vontade.

A única forma de abalar o peso probatório deste depoimento seria minando a credibilidade da testemunha. O que não foi feito, nem sequer tentado.

E não é o facto de ter sido diagnosticada ao testador a doença de Alzheimer 2 anos e 8 meses antes da data do testamento, que nos deve levar a concluir que ele já não estava em condições de emitir a sua vontade de forma livre e esclarecida. Mesmo sem ter sido produzida prova pericial sobre este tema, podemos assentar em que a doença de Alzheimer é uma doença de progressão gradual de perda das capacidades cognitivas. Mas sabemos que o testador estava medicado contra ela, pelo neurologista que o seguia há vários anos, e sabemos que o Notário que fez o testamento lhe fez as perguntas habituais para aferir da sua capacidade de testar, e das respostas que recebeu concluiu que nada impedia a realização do testamento. Só podemos concluir daqui que na data em que fez o testamento, o testador estava num estádio da doença em que ainda tinha as suas capacidades de saber o que queria e de o transmitir a terceiros intacta.

Diga-se ainda que o facto de G. J. não ter assinado o testamento não fortalece a tese do recorrente. O testador podia não conseguir assinar devido aos efeitos da doença de Parkinson, que se manifesta em diminuição motora, mas não de perda de faculdades cognitivas. [...]

E em conclusão, consideramos que não se vislumbra qualquer erro na decisão da matéria de facto. A qual confirmamos."

[MTS]