"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/01/2023

Jurisprudência 2022 (95)


Herança indivisa;
bens da herança; regime da compropriedade*


1. O sumário de STJ 21/4/2022 (2691/16.1T8CSC.L1.S1) é o seguinte:

I. A utilização de um imóvel da herança pelo cabeça de casal para sua habitação não integra um ato de administração da herança.

II. A utilização por qualquer herdeiro dos bens da herança em proveito próprio, nas situações em que o cabeça de casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, deve considerar-se sujeita ao regime do artigo 1406.º do Código Civil, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações.

III. A utilização de um determinado bem da herança por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do artigo 1406.º do Código Civil, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização.

IV. Ocorrendo uma ocupação por um herdeiro de um imóvel pertencente a uma herança, impeditiva do seu uso por outro herdeiro, o prejuízo causado a este último corresponde à parte do valor locativo daquela unidade predial no mercado de arrendamento, durante todo o período em que se verificar tal ocupação, correspondendo essa parcela à quota desse herdeiro na herança.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No processo de inventário por morte de DD, do qual são herdeiros os seus pais (a Autora e o 1.º Réu), perante a divergência sobre se uma fração predial e uma quota de 5/1091 das áreas comuns do condomínio onde está inserida aquela fração, integravam a herança do de cujus, foram os interessados remetidos para os meios comuns, nos termos do artigo 1350.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, então aplicável.

A Autora interpôs então a presente ação em que, além do pedido de simples apreciação de reconhecimento do direito de propriedade da herança sobre aqueles bens, também pediu a condenação do 1.º Réu a pagar-lhe uma indemnização equivalente a metade do valor locativo do imóvel que este e a sua família utilizam como sua habitação desde a morte do DD, até à partilha do mesmo.

Os Réus contestaram, mantendo a posição que já havia assumido no processo de inventário, ou seja, a de que aqueles bens não pertenciam à herança, sendo propriedade exclusiva do 1.º Réu.

Na sentença proferida no tribunal de 1.ª instância foi decidido que os bens objeto do litígio, integravam a herança por morte de DD.

Não tendo esta decisão sido objeto de recurso, a mesma transitou em julgado.

Já quanto ao pedido indemnizatório, a decisão de improcedência da 1.ª instância foi objeto de recurso para o Tribunal da Relação que a revogou, condenando os Réus a pagar à A. metade do que vier a ser apurado em liquidação de sentença como o valor mensal que seria possível obter num arrendamento das frações supra identificadas desde o óbito do falecido (25/2/2009) e até ao presente. Mais vão condenados a pagar à recorrente metade dos valores mensais que se vencerem até à partilha (ou à desocupação). Sobre os valores a pagar incidirão juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal e até integral pagamento.

Enquanto a sentença da 1.ª instância entendeu que a utilização dos bens da herança pelo Réu e a sua família para habitação, apenas poderia justificar a sua remoção do cargo de cabeça de casal da herança e uma exigência de prestação de contas da administração daqueles bens, não reconhecendo a existência de qualquer direito de indemnização à Autora, o Acórdão da Relação arbitrou a indemnização peticionada com fundamento na má administração desses bens pelo Réu.

Ambas as decisões partem do equívoco que a utilização pelo 1.º Réu daqueles bens da herança se traduz num exercício dos poderes de administração da herança que são atribuídos pelo artigo 2079.º do Código Civil ao cabeça de casal.

Além daqueles poderes especificamente atribuídos, como sejam os previstos nos artigos 2089.º e 2090.º do Código Civil, assim como muitos outros que constam de disposições legais dispersas, a competência do cabeça de casal para administrar os bens da herança atribui-lhe os poderes necessários para a prática de atos e de negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens administrados [1], neles não se incluindo, seguramente, a utilização dos bens da herança para seu exclusivo proveito, designadamente a utilização de um imóvel da herança para nele habitar com a sua família. Nesta situação, o cabeça de casal não administra (bem ou mal) aquele imóvel, mas serve-se dele em seu exclusivo benefício.

Daí que, nesses casos, não haja lugar a prestação de contas relativas a uma administração que não se exerceu, além de que a utilização de um bem da herança pelo cabeça de casal não se traduz em qualquer receita ou despesa para a herança, mas sim numa poupança do cabeça de casal e, portanto, numa receita indireta para ele próprio. Por igual razão, o cabeça de casal não pode ser responsabilizado por falta de zelo no exercício de funções que não assumiu, uma vez que, na sua ótica, aqueles bens pertenciam-lhe.

Estamos, pois, perante uma situação de uso de bens de uma herança, em proveito próprio, por um dos herdeiros que, irrelevantemente para o desfecho desta ação, era o cabeça de casal.

Esta realidade, que na vida corrente sucede com alguma frequência, não se mostra especificamente prevista e regulada pelas regras do direito sucessório, dispondo, contudo, o artigo 1406.º do Código Civil, inserido no capítulo da compropriedade, que, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.

O facto de ser entendimento, algo consolidado na nossa doutrina e jurisprudência, que, nas situações habitualmente apontadas como de comunhão em mão comum, designadamente na comunhão sucessória [---], os direitos dos contitulares não incidem sobre cada um dos elementos que constituem o património coletivo, mas sim sobre todo ele, como um todo unitário [---], não é um obstáculo à aplicação subsidiária daquela regra à utilização dos bens da herança pelos herdeiros, em situações alheias à sua administração pelo cabeça de casal, nos termos permitidos e até induzidos pelo artigo 1404.º do Código Civil.

Tenha-se em atenção que, relativamente à posse sobre os bens da herança, a qual após a morte do possuidor continua nos seus sucessores (artigo 1225.º e 2050.º do Código Civil) [---], apesar de nos encontrarmos perante uma posse “jurídica”, porque não exige a prática de atos materiais, qualquer dos herdeiros, além da ação de petição de herança (artigo 2075.º e seg. do Código Civil), pode utilizar os meios de defesa da posse relativamente a cada um dos bens da herança (artigos 1276.º e seg.), inclusivamente contra o cabeça de casal que não se encontre no exercício dos poderes de administração (artigo 2088.º, n.º 2, do Código Civil), sendo subsidiariamente aplicável a uma situação de composse, o que sucede sempre que se verifica uma pluralidade de herdeiros, o disposto no artigo 1406.º do Código Civil [---].

Daí que seja compreensível e adequada a aplicação subsidiária, com as necessárias adaptações, do disposto no artigo 1406.º do Código Civil à utilização pelos herdeiros dos bens da herança em proveito próprio, nos casos em que o cabeça de casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações [---].

Na hipótese sub iudice, não se provou que tenha existido qualquer acordo expresso entre a Autora e o Réu sobre a utilização dos bens da herança, pelo que este último só os poderia utilizar desde que não os empregasse para fim diferente daquele a que os mesmos se destinavam e não privasse a outra consorte do uso a que igualmente tem direito.

A utilização de uma fração predial destinada à habitação, atenta a privacidade inerente a tal uso, não permite que a mesma possa ser utilizada, em simultâneo, por herdeiros com diferentes agregados familiares. No entanto, a sua utilização por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do artigo 1406.º do Código Civil, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização [---]. Enquanto não se manifestar uma vontade de utilização do bem incompatível com o uso exclusivo que vem sendo feita pelo co-herdeiro em seu proveito não é possível concluir que esse uso tenha sido excludente do direito de uso dos demais herdeiros [8]. A privação só ocorre com a existência de uma vontade não satisfeita.

Mas, manifestada uma oposição a esse uso, a manutenção daquela ocupação passa a ser ilícita, uma vez que priva o herdeiro contestatário da posse de um bem comum, devendo este, e apenas ele, ser indemnizado da privação sofrida.

Assim, ocorrendo uma ocupação por um herdeiro de um imóvel pertencente a uma herança, impeditiva da sua posse por outro herdeiro e, portanto, ofensiva da composse sobre esse bem, o prejuízo causado a este último corresponde à parte do valor locativo daquela unidade predial no mercado de arrendamento, durante todo o período em que se verificar tal ocupação, correspondendo essa parcela à quota desse herdeiro na herança.

Deve, pois, ser esse o quantum da indemnização a pagar pelo herdeiro ocupante ao herdeiro privado do uso, nos termos dos artigos 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil.

No presente caso, não foi alegado e, consequentemente, não se provou que a Autora antes da propositura da presente ação tenha manifestado a sua oposição a que o Réu utilizasse os bens da herança, fazendo deles a sua habitação. Apenas com a propositura desta ação há conhecimento dessa posição da Autora, pelo que, só com a citação do Réu para contestar se constitui o dever de indemnizar, o qual se mantém até à desocupação do imóvel ou, caso esta não se verifique, até á cessação da situação de contitularidade do domínio e da posse sobre ele, através da partilha da herança.

Não se conhecendo o valor locativo do imóvel deve a liquidação do valor indemnizatório ser relegada para incidente a ser deduzido posteriormente, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

O acórdão recorrido condenou os Réus a pagar à Autora metade do que vier a ser apurado em liquidação de sentença como o valor mensal que seria possível obter num arrendamento das frações supra identificadas desde o óbito do falecido (25/2/2009) e até ao presente. Mais vão condenados a pagar à recorrente metade dos valores mensais que se vencerem até à partilha (ou à desocupação).

Sobre os valores a pagar incidirão juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal e até integral pagamento.

Atenta a fundamentação acima desenvolvida e não sendo objeto do recurso a responsabilidade da Interveniente no pagamento desta indemnização, deve manter-se aquela decisão condenatória, alterando-se apenas a data do início do período de ocupação, relativamente ao qual deve ser calculada a perda do valor locativo, passando aquela a ser a data da citação do Réu para a presente ação e não a data do óbito do autor da herança, mantendo-se o demais decidido.


*3. [Comentário] a) Dado que o acórdão alterou a data do início da ocupação do andar em benefício de ambos os réus, o caso cabe no âmbito de aplicação do disposto no art. 634.º, n.º 1, CPC, embora, como se tem vindo a acentuar, assim seja porque o litisconsórcio entre os réus é, além de necessário, unitário. É neste enquadramento que se deve entender a última frase acima transcrita.

b) O acórdão contém um voto de vencida, no qual se expressa que "o uso do prédio pelo réu pode e deve ser considerado para o efeito do apuramento das contas da administração da herança pelo cabeça-de-casal", citando-se o "Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça (2.ª Secção) de 10.09.2015 (Proc. 233/142TBAMT.P1.S1), onde se diz: “(…) relativamente à área ocupada pela Ré e sua família […], acolhemos, aqui, os argumentos do acórdão recorrido no sentido [de] que a utilização da Ré [de] parte da casa, se insere no exercício da administração”.

MTS