"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/01/2023

Jurisprudência 2022 (93)


Recurso ordinário; MP; 
ónus de alegação; ónus de formulação de conclusões

1. O sumário de RG 7/4/2022 (1767/21.8T8VCT.G1) é o seguinte:

I - As situações em que o Ministério Público recorre por imposição da lei referidas no nº 5 do art. 639º do C.P.C. são as previstas na Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, a saber, quando a norma cuja aplicação haja sido recusada, por inconstitucionalidade ou ilegalidade, conste de convenção internacional, ato legislativo ou decreto regulamentar, ou quando se verifiquem os casos previstos nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 do artigo 70º.

II - Nos demais casos o Ministério Público está em posição semelhante à de qualquer outro recorrente, onerado com a apresentação de alegações e de conclusões.

III – Numa acção contra “Estado Português, Ministério do Ambiente e Transição Energética” ao abrigo da Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro, diploma que estabeleceu a Titularidade dos Recursos Hídricos, a citação deve ser efectuada na pessoa do Ministério Público por este estar incumbido da representação do Estado.

IV – A citação do Ministério do Ambiente equivale a falta de citação que acarreta a nulidade de tudo o que se processou depois da petição inicial.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II – Fundamentação

[...] A) Da eventual rejeição liminar do recurso

Pugna a apelada pela rejeição do recurso alegando que o apelante não deu cumprimento ao disposto no art. 639º nº 2 do C.P.C. sendo que não é aplicável o disposto no nº 5 do mesmo preceito.

Vejamos.

Dispõe o n.º 2 do art. 637º do C.P.C., diploma a que pertencerão os diplomas a citar sem menção de origem:

“(…) O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; (…)”.

E o 639º:

1 – O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre a matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
(…)
5 – O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”

Antes de mais, as situações em que o Ministério Público recorre por imposição da lei são as previstas na Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, diploma que aprovou a Lei Orgânica sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, a saber, quando a norma cuja aplicação haja sido recusada, por inconstitucionalidade ou ilegalidade, conste de convenção internacional, ato legislativo ou decreto regulamentar, ou quando se verifiquem os casos previstos nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 do artigo 70.º, salvo o disposto no número seguinte.

Assim, “Nos demais casos, ou seja, quando a intervenção ocorra em representação do Estado ou de outras pessoas ou em função de interesses ligados à colectividade, está em posição semelhante à de qualquer outro recorrente, onerado, pois, com a apresentação de alegações e de conclusões.” – Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, p. 151.

No caso em apreço, o recurso foi interposto da sentença que se pronunciou acerca do reconhecimento do direito de propriedade privada em matéria de Domínio Público Marítimo, matéria esta regulada na Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro, diploma que estabeleceu a Titularidade dos Recursos Hídricos. Assim sendo, este recurso não se enquadra no acima nº 5 do art. 639º.

Analisando as conclusões do recurso verificamos que das mesmas não constam nenhuma das especificações a que alude o nº 2 do preceito em análise, contudo tal omissão não é fundamento de rejeição do recurso, mas, quando muito, de convite a aperfeiçoamento nos termos do nº 3 do art. 639º (vide a expressão “devem”).

Mas, entendemos que não é de proferir tal despacho por não ocorrer, quanto a nós, uma situação de deficiência ou obscuridade recursória que o justifique. Com efeito, com o mencionado preceito pretende o legislador que os recorrentes forneçam, nos recursos que interponham, a indicação em termos perceptíveis, não só do que pretendem, como das disposições legais que afirmam terem sido violadas pela decisão recorrida. Assim, constando nas alegações expressa referência a tais normas (vide art. 24º e 187º a) do C.P.C., 219º da C.R.P., 2º e 4º nº 1 b) do Estatuto do Ministério Público), bem como o sentido em que devem ser interpretadas, tal objectivo é conseguido, pois a apelada esteve em condições de contraditar e este Tribunal de conhecer do objecto do recurso.

Neste sentido vide Ac. da R.L de 15/04/2021 (Carlos Castelo Branco), in www.dgsi, p.t., [...], onde se lê: “

I) As conclusões da motivação do recurso visam habilitar o tribunal superior a conhecer das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito, traduzindo uma enunciação abreviada, congruente, clara e precisa dos fundamentos do recurso.
 
II) O ónus de concluir compete exclusivamente ao recorrente, conforme decorre do n.º 1 do artigo 639.º do CPC.
 
III) Tendo a recorrente formulado a conclusão do recurso, em termos inteligíveis, solicitando a revogação da decisão recorrida e expondo a razão sucinta da impugnação, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer da impugnação, pelo que, a ausência da menção nas conclusões às normas jurídicas violadas - que consta, aliás, da motivação da alegação - não deve determinar o não conhecimento do recurso, sob pena de se cair numa leitura estritamente formal do consignado no artigo 639.º do CPC.”"

[MTS]