Competência internacional;
obrigações alimentares*
1. O sumário de RP 4/4/2022 (259/20.7T8SJM-B.P1) é o seguinte:
Os tribunais portugueses (concretamente, o Juízo de Família e Menores de S. João da Madeira) têm competência internacional para tramitar e decidir incidente de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais e ordenar as diligências para tornar efectiva a prestação de alimentos fixada por sentença de tribunal suíço, revista e confirmada pela Relação do Porto por decisão transitada em julgado, tendo o requerido residência habitual em Albergaria-a-Velha, apesar de a requerente e o menor continuarem a residir na Suíça.
"Em termos muito singelos, pode dizer-se que a competência de um tribunal é a parcela do poder de julgar, a parcela de jurisdição que, nos termos da lei, lhe cabe.
A distribuição desse poder de julgar pelos diferentes órgãos judiciários faz-se em função de determinadas regras: em razão da matéria, da hierarquia, do território, da forma de processo e do valor (artigo 60.º, n.º 2, do CPC). Mas este fracionamento do poder jurisdicional tem pressuposta a competência internacional dos tribunais portugueses.
Verificada uma situação que apresente elementos de conexão com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, a questão da competência internacional tem de ser equacionada para se apurar da susceptibilidade do exercício da função jurisdicional pelos tribunais portugueses.
Ora, em face dos termos em que o legislador se expressou na primeira parte do artigo 59.º do CPC («Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes…»), é perfeitamente claro que para se determinar essa competência impõe-se, antes de mais, apurar se existem tratados ou convenções internacionais ou regulamentos comunitários que vinculem o Estado português, pois as disposições neles contidas prevalecem sobre as normas processuais de direito interno[1], concretamente, sobre os segmentos normativos dos artigos 62.º, 63.º e 94.º, a que se alude na segunda parte daquele preceito legal.
Mas a consonância com o argumentário explanado pelo recorrente em defesa da incompetência internacional do tribunal português fica-se por aqui.
Na verdade, nenhuma das convenções (e os dispositivos citados) invocadas pelo recorrente (Convenção dos Direitos da Criança e Convenção Sobre a Cobrança de Alimentos no Estrangeiro, concluída em Nova Iorque em 20 de Junho de 1956 – conclusões 7.ª e 8.ª) excluem a competência internacional dos tribunais portugueses nesta matéria.
Por via do princípio da coincidência, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes se, de acordo com as regras da competência em razão do território, algum deles for territorialmente competente para a acção a propor (artigo 62.º, al. a), do CPC).
Neste âmbito, há que ter em consideração a Convenção [---] relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças (abreviadamente designada por “Convenção de Haia de 19 de Outubro de 1996”) que aqui foi aprovada pelo Decreto n.º 52/2008, de 13 de Novembro [---].
Nos termos do seu artigo 1.º, al a), a Convenção tem por objecto «determinar qual o Estado cujas autoridades têm competência para tomar as medidas orientadas à protecção da pessoa ou bens da criança» e, em matéria de competência, o artigo 5.º, n.º 1, estabelece que «as autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança».
Em sintonia com essas normas de direito internacional, o artigo 9.º, n.º 1, do RGPTC (Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro), estatui que «para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado» e entre estas providências está, naturalmente, «a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes» (artigo 3.º, al. c), do mesmo RGPTC).
Na altura em que foi regulado o exercício das responsabilidades parentais em relação ao menor CC, este residia na Suíça, tal como os seus progenitores, e por isso era o tribunal suíço o internacionalmente competente para esse efeito. E continua a sê-lo para decidir da alteração desse regime requerida pelo aqui recorrente.
Mas, como bem se sublinha na decisão recorrida, aqui e agora não está em causa «a regulação ex novo do exercício das responsabilidades ou a sua alteração».
Do que se trata aqui é de tornar efectiva a prestação de alimentos fixada pelo tribunal suíço, providência que se tornou necessária devido ao incumprimento do requerido/recorrente.
Tendo a sentença do tribunal suíço sido revista e confirmada por decisão desta Relação transitada em julgado, tornou-se eficaz e, portanto, os efeitos que lhe são próprios operem, plenamente, na ordem jurídica interna.
Para o referido efeito de tornar efectiva a prestação de alimentos, já não é a residência do menor que, necessariamente, releva. Da conjugação do disposto nos artigos 41.º, n.os 1 e 2, e 9.º, n.º 7, do RGPTC decorre que é territorialmente competente o tribunal da residência do requerente ou do requerido.
Estando assente que, no momento em que foi apresentado o requerimento em que é deduzido incidente de incumprimento das responsabilidades, o requerido tinha (e tem) residência habitual em Albergaria-a-Velha, forçoso é concluir que o tribunal português, concretamente, o Juízo de Família e Menores de S. João da Madeira é territorialmente competente para conhecer desse incidente e, de harmonia com o disposto no artigo 62.º, al. a), do CPC, também é internacionalmente competente.
Aliás, se as normas sobre a competência nesta matéria visam facilitar a cobrança coerciva da prestação de alimentos, estando o devedor a residir e a trabalhar em Portugal, não faria qualquer sentido que se impusesse a instauração do processo em tribunal estrangeiro."
*3. [Comentário] O decidido merece uma observação.
Correcta teria sido antes a aplicação do Reg. 4/2009, dado que, porque este instrumento europeu é aplícável qualquer que seja o lugar do domicílio do réu, tem uma aplicação universal e, por isso, prevalece sempre sobre o direito interno de qualquer Estado-Membro.
Nesta base, a competência do tribunal do domicílio do requerido deveria ter sido fundamentada com o disposto no art. 3.º, al. a), Reg. 4/2009.
MTS
Correcta teria sido antes a aplicação do Reg. 4/2009, dado que, porque este instrumento europeu é aplícável qualquer que seja o lugar do domicílio do réu, tem uma aplicação universal e, por isso, prevalece sempre sobre o direito interno de qualquer Estado-Membro.
Nesta base, a competência do tribunal do domicílio do requerido deveria ter sido fundamentada com o disposto no art. 3.º, al. a), Reg. 4/2009.
MTS